Catequese Quaresmal do Cardeal-Patriarca 1. Com este tema terminamos a apresentação do “Kerigma para a Missão”, o núcleo central das verdades da nossa fé, que recebemos desde os Apóstolos e que continuam a constituir a mensagem do anúncio da fé cristã. É a Igreja que anuncia, pois é ela a detentora da fé, ao longo de uma tradição de dois milénios e que para isso foi enviada. Mas já a Igreja primitiva percebeu que esse núcleo central das verdades da fé inclui o mistério da Igreja. A proclamação “creio na Santa Igreja” faz parte das mais antigas confissões de fé: na Igreja, o seu próprio mistério faz parte da fé que ela proclama. O anúncio de Jesus Cristo é um convite à fé, cujo fruto é a adesão a Cristo ressuscitado e à vida nova que Ele nos comunica. Mas essa adesão a Jesus Cristo não é uma fé individual e, ainda menos, individualista. É um convite a seguir o Senhor, em Igreja, a conhecê-Lo na Igreja, a sentir-se amado por Ele, em Igreja, a caminhar em conjunto, como Povo crente, na descoberta progressiva da vida, até à Casa do Pai, onde Ele nos precedeu como Pontífice e Bom Pastor. A misteriosa identificação que Cristo faz com a Sua Igreja, considerando-a o Seu próprio Corpo, sublinha que é impossível anunciar Jesus Cristo sem anunciar a Igreja, acreditar em Jesus Cristo sem acreditar na Igreja. O anúncio da Igreja é a coroa de todo o Kerigma cristão. Este primeiro anúncio do mistério da Igreja deve ser simples e testemunhal. Não se trata de explicar toda a complexa realidade da Igreja, mas de a apresentar como o fruto da Páscoa, manifestação do Seu amor perene pelos homens, sinal do Reino definitivo. Esse anúncio tem de ser feito por cristãos que acreditam na Igreja, que manifestam a sua alegria de a ela pertencerem e se sentem corresponsáveis pela sua missão. Tem de aparecer claro, nesse seu testemunho, que a Igreja é o Povo dos discípulos de Jesus, de todos aqueles que, tendo acreditado n’Ele, O querem seguir, de mãos dadas, até ao fim. No seu testemunho, a Igreja tem de aparecer como o conjunto daqueles que seguem Cristo, em todas as circunstâncias, tempo e lugar (Apc. 14,3). Nessa fidelidade amorosa a Jesus Cristo, a Igreja concreta, em cada tempo e lugar, anuncia a Igreja escatológica, que o Apocalipse descreve assim: “Estes, que estão vestidos de túnicas brancas, quem são e donde vieram? (…) São os que vêem da grande tribulação, lavaram as suas túnicas e branquearam-nas no sangue do Cordeiro. Por isso, estão diante do trono de Deus e servem-n’O, noite e dia, no seu santuário e o que está sentado no trono abrigá-los-á na Sua tenda. Nunca mais passarão fome, nem sede; nem o sol, nem o calor ardente cairão sobre eles; porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará e conduzirá às fontes de água viva; e Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos” (Apc. 8,14-17). Esta visão da Igreja escatológica sugere-nos os elementos para a compreensão do mistério da Igreja, enquanto neste tempo e neste mundo, ela partilha a frágil condição de todos os homens e é um povo peregrino, que segue Jesus Cristo, atraído pela luz definitiva. A Igreja é um Povo de discípulos 2. A missão de Jesus enquadra-se no projecto de Deus de ter um “povo escolhido”, o Seu Povo, com quem celebrou uma aliança e deseja conduzir à intimidade da comunhão consigo e à plenitude da vida. Jesus nasce como membro desse Povo, é-lhe enviado, para o conduzir à plena fidelidade à aliança. Apesar das infidelidades do Povo da primeira aliança, o Senhor não o rejeita, nem desiste dessa aliança. Envia-lhe o Seu próprio Filho, cujo sangue derramado selará a nova e definitiva aliança de Deus com o Seu Povo. Esse “novo Povo”, o dos tempos definitivos, tem de ser congregado por Jesus Cristo, é constituído por aqueles que seguem Jesus Cristo. Ninguém fica excluído. O Senhor chama todos a segui-Lo, membros do antigo Israel e homens de todas as raças, línguas e nações. O novo Povo de Deus congrega-se à volta de Jesus Cristo. Tudo começou com aquele primeiro grupo de discípulos que o Senhor convidou a segui-Lo e passaram a andar com Ele. O seu número foi aumentando, chegaram a ser multidão, para a qual Jesus abençoou e multiplicou o pão e depois O aclama nas ruas de Jerusalém. Entre essa multidão Ele escolheu doze, para uma relação mais íntima e permanente com Ele, com quem partilha a Sua vida de intimidade com o Pai e associa à Sua missão. Já então se nota, nesse povo a nascer, um núcleo de fidelíssimos, os apóstolos, as santas mulheres, os amigos fiéis de que conhecemos alguns nomes, como Lázaro, José de Arimateia, Nicodemos; e essa multidão imensa de simpatizantes, que tanto podem aderir ao grupo dos fidelíssimos, como abandonar o Senhor à primeira dificuldade ou exigência. Foi assim desde o início. A morte de Jesus foi uma prova muito dura para os seguidores de Jesus. A maior parte abandonou-O. Ficaram os “fidelíssimos”, e mesmo esses depois de sérias provações e tentações. Era o ouro fino a ser decantado pelo fogo do sofrimento. A ressurreição de Jesus e o dom do Espírito Santo trouxeram um dinamismo novo e rasgaram horizontes definitivos aos discípulos de Jesus. Segui-Lo é agora acreditar na Sua ressurreição, participar, na própria vida, na Sua vida misteriosa de ressuscitado, e anunciá-Lo até aos confins da terra. Este anúncio é a nova forma de Jesus chamar para O seguir e ser membro do Seu Povo; a resposta é a fé; a intimidade com Ele é agora fruto da força do Espírito Santo. Porque a pregação apostólica é o chamamento e a fé é a resposta, podem tornar-se discípulos de Jesus homens e mulheres de todos os tempos e lugares, garantindo-lhes o Espírito e a força sacramental da Igreja maior proximidade e intimidade com o Senhor do que aquela que viveram os primeiros discípulos, na vida terrena de Jesus. E assim o Povo do Senhor, aquele que Ele congrega, vai engrossando em número e torna-se presente em toda a terra. Hoje são mais de um bilião, presentes nos quatro cantos do Planeta. Continua a haver o grupo dos fidelíssimos, que seguem o Senhor em tudo e em todas as circunstâncias e aqueles que O seguem até que as dificuldades e as tentações os leva a abandonar ou a afrouxar o ritmo desta peregrinação dos que seguem o Senhor. Falemos um pouco destes dois grupos, pois fazer que eles se tornem um só é o grande desejo do Senhor e o objectivo principal da missão pastoral da Igreja. Os que seguem o Cordeiro para onde quer que Ele vá (Apc. 14,3) 3. O texto do Apocalipse que citámos refere-se-lhes como os que vêm da grande tribulação, que travaram vitoriosamente o combate da vida. Para seguir sempre Jesus, até ao fim, é preciso vencer todas as tribulações e dificuldades que o cristão encontra na vida, oriundas das suas próprias fragilidades e tentações, das dificuldades inerentes à própria existência humana e das perseguições que sofrem vindas da sociedade. A fidelidade cristã assemelha-se a um combate, de que o cristão pode sair vencedor, com a força do Espírito. Saber recorrer a essa fonte de graça, procurar a força onde ela está, é o segredo da vida cristã. É o próprio facto de seguir o Senhor que nos garante essa força que vem d’Ele e do Seu Espírito que derrama sobre nós. O cristão faz de cada combate uma manifestação de fidelidade a Cristo e de cada vitória um hino de louvor, que lhe reforça o ânimo para continuar a caminhada. O martírio, contexto que inspirou o texto de São João no Apocalipse, é a maior manifestação do triunfo sobre as perseguições e por isso os mártires são testemunhas, por excelência, da fidelidade do discípulo. O Apocalipse descreve, depois, esses cristãos fidelíssimos como aqueles que branquearam as suas túnicas no sangue do Cordeiro. Ser discípulo de Jesus supõe purificação e redenção das nossas fragilidades e pecados. A fidelidade é um mistério de misericórdia. As túnicas brancas evocam a pureza baptismal, candura de quem nasceu de novo para uma vida nova. Essas túnicas não são novas, já estiveram manchadas. É mergulhando-as no sangue de Cristo que elas readquirem, sempre de novo, a brancura original. A imagem usada evoca a importância da Eucaristia e do sacramento da misericórdia e do perdão na fidelidade cristã. Sabemos onde podemos sempre lavar a nossa túnica, manchada pelo pecado. Ser discípulo exige a humildade de quem reconhece a sua impureza, e a sabedoria para saber onde nos podemos purificar. É que os que seguem Jesus, para se sentarem com Ele à mesa, têm de revestir a túnica branca das núpcias do Cordeiro. O texto do Apocalipse continua a descrevê-los: estão diante do trono de Deus e servem-n’O, noite e dia, no Seu santuário. Esta liturgia eterna é já experimentada na nossa liturgia de povo peregrino, que só podemos celebrar, porque nos unimos ao Senhor. Esta festa do louvor, celebrada em cada Eucaristia é momento decisivo de quem segue Cristo como discípulo. É momento de intimidade com Ele, onde Ele nos convida de novo a segui-Lo e é fonte de alimento para a caminhada. Não aguentará a sua exigência quem não se alimentar do Pão da vida. É um momento de paragem, para nos reconhecermos como Povo e saborear, antecipadamente, as alegrias da casa do Pai, objectivo da nossa peregrinação. Ele que vai connosco, pára e descansa connosco, para louvar a Deus Seu Pai e retemperar as nossas forças com o alimento, que é Ele próprio. Essas paragens são momentos de repouso e de festa, de intimidade e fraternidade, de comunhão e de anúncio. O Cordeiro os apascentará e os conduzirá às fontes de água viva, continua o texto de São João. É das realidades mais consoladoras, fonte de confiança e de alegria, o sabermos que este Povo de discípulos continua a ter em Cristo ressuscitado o Bom Pastor que o guia, o protege e o conduz às fontes da Vida. Esta é a verdadeira fonte da firmeza e da alegria cristã: Ele o Senhor, o Vitorioso, o que esteve morto e agora Vive para sempre, o Filho que nos revela o Pai, vai connosco, conhece-nos pelo nome, perscruta a intimidade do nosso coração e guia-nos para essa pátria definitiva, onde nunca mais “passaremos fome, nem sede”. É como Bom Pastor que Jesus manifesta, em cada etapa da caminhada, a Sua infinita ternura pela Igreja, esse Povo de discípulos que quer continuar a segui-Lo, para onde quer que Ele vá. A multidão dos simpatizantes 4. O Senhor, na parábola do Semeador (Mt.13,3ss) comparou-os à semente que caiu no caminho, ou no meio dos espinhos, que germinou, mas não subsistiu. As provações, as realidades deste mundo, as tentações fizeram-nos desistir. O Senhor ama-os, fazem parte do Seu Povo, consagrou-os no baptismo, até se lhes uniu algumas vezes, na intimidade do pão partilhado. Mas nunca deixaram que Ele lhes conquistasse definitivamente o coração. Conhecem-n’O apenas de nome, ouviram falar d’Ele, mas nunca contemplaram o Seu rosto nem escutaram, com amor, a Sua Palavra. Na Igreja de hoje estes são muitos. Não deixaram de ser discípulos, mas vão na retaguarda da coluna, a farejar outras pastagens diferentes daquelas que indica o Bom Pastor; alguns chegam mesmo a perder-se do grupo, quais ovelhas tresmalhadas de quem é preciso ir à procura. Eles são a tristeza do Bom Pastor, que redobra de solicitude por eles. A Igreja, sacramento dessa solicitude de Jesus Cristo, tudo deve fazer para os levar ao encontro decisivo com o amor de Cristo. É preciso não os condenar, não os julgar, não os deixar separar do Povo que caminha. Enquanto eles estiverem na coluna, mesmo numa retaguarda dispersa, é mais fácil envolvê-los no amor e socorrê-los em momentos mais difíceis. Esse é o grande desejo de Jesus Cristo: que haja um só rebanho, com um único Pastor. Um só é o vosso Mestre 5. Povo de discípulos, a Igreja escuta Cristo como Mestre. Só Ele tem Palavras de vida eterna. É importante para este povo, que o é porque segue o Senhor, que experimente a relação entre o amor e a verdade. Temos coração, precisamos de amor, de amar e ser amados. E Ele envolve-nos no amor infinito de Deus. Ama este povo como um esposo ama uma esposa, e convida-nos a amarmo-nos uns aos outros. Mas como diz a Escritura, não há nada de mais astucioso do que o coração humano. Para nos mantermos no caminho do verdadeiro amor, precisamos da verdade. E Ele é a verdade. Ser discípulo é amá-Lo; para permanecermos no Seu amor, precisamos de O escutar. Ele é tanto nosso Bom Pastor, como nosso Mestre. Só Ele, a Palavra eterna de Deus, é fonte da sabedoria de que precisamos. Quem deixa de O escutar – e não esqueçamos que depois da Páscoa, Ele fala, ensina e chama através da Sua Igreja – e procura a sabedoria noutras palavras e doutrinas, corre seriamente o risco de se desviar do caminho. Este é, hoje, um aspecto delicado da vida da Igreja. Se é verdade que o grupo dos “fidelíssimos” normalmente escuta a Palavra do Senhor com alegria e obediência do coração, os outros, os menos “fidelizados”, têm tendência para discuti-la, pô-la em igualdade de circunstâncias com outras sabedorias e não se deixam guiar por ela. E quem não segue o Senhor como Palavra e como Verdade, dificilmente O segue com o amor do discípulo. A visibilidade do Reino de Deus 6. O facto de os discípulos se reunirem para seguir o Senhor, é importante para a visibilidade do Reino de Deus. Este, sendo uma realidade interior, não se limita a essa interioridade da consciência, como tantos hoje gostariam. Não! A Igreja tem uma visibilidade histórica, é um sinal para toda a humanidade e tem uma palavra a dizer em todas as circunstâncias da história. É isso que o Concílio Vaticano II quer afirmar quando define a Igreja como “sacramento de salvação” no meio do mundo. Ser sinal de salvação, significa propor nos caminhos da humanidade, os caminhos do amor, a luta pela justiça, a promoção incansável da paz, o respeito, a todo o custo, pela dignidade da pessoa humana. A sua mensagem pode ser incómoda ou mesmo rejeitada, mas é um alerta contínuo para conduzir a humanidade aos caminhos da dignidade e da verdadeira liberdade, para construir uma “civilização do amor”. Esta visibilidade da Igreja compromete os discípulos de Cristo com a construção da história, a estarem presentes e comprometidos em todos os combates para a construção de um mundo melhor. D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca