D. Nuno Almeida é o novo bispo de Bragança-Miranda, diocese que se encontrava em sede vacante desde dezembro de 2021. O novo responsável leva para a sua nova diocese sete anos e meio de experiência pastoral na arquidiocese de Braga construída com a proximidade das pessoas e a descoberta de comunidades que lhe confirmam a realidade «muito fecunda, bela e desafiante» da Igreja viva.
O bispo de Bragança-Miranda deseja construir comunidade sinodais, escutando e aproximando-se de «todos os homens e mulheres de boa vontade», apostando na valorização dos leigos e na atenção formativa a jovens e famílias que procuram o sentido da vida e ao qual a Igreja tem de saber responder.
D. Nuno Almeida leva para a sua diocese a máxima que exprimiu também em Braga: «Não pode haver vítimas, agressores e silenciadores» nos abusos sexuais de menores na Igreja e o caminho passa por assumir que esta não é uma «questão periférica» na pastoral e que a Igreja tem responsabilidade na reparação de vítimas e agressores
Entrevista conduzida por Lígia Silveira
Agência Ecclesia (AE) – Na mensagem à Diocese de Bragança-Miranda, D. Nuno Almeida apela a «um renovado empenho por comunidades mais fraternas e unidas, mais corresponsáveis e orgânicas». Como concretizar esse objetivo diante da desertificação crescente do território?
D. Nuno Almeida (DNA) – Não sou capaz ainda de traçar um mapa, nem geográfico nem humano, da diocese de Bragança-Miranda mas, conhecendo a realidade, implica conciliar a vastidão de uma grande diocese com a proximidade, porque ser bispo implica caminhar, o máximo possível, com as pessoas, famílias e as comunidades.
AE – Será um bispo de Bragança-Miranda que não vai ter medo das estradas e das curvas da diocese?
DNA – Julgo que não. Até porque já me apercebi que tem boas estradas e boas autoestradas. Já fui andando por ali, em várias circunstâncias. Sobretudo este desejo de rapidamente, a diocese de Bragança-Miranda deixar de ser simplesmente uma via de comunicação ou edifícios que estão construídos para passar a ser feita de rostos, de pessoas, de corações, além de projetos e sonhos. No fundo, este caminho sinodal que implica estarmos juntos, ouvirmo-nos, partilharmos as preocupações e desejos, mas abrirmos o coração ao Espirito Santo, ao que ele nos tem a dizer nesta hora para esta Igreja concreta, no mundo em que vivemos, com tantas incertezas.
AE – A proximidade era já uma das suas marcas na diocese de Braga, enquanto bispo auxiliar. Mas a geografia é outra, as aldeias são mais dispersas. Como manter esta atitude de proximidade, enfrentando o que é a geografia própria de Bragança-Miranda?
DNA – A missão como bispo auxiliar – aconteceu comigo, tal com outros bispos – tem sido sobretudo a visita pastoral que é uma experiência de proximidade, de contato com as realidades vivas das paróquias, das freguesias e concelhos. Foram sete anos de peregrinação e para mim foram também de contemplação.
Eu cheguei a Braga quando o tema pastoral era «Fé contemplada» e logo no primeiro ano – partilhava isso com D. Jorge Ortiga e também com D. Francisco Senra Coelho e, com algum bom humor, eles consideravam o meu encanto. A experiência que eu fazia nas paróquias era de contemplar o que Deus faz, não magicamente, mas através dos párocos, das pessoas, sobretudo quando as pessoas se congregam em comunhão para viver a fé e testemunhar a alegria do Evangelho.
AE – É a experiência de uma Igreja viva junto de comunidades distantes dos Media e dos holofotes, mas onde se sente uma participação viva?
DNA – É muito isso. É quase uma espécie de terapia sair de casa e contactar, durante uma semana normalmente, com a vida concreta das pessoas e das famílias na realidade. E a realidade é muito fecunda, muito bela e desafiante e, para nós, é um testemunho que nos desafia a servir com mais alegria e prontidão.
AE – O monsenhor Adelino Pais, administrador diocesano, saudando a sua nomeação para a diocese, falou na necessidade de uma renovação pastoral. Como se prepara esta renovação? O que pressente que o espera a partir deste dia?
DNA – Eu recebi uma pergunta do Senhor Núncio (D. Ivo Scapolo), num domingo à tarde, precisamente num domingo, que tinha sido dedicado à conclusão de visitas pastorais, e não esperava o telefonema. O meu primeiro pensamento foi contactar com D. José Cordeiro, com quem vivo, também com o D. Delfim que veio de Bragança.
Eu tenho procurado aproveitar este mês em que estamos juntos para fazer comunhão das preocupações e compreender o percurso que a diocese fez.
Procurei as publicações que o Sr. D. José Cordeiro fez, também as que a diocese fez, para conhecer a história de Bragança-Miranda e muito particular, algo que D. José Cordeiro, juntamente com os padres e os conselhos pastorais, realizaram corajosamente que foi uma passagem às unidades pastorais.
AE – A reorganização pastoral, em julho de 2018.
DNA – Olhar com realismo a própria demografia. Felizmente, em boa hora, tudo foi publicado num volume, e eu já li e reli, e sublinhei.
AE – É um ponto de partida para o seu trabalho?
DNA – É um ponto de partida que me parece essencial. Olhando, lendo e conversando com o D. José Cordeiro e D. Delfim, é como ter um celeiro de grão precioso. Muito deste grão está a germinar e é necessário continuar, e certamente avaliar o caminho feito. Não é uma questão organizativa.
AE – Que caminhos abre?
DNA – Abre a possibilidade de as pessoas puderem manter viva a vida comunitária mesmo nas comunidades e paróquias que ficaram quase desertas, pelas circunstâncias e tendência de as pessoas procurarem as vilas e cidades e as aldeias ficarem desertificadas.
Mas nenhuma comunidade pode ficar esquecida, a santificação do domingo quando não é possível a Eucaristia há que encontrar outra forma, na formação de pessoas para que possam assumir responsabilidades.
Este desafio tem uma circunstância que pode provocar perplexidade quando se mudam ritmos e hábitos, mas é uma oportunidade para uma Igreja mais fraterna, corresponsável e mais missionária.
As comunidades pequenas que vivem o Evangelho são um farol e testemunho vivo nos tempos que correm para outras pessoas.
AE – Não é uma medida que vem responder à falta de sacerdotes para estar à frente das paróquias, mas possibilita outras vocações?
DNA – Sem dúvida. Certamente que a falta de sacerdotes veio desencadear e relevar o que está na doutrina, até há 50 anos, de uma Igreja comunhão e sempre em saída, em missão e samaritana, atenta aos gritos que chegam das pessoas e periferias. Esta circunstância, claro dolorosa porque precisamos de rezar muito para que haja mais vocações à vida sacerdotal, missionária e consagrada, fez com que o que esta visão pastoral tivesse de se concretizar. Hoje encontramos um exército de pessoas que voluntariamente, de uma forma generosa, se preparam – estou a pensar nos ministros extraordinários da comunhão que orientam uma celebração dominical, e em como este ministério liga diretamente à caridade, porque são uma presença extraordinária junto de quem está doente, de quem não pode ir à celebração da Eucaristia, e como este levar o Senhor liga as pessoas e as faz viver de forma serena quando mais precisam.
AE – O documento síntese da reflexão sinodal feita em Portugal, apontava para a dispensa dos sacerdotes de algumas funções mais burocráticas e vemos algumas dioceses a nomear leigos para cargos na Cúria, por exemplo. Prevê que isso poderá acontecer em Bragança-Miranda?
DNA – É um caminho a continuar porque assim já acontece. Há um jovem que assume funções de chanceler e uma jovem que cuida do arquivo e da memória da Igreja diocesana. Mas há espaço. O Papa Francisco abriu-nos o caminho, dá-nos o exemplo, de procurarmos tudo o que é possível. Há que abrir essa porta para que os sacerdotes possam estar centrados na essência do seu ministério que no fundo passa por criar condições para que as pessoas possam entrar em comunhão profunda com Jesus e, nesta comunhão, crescer na unidade entre as pessoas e no sentirmo-nos um povo de filhos amados, irmãos, e procuramos oferecer este testemunho à nossa volta e ao nosso mundo.
AE – Como acolhe as vozes que durante tanto tempo aguardavam a sua nomeação para esta diocese? Porquê tanto tempo?
DNA – Agradeço esta pergunta porque me dá a oportunidade de mais uma vez esclarecer. Como demorou algum tempo fui ouvindo, mesmo na rua, de forma espontânea, pessoas que me interpelavam sobre a ideia de que eu teria recusado ir para Bragança. Já publicamente o desmenti. É normal que surjam especulações ou boatos, e eu tenho ocasião de dizer que não, não recusei. Também não me ofereci, não entreguei o meu currículo ao Senhor Núncio, também nunca me escondi, porque a vida de um bispo auxiliar é permanentemente em contacto com as pessoas.
Aceitei com alegria, confiança. Coloquei-me diante de Jesus e acolhi este chamamento como um chamamento que chega através do Núncio, da Igreja, do Papa Francisco, mas que vem do próprio Jesus, na sequência da minha ordenação sacerdotal, da ordenação episcopal.
Quando veio o convite procurei pedir algum tempo para colocar o meu coração diante do Senhor, aconselhar-me com quem tem mais experiência e depois disse sim, com confiança, consciente que também vivemos momentos com algumas dificuldades e desafios que implicam o tal trabalho sinodal, o discernimento pastoral em conjunto.
Não levo nenhum programa nem nenhum truque escondido. É esta disponibilidade de servirmos a Igreja de Bragança-Miranda mas de forma sinodal.
AE – Demorou o convite ou demorou a nomeação pública?
DNA – Demorou o processo. A sede vacante foi longa. Não tenho razão, nem me compete a mim analisar.
AE – Gostaria que esse processo, até na nomeação para outras dioceses, fosse mais curto?
DNA – Sentimos isso, tendo em conta o momento que vivemos, não só com a dificuldade de recursos que é necessário procurar, a formação necessária a fazer, o período especial que vivemos com a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Quanto menos longo o período de sede vacante for, que implica limitações, até o adiamento de algumas decisões, isso sim, melhor.
São decisões que pedem serenidade, algum sigilo para que tudo seja feito de uma forma bela e de acordo com a Igreja.
AE – Com a JMJ a marcar o ritmo e as muitas atividades da Igreja em Portugal, quase nos esquecemos que decorre um processo sinodal, com etapas em outubro de 2023 e 2024. De que forma se tem aproximado deste processo em curso na diocese de Bragança-Miranda?
DNA – Ainda não consegui ler alguma documentação que já existe fruto do percurso ali feito, falta-me aprofundar este capítulo. Como mantive a agenda em Braga não foi possível fazer de outra maneira.
O objetivo não é produzir grandes momentos ou linhas pastorais. O Papa propôs um laboratório, fazer a experiência do que é, e uma descoberta muito bela, mesmo quando fazíamos os encontros por teleconferência, era um momento de todos, dos pequenos grupos se pronunciarem, ter voz, ter tempo e ninguém julgar, mesmo quando alguma coisa não estava tão centrada nas respostas.
Esta experiência fez-nos perceber que há um caminho novo para a Igreja, que é preferível irmos mais calmamente, mais devagar, até ter documentos e decisões menos perfeitas mas que foram fruto deste diálogo, e sobretudo mais alargado.
Tudo o que chegou a Roma nestas etapas vai ser devolvido, para que continue o caminho. Tenho muita esperança nesta nova etapa.
AE – O diálogo com os não crentes é um tema que lhe é próximo, desde a licenciatura em Teologia, em 1996, com uma tese sobre o «Diálogo com os não crentes». Preocupa-o hoje este diálogo, levando para a diocese de Bragança-Miranda, e hoje sobretudo o diálogo com os indiferentes ou com os buscadores, como refere Tomáš Halík?
DNA – Já foi há bastante tempo a tese e a vida foi continuando mas é algo de fundamental. Vai ser preciso alguma disponibilidade e criatividade para encontrar espaços de encontro, de partilha e de conhecimento.
Tenho percebido uma sede de sentido para as experiências de cada dia, mas também uma sede profunda sobre o sentido último da vida humana.
Encontramos espaço para o encontro e, a partir dai, para a participação em projetos de pessoas com convicções não religiosas. Nos últimos anos, depois da parte académica, tenho revistado e procurado aprofundar uma expressão muito presente no Concilio Vaticano II «Homens de boa vontade» isso tem-me ajudado muitíssimo. Estar atento por onde ando e aperceber-me que nos ambientes mais surpreendentes, aparecem e estão lá.
Visitei recentemente uma fábrica de componentes para aviões e percebi a preocupação de os lucros poderem ser distribuídos entre os trabalhadores e colaboradores.
Julgo que há um caminho a fazer onde nos podemos encontrar, pessoas que acreditam e procuram ter o Evangelho no centro, mas há espaço para caminhar com quem não tem esta graça ou não descobriu este dom, mas tem a preocupação de encontrar o sentido profundo para a existência.
AE – Este diálogo e a vontade de ir ao encontro com não crentes e buscadores, pode ter sido beliscado pela forma como a questão dos abusos sexuais na Igreja foi colocada na opinião pública? Pela forma como a sociedade não se reviu na forma como a Igreja foi traduzindo e comunicando esta questão?
DNA – Quando falamos dos abusos, e sobretudo na Igreja, enfrentamos um drama, algo que nos faz tremer ainda, mas também houve coisas que não correram bem, mesmo no modo como se comunicou o que está de facto a ser feito.
Julgo que a Igreja, nesse aspeto, procurou pedir ajuda a pessoas, independentemente das suas convicções ou ligação a uma comunidade cristã ou à Igreja. O caminho que se fez, não só com o Papa Francisco, de enfrentar este drama e realidade a partir de uma busca da verdade, sem medo da verdade – é verdade que dói muito, e dói-nos muito, porque a Igreja é a nossa família, a ligação ao presbitério diocesano é humana mas também divina, é sacramental, é profunda. Mas isto não nos deve levar a esconder ou a fazer de conta que não temos de enfrentar realidades difíceis.
Claro que depois é fundamental a justiça. Darmos prioridade a quem porventura tenha sido vítima de um abuso. Está no centro.
AE – Fala de justiça civil, canónica, de reparação económica também?
DNA – O mais possível. Tudo o que humanamente, também em termos éticos e morais e jurídicos, devemos fazê-lo. Nunca é possível reparar totalmente mas é necessário compreender caso a caso, e ir até onde é possível, ou até anteciparmos, porque há situações que não podem ficar à espera que decorra um processo na justiça – há situações de ajuda material ou até médica que tem de ser imediata.
Depois há uma dimensão de caridade e misericórdia que nunca pode ser esquecida, em relação às vítimas. E depois de cuidado em relação aos agressores, aos eventuais agressores, porque sem isso fica algo que se vai perpetuar.
AE – É uma responsabilidade da Igreja?
DNA – É uma responsabilidade na Igreja.
AE – Este é um dossier que o preocupa na diocese de Bragança-Miranda?
DNA – Preocupa e vai ocupar-nos certamente, pelo menos de uma forma preventiva. É necessário oferecer momentos de formação. Muitas situações, nós apercebemo-nos lendo o relatório que foi publicado. Pegando no «vade-mécum», está todo o caminho discriminado, as etapas a fazer.
AE – Sem possibilidade de erro.
DNA – Exatamente, nem sequer há desculpa porque houve a preocupação de as colocar até numa linguagem muito concreta e acessível.
Há um trabalho a fazer de prevenção e formação. Muitas situações aconteceram porque não são explícitas: é preciso saber ler os sinais e sobretudo ter uma cultura de vigilância, no bom sentido, para que depois não haja hesitação em se comunicar a quem se deve fazê-lo e, depois, se agir.
Em termos de normas, doutrina e até de discurso, as coisas estão claras. A dificuldade é quando é necessário agir numa situação concreta. Tive essa experiência na Comissão de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, em Braga, e esses momentos implicam um trabalho em conjunto com as pessoas devidamente preparadas nas diferentes áreas nas ciências sociais e humanas, nas questões jurídicas. Tem de ser um trabalho em equipa, mas é necessário agir.
AE – Como olha para o trabalho que tem sido feito na Igreja nesta área? Tomámos pulso sobre a realidade que o relatório da Comissão Independente apresentou; D. Nuno Almeida sentiu necessidade de publicamente se manifestar sobre a forma como a Igreja comunicou e remeteu as orientações do «vade-mécum»; o grupo Vita está em funções e adiantou 16 denúncias.
DNA – Podemos dizer que estamos numa etapa nova. O Grupo Vita está a trabalhar, e está a publicar e a comunicar o que está a fazer – que é muito importante, o prestar contas, porque isso possibilita criar a tal confiança.
Confesso isso: é evidente que dói muito, é quase um murro no estômago tomar conta e olhar para a realidade, percebermos o que aconteceu. Temos de fazer tudo o que humanamente possível.
É claro que não pode haver vítimas na Igreja, nem na sociedade, não pode haver agressores e não pode haver silenciadores. Isto é claro. A mim faz-me tremer se nós não estamos vigilantes e não nos ajudamos mutuamente. Se não criamos a cultura de colaboração e cooperação, se não abrimos canais, mesmo com as autoridades civis, porque diante de indícios ou até de alguma denúncia, só quem legalmente pode fazer uma investigação deve fazê-lo. Tem de haver uma relação e confiança, mas que seja clara e em tempo útil. Não se adie.
Estamos, portanto, numa etapa nova: de agir sempre uma alguma situação aconteça, precisamos de olhar para a vida pastoral – o modo como funcionamos na catequese nos escuteiros, na liturgia.
AE – Como se acompanham os padres?
DNA – Sim, a formação também. Foi aprovada a «Ratio» onde foi acrescentado um capítulo para a formação inicial dos sacerdotes e para a formação permanente. Estão ali as linhas necessárias a implementar. Cada bispo, na sua diocese, tem a obrigação de perceber até que ponto o que está definido está a acontecer, precisamente para nos dedicarmos ao que é essencial e fundamental que é o anúncio do amor de Deus, do Evangelho.
Não é possível fazer o anúncio do amor de Deus se as comunidades não são sãs e se as pessoas nãos se sentem seguras. Estamos a tocar em algo que não é periférico, mas está no centro da nossa missão.
AE – Como olha para a intenção do gesto público na JMJ, um gesto anunciado como um sinal de determinação de combater o abuso sexual de menores?
DNA – Tem muita importância para criar a cultura de colaboração, de atenção, de cuidado e, sobretudo, de respeito para com quem se sentiu vítima. Há pessoas que ainda não tiveram a coragem de denunciar. Haver um gesto público tem muita importância e damos conta que, na vida concreta, depois de uma notícia, de um gesto, de uma celebração eucarística, há mais pessoas que aparecem e muitas vezes é decisivo para um reencontro interior, e para poder continuar a sua vida, mesmo a sua prática cristã de uma forma mais serena.
AE – O gesto pode correr o risco de magoar mais as vítimas ou não o lê dessa forma?
DNA – Este equilíbrio exige muita atenção e cuidado. Esta polémica do encontro das vítimas com o Papa se devia ou não ser divulgado… há que ter em conta que uma parte significativa das vítimas não quer ter exposição pública, tem esse direito e devemos preservá-lo.
Em Braga, a Comissão funciona na Casa episcopal – pode ser discutível – mas tinha a intenção de ser reservado, e há um lugar alternativo. Precisamente porque as pessoas têm o direito de ir sigilosamente, privadamente e ser atendidas de uma forma segura e serena. Estamos a lidar com aspetos da vida que são delicados, essenciais para o futuro. Até o modo como se faz esse encontro.
AE – Porque sentiu necessidade de em março, publicamente, ajudar a recordar o caminho que o Papa Francisco já tinha delineado?
DNA – Foi um pouco acidental. Durante o domingo estive na vida pastoral, e à noite, quando me apercebi de uma certa perplexidade, sobretudo da parte da nossa Comissão, que estava preocupada com o modo como a comunicação, a partir da conferência de imprensa, tinha acontecido naqueles dias.
A minha preocupação foi simples: reler o «vade-mécum», fazer um pequeno artigo para o jornal «Diário do Minho», no sentido de lembrar aquilo que estava previsto.
Depois foi colocado em paralelo com declarações de outros irmãos bispos e eu apercebi-me da situação, até da polémica, e tive de fazer vários contactos telefónicos e pessoais, porque entre nós nunca houve polémica. Claro que há diversidade de pontos de vista e ritmos que cada bispo tem, mesmo de atuação, mas na Conferência episcopal, houve sempre consenso naquilo que era essencial, de atuação.
A exposição pública surgiu na circunstância em que havia ali alguma confusão com termos canónicos que, para as pessoas em geral, não são muito importantes. O essencial era passar a mensagem de que nós cumpriríamos os passos que estavam previstos no «vade-mécum».
AE – Como vê este acontecimento da JMJ na Igreja em Portugal, sobretudo como alavanca para a pastoral em Portugal?
DNA – Pelo que já vivemos na preparação, já valeria a pena. Certamente todo o empenho…
AE – O que tem sentido na preparação?
DNA – Tenho experimentado, falo por Braga, sobretudo no mês em que os símbolos percorreram paróquia a paróquia, provocaram uma vivência intensa e perceber que o Papa Francisco tem razão na Exortação Apostólica «Christus Vivit», nas duas linhas que indica para a pastoral de jovens: precisamos urgentemente de ter momentos de atração, de nos reaproximarmos dos jovens e dos jovens se reaproximarem da Igreja, uns dos outros, e de Jesus. Isto é necessário fazê-lo. Tem acontecido e aconteceu.
A presença dos símbolos significou uma grande corrente de luz, amor, esperança dos jovens de todo o mundo.
AE – Mas há um contágio entre os que já estão contagiados e uma dificuldade em chegar em quem está fora das margens da Igreja, ou os símbolos são um atrativo para quem está fora da Igreja?
DNA – Experimentámos que são um atrativo mesmo nos ambientes mais surpreendentes. Nas escolas, por exemplo, nos ambientes desportivos, onde os jovens estão e gostam de estar. Cada arciprestado organizou à sua maneira, mas este ir para além das fronteiras habituais foi uma realidade. Tive a experiência de levar os símbolos a um troço do «Rally Serras de Fafe», e o impacto que isso teve nas pessoas que vibram com entusiasmo. São os tais momentos em que criamos ligação, amizade, porque a partir daí muita coisa acontecer.
A própria JMJ é um momento para cativar, de atração, de juntar e congregar.
AE – D. Américo Aguiar falou dos dias da JMJ como dias de «fogo-de-artifício», que importa depois cuidar a partir do dia 7 de agosto.
DNA – O Papa Francisco é muito claro e muito simples, também. Como os carris de comboio, a pastoral dos jovens tem duas vias: cativar e depois caminhar, aprofundando a vivência do Evangelho, a relação com Jesus Cristo e a relação em grupo, para quem o desejar. Nunca o Senhor impôs nenhum caminho. Para nós, é até uma desilusão, porque temos feito e há capacidade de organizar eventos com os jovens, os próprios jovens sabem muito bem a linguagem e o que fazer, mas temos a dificuldade – e esse é um desafio claro – os jovens que quiserem caminhar juntos, aprofundar a fé e os valores, crescer humanamente, mesmo no serviço ou numa vocação – este nó que temos de aprofundar neste momento.
As jornadas pastorais do Episcopado estiveram centradas neste aspeto. Está prevista – e posso dizer isso, espero não estar a antecipar anúncios – uma escola de animadores para a pastoral de jovens que é absolutamente urgente. Hoje com os meios que temos, é possível organizar uma escola com pessoas bem preparadas onde permanentemente, os que são animadores e líderes naturais, possam preparar-se devidamente para que depois este caminho seja de aprofundamento e os grupos da pastoral e jovens tenham uma respiração, não só eclesial mas humana, sempre abertos à realidade que nos circunda.
AE – A realidade juvenil e familiar muda rapidamente. Pode a Igreja correr o risco de aplicar esquemas antigos a uma realidade que ainda não está a acompanhar, propondo esquemas adequados a um tempo que não é o de hoje? Concretamente à realidade e linguagem de jovens hoje?
DNA – Não devemos ter medo da dimensão paradoxal da fé cristã. Há sempre algo que parece que não se concilia: por um lado teremos de ser fiéis a Jesus, ao Evangelho, a um caminho que a Igreja fez, mas fieis também aos jovens, às famílias e às pessoas do nosso tempo. Não somos do mundo, pertencemos a Cristo, mas somos deste tempo.
Estamos e caminhamos, somos companheiros de viagem das pessoas do século XXI, nas realidades que vivemos hoje, nesta mudança epocal, como tantas vezes o Papa nos recorda, que está a acontecer.
AE – Mas esse tem procurado ser o caminho há dois mil anos.
DNA – Precisamente, e vai oscilando. Mesmo em relação à pastoral familiar, e o que está delineado na Exortação Apostólica «A alegria no amor», existe a preocupação com o acolhimento das famílias, e do acompanhar, o que significa fazer caminho hoje, como as famílias são, na diversidade, nas circunstâncias que temos, no integrar – e sabemos bem que precisamente o integrar significa a fidelidade a Jesus, ao Evangelho, à tradição, ao magistério, mas também à vida das famílias nas vicissitudes, sobretudo as que passam ou passaram por provas difíceis.
Há outro aspeto, que não está dito de forma explícita mas presente, que é não termos medo de propor. Este conciliar, acolher e o propor, temos sido tímidos – falo por mim, sou tímido de temperamento – não termos medo de propor aos jovens, e às famílias, propor a medida alta do Evangelho e da santidade.
É necessário, etapa a etapa, mas é necessário propor sempre algo mais, mesmo quando alguém vem pedir um documento, ou uma informação: temos de ter algo a propor ou informação do que temos e do que existe. Se temos grupos de jovens, movimentos que congregam famílias… Tenho andado a dizer isto sempre que há uma assembleia paroquial por onde ando: perdermos a timidez. Claro que o propor e o anunciar tem de ser sempre respeitoso, ou seja aceitar que a quem propomos possa dizer não, porque tantas vezes um primeiro não, não significa um não definitivo.
Quando falamos de uma Igreja sinodal, falamos de uma Igreja família de famílias.
AE – D. Nuno Almeida inicia três anos à frente da Comissão Episcopal Laicado e Família. Que atitudes vai procurar para chegar a famílias, também àquelas que podem ter dificuldades em se aproximar dessa medida alta? Famílias até distantes do modelo tradicional familiar, mas que procuram um caminho e sentido para a sua vida?
DNA – Precisamos de passar essa mensagem e esse convite, a tal capacidade de acolher, mesmo quando isso possa incomodar ou não vemos logo à primeira como fazer. Temos, felizmente, muitas pessoas que ao longo dos anos, pela própria experiência pastoral que tiveram, em movimentos, pelo percurso académico.
Precisamos de congregar, será uma das prioridades da Comissão. É formada por quatro ou cinco bispos mas está prevista a colaboração de pessoas com capacidade e que sejam especialistas nas diferentes áreas e precisamos de congregar e juntar, para descobrir este caminho de acolhimento, integração, acompanhamento e também de proposta.
AE – Quando foi tornada pública a sua nomeação para diocese de Bragança-Miranda, falava com humildade e reconhecendo a «fragilidade» com que iniciava o seu caminho na diocese. É renovando essas duas vertentes do seu caminho que inicia este percurso?
DNA – Sinto por um lado, interiormente, este desafio e a disponibilidade, até porque o lema da minha ordenação sacerdotal e episcopal «Estou em vós como aquele que serve», mas consciente que este «colocar-me ao serviço» implica uma entrega total.
Tenho feito a experiência de estar inteiro onde ando, mesmo que as vezes seja difícil porque o pensamento e o coração voa para a nova diocese, mas estar inteiro, mesmo com as minhas fragilidades.
Há quatro anos e meio tive uma intervenção cirúrgica que felizmente correu bem, tem estado tudo bem, não me tem condicionado, mas isso faz parte. Quando nos entregamos, entregamo-nos inteiramente, mesmo com as incapacidades que temos, que implicam o tal caminho sinodal, que implica procurarmos irmãos e irmãs com quem fazemos caminho juntos.