A (in)Oportunidade de um referendo

1. No dia 11 de Fevereiro, em referendo, o povo português é chamado a pronunciar-se se concorda ou não “com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Se, na última década, alguma vez deixou de ser tema de debate, a questão do aborto é recolocada na ordem do dia. 2. Reaparecem e proliferam “teses consistentes” e “sentenças doutas”. Para todos os gostos e feitios, evidentemente… Uns voltam a insistir que é um referendo inútil, uma perda de tempo que favorece a crispação que seria evitada se a actual lei fosse aplicada ou a decisão fosse restringida ao âmbito da Assembleia da República, enquanto outros recordam que aquilo que em referendo é recusado só em referendo poderá ser permitido. Uns recordam que o “sim”, finalmente, nos põe a bater ao ritmo da Europa, enquanto outros reafirmam que não está no abandono dos valores que professam que o velho Continente sobreviverá. Uns voltam a dizer que o “sim” no referendo é um sim à liberalização do aborto, enquanto outros advogam que apenas em causa estará a despenalização da mulher que aborta. Uns insistem em que o “sim” é um grave atentado à vida, enquanto outros reduzem a questão ao direito da mulher decidir sobre a sua vida íntima. Uns advertem com redobrada força que o “sim” vai permitir o negócio lucrativo para sentenciar e executar a morte em mansões de luxo, enquanto, uma vez mais, outros desfraldam a bandeira do fim do aborto no “vão de escada”. Provavelmente, falam mais eles, os homens, do que elas, as mulheres. E eles talvez descansem no dia do referendo para que elas votem, porque, pensam eles, já cumpriram o seu papel e afinal essa é uma questão delas… Parece claro: se em causa está a liberalização do aborto o sim é uma estultice, porque a vida não se discute, antes deve ser favorecida com todo o engenho, dedicação, meios, condições e arte para o seu pleno desenvolvimento e para a sua plena expressão. Se o sim apenas legalizará a descriminalização do aborto, será essa, certamente, uma questão com problemáticos contornos porque nem tudo o que é legal será moral e… que seria então crime se crime não fosse impedir que uma vida, uma vez iniciada, irremediável e definitivamente se pudesse exprimir e desenvolver? Se em causa está que o sim apenas significará o não julgamento e a não penalização pública da mulher que abortou, muitos e muitas, provável e legitimamente, cederão, porque ninguém advogará o enclausuramento ou o apedrejamento da mulher que abortou, como também ninguém esperará que alguma mulher use como sua coroa de pública glória um aborto que privadamente realizou ou reivindicou… E todas e todos sabem como é importante para a mulher conceber, gerar e dar à luz: ela encontra-se na sua grandeza quando descobre que concebeu, perspectiva-se na sua plenitude quando acaricia no ventre aquele que sonha erguer e diviniza-se quando amamenta aquele que é o seu enlevo. E todos e todas, ou quase, sabem que a mulher que por circunstâncias penalizantes abortou transporta no seu seio a cruz de uma glória sonhada e irremediavelmente desfeita. E todas, mas nem todos, sabem que esta questão, provavelmente mais do que todas as outras, é uma questão de mulheres e de homens. 3. Sendo a actividade das Instituições de Solidariedade e dos seus dirigentes uma actividade de pessoas, com pessoas e para pessoas e tendo essas instituições e esses dirigentes por único lucro da sua actividade o sorriso de esperança das pessoas, nem podem nem devem estar à margem de um debate que, muito mais do que qualquer outro, interessa a todas as pessoas, homens e mulheres, crentes e não-crentes… O referendo é uma realidade. Porém, como nem sempre as palmas premiarão os melhores ou as vaias abafarão somente os vencidos, não é o resultado do referendo a dar ou a tirar bondade à iniquidade ou àquilo que todos devem reconhecer como, efectivamente, mau… Mas vote-se e vote-se em consciência. Sem slogans estéreis mas com consciência formada. Votem todas as mulheres e votem todos os homens. E, serenamente, sejam lidos os resultados. Sem hossanas e sem cinzas. E que, decididamente, sem mais referendos do género mas com mais determinação e justiça se caminhe para um amanhã mais feliz para todas e para todos. E, convictamente, se assumam os ideais, as causas e as realizações humanas como humanas que o são, de mulheres e de homens. E, doravante, condenem-se as situações de mulheres que são vitimadas ou condenadas a, sozinhas, transportar um filho que o é também de um pai. E, ousadamente, saibamos criar condições para que o aborto, legal ou imoral, jamais seja encarado como método de normal contracepção. E que não haja nem sequer mais uma mulher que seja coagida a encarar um aborto para assegurar um emprego ou uma vitória. E que as políticas tenham sempre um tom mais familiar que economicista. E que a educação seja mais da pessoa do que para a tecnologia, mais integral do que experimentalista. E que a vida seja sempre o fervor dos que vivem… com engenho, arte e sentido de mistério. Porque a vida é tão misteriosa que merece uma permanente postura de encantadora sedução… Entretanto, as Instituições de Solidariedade, com redobrada determinação, continuarão a defender a vida e a criar condições de plena vida e de plena expressão da vida. Para todos os entes gerados e para todas as pessoas geradoras. Independentemente das suas opções e dos seus actos. Mas considerando que no abraço dos homens e das Instituições há sempre desafio para se assumir a vida e nem sempre aplauso por actos de um caminho nem sempre recto… Lino Maia Presidente da CNIS

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