Armindo Vaz, biblista,Professor da Universidade Católica Portuguesa
Devendo ser uma breve apresentação do livro, só sublinho aspetos mais emergentes.
Como é seu apanágio, o Papa escreve com elegância e lê-se com agrado. Desejando “dialogar com os textos”, fundamenta a sua meditação na exegese, procurando a “caracterização literária” e a sua contextualização na história e na geografia (pp. 19-22.77-79…). Demarcando-se expressamente de “categorizados representantes da exegese moderna”, tende para considerar histórico o que essa exegese não consideraria tal. Se perguntamos sobre o género de linguagem que se encontra em Lc 1-2 e Mt 1-2, responde que “se procurou compreender a caracterização dos capítulos Lc 1-2 a partir de um género literário hebraico antigo, designando-os «midraxe hagádico», isto é, uma interpretação da Sagrada Escritura através de narrações. A semelhança literária é inegável; e todavia é claro que a narrativa de Lucas da infância não se situa no antigo judaísmo, mas no cristianismo primitivo. Trata-se de algo mais… Aqui narra-se uma história que traz a interpretação sobre a antiga Escritura… Resumindo, Mateus e Lucas queriam não tanto narrar «histórias», mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus” (pp. 20-21).
Quanto ao “nascimento virginal de Jesus”: “não tem verdadeiros paralelos” na “história das religiões, nas narrativas sobre a geração e o nascimento dos faraós egípcios”. “As narrações em Mateus e Lucas não são formas desenvolvidas de mitos… Estão solidamente colocadas na tradição bíblica…” (pp. 47-49).
O mais nítido distanciamento manifesta-o sobre o local do nascimento de Jesus. Segundo a exegese, a “afirmação de que Jesus nasceu em Belém seria teológica e não histórica: na realidade, Jesus teria nascido em Nazaré”. Para o Papa, “se nos ativermos às fontes, fica claro que Jesus nasceu em Belém” (pp. 58-59).
Realmente, o nascimento histórico de Jesus pedia meditação à luz de Deus. A vida, a mensagem e o mistério da sua obra libertadora na morte e ressurreição projetava luz sobre ele. Pelo facto de Mateus e Lucas o terem iluminado com temas, imagens, figuras (conceção e nascimento de personagens) do Antigo Testamento, a exegese hodierna constata que essa busca de sentido último coincide com as técnicas judaicas do midráš, que o judeu Mateus e Lucas conheciam bem e eram praticadas “no cristianismo primitivo”, como é reconhecido pelo documento da Comissão Bíblica Pontifícia (O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã, nº 15), prefaciado pelo Sr. Card. J. Ratzinger, seu presidente:
Entre os evangelhos, o de Mateus é o que mormente dá provas de familiaridade com as técnicas judaicas de utilização da Escritura… Utiliza, mais do que os outros, os procedimentos do midrash narrativo nas suas narrações (evangelho da infância…).
O midráš não é “lenda piedosa”, nem mito. É meditação espiritual iluminadora: faz interagir o presente factual (realidades históricas, geografia objetiva, nascimento, nomes de pessoas conhecidas, Jesus, Maria e José…) com a história sagrada narrada no Antigo Testamento, canteira aonde os escritores do Novo Testamento foram buscar [midráš] pedrinhas para construírem o novo mosaico, histórico e teológico: a infância histórica de Jesus interpretada teologicamente. No midráš não está em causa a história e a «história da salvação» mas a factualidade do narrado. O “algo mais” da releitura cristã relativamente à judaica – porque a Realidade a iluminar é diferente – cabe plenamente na categoria midráš. É revelador e exprime o Mistério, sem ser indispensável ter sucedido objetivamente nos pormenores, como as parábolas de Jesus.
A comunicação social chamou a atenção para o facto de o livro «admitir que o burro e a vaca são construção teológica; ou seja, no Novo Testamento nada indica que houvesse animais a adorar o menino; a declaração foi recebida com surpresa, numa altura em que milhões de pessoas começam a fazer o presépio». Contudo, o Papa diz em linha com a exegese: “No evangelho não se fala de animais; mas a meditação guiada pela fé, lendo o Antigo e o Novo Testamento correlacionados, não tardou a preencher esta lacuna, reportando-se a Is 1,3: «o boi conhece o seu dono e o jumento o estábulo do seu senhor; mas Israel, meu povo, nada entende»”.
Esta tradição é referida no evangelho apócrifo Pseudo-Mateus (séc. VI), que cita ainda Habacuc 3,2 (segundo os Setenta: “entre dois seres vivos… serás conhecido”); fazia assim lindo midráš narrativo sobre o nascimento de Jesus, iluminado com esses textos sagrados. Mas já está documentada no séc. IV. O Papa remata: “nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento” (pp. 61-62). A tradição da gruta (igualmente ausente dos evangelhos canónicos) aparece no Protoevangelho de Tiago, início do séc. III, e noutros apócrifos.
É daqui em diante um livro de referência para meditar os relatos da infância de Jesus, não só pela eminência do autor – nunca um Papa se agigantou escrevendo sobre estas narrativas evangélicas! – mas também pela profundidade do conteúdo antropológico e espiritual de muitas páginas. De facto, dos dois momentos hermenêuticos requeridos por Bento XVI e pelo magistério eclesial na leitura do texto bíblico – que queria dizer no seu contexto histórico, cultural, literário e religioso, e que quer dizer a mim e a nós hoje? (p. 7 e Verbum Domini, 31.34.42.97) – o Papa distingue-se no segundo. Tem meditações elevadas que nos falam vivamente.
Oportuno presente nesta quadra do Natal para sintonizar com as várias celebrações!
Armindo Vaz, biblista,
Professor da Universidade
Católica Portuguesa