A Igreja perante a Vida

D. Ilídio Leandro, Bispo de Viseu A Igreja tem, perante a vida humana, uma concepção maximalista quanto ao respeito, ao valor e à dignidade, fundamentados no dom e no bem precioso e único de todo e qualquer ser humano. Isto é, desde o início até ao fim terreno, provocado pela morte natural, toda e qualquer vida humana tem sentido e merece o reconhecimento da parte de todos, exigindo defesa, acolhimento e protecção, baseados na sua dignidade, grandeza e inviolabilidade. A Igreja diz mesmo que “o homem constitui o seu primeiro e fundamental caminho” (RH 14 in EV 2) e esta mensagem constitui o fundamento do conteúdo da Boa Nova de Jesus Cristo que se torna o fundamento da Boa Nova e da Missão da Igreja. Esta, a Igreja, recebeu do próprio Fundador, Jesus Cristo, o Evangelho da Vida e é chamada a anunciá-lo e a celebrá-lo, servindo a vida, ao jeito de Jesus que veio para que os homens “tenham a vida e vida em abundância” (cf Jo 10, 10). Ao longo dos tempos existiram crises neste entendimento da grandeza, dignidade, igualdade fundamental e respeito que nos merece todo e qualquer ser humano. Estas crises mostram-nos aspectos de uma “cultura de morte” que a ciência, a técnica, a medicina, a deontologia dos profissionais da saúde e a evolução cultural dos povos foram possibilitando alterar, acrescentando qualidade à formação da consciência ética. As leis, quanto à defesa da vida, sempre existiram… Matar a pessoa humana sempre foi considerado um horror, uma violência e um atentado… Viver é o primeiro direito de um ser humano e as Constituições, os Códigos de Direitos e outros Tratados Internacionais foram desenvolvendo e concretizando uma sensibilidade cada vez mais respeitadora e exigente para com a vida humana. As dificuldades foram estando no entendimento de quem cabe na designação de “pessoa humana” para se exigir a defesa e o respeito. Isto provocava uma enorme incoerência entre a teoria e a prática. Umas vezes foi o sexo a determinar a diferença; noutras ocasiões foi a escravatura; houve épocas em que a cidadania era um critério de desigualdade; outras vezes era a raça, a religião ou a filiação partidária… Parece que, agora, será o tamanho, o peso, a idade, as diferenças, a produtividade… Daí que, a seguir ao referendo sobre o aborto, certamente outros virão: uso indistinto de embriões, eutanásia, homossexualidade, uniões de facto… Dirão que não se está a falar disso agora, pois percebemos o intuito: uma escalada de relativismo ético onde os valores deixam de valer, onde os princípios deixam de ser exigências racionais e onde a deontologia deixa de interessar para orientar a formação da consciência e para fundamentar o comportamento. Parece que, à medida que a ciência e a consciência vão apurando as reflexões e os dados inquestionáveis sobre a vida, no seu início e no seu fim, na sua dignidade e na sua igualdade, parece que, na mesma proporção, se vão intensificando o relativismo, o utilitarismo, o individualismo, gerando o desprezo, a indiferença e a insensibilidade, como base das injustiças, das guerras, das lutas que esquecem a inviolabilidade e o respeito pelas vidas mais indefesas, mais frágeis e mais inocentes… Para cúmulo, se os Estados deveriam ser os defensores, os promotores e os arautos do respeito pela vida, pela dignidade e pela igualdade entre todos os cidadãos, são eles, na sua função legislativa, educativa e executiva a liderar as tendências liberalizadoras dos atentados à vida, a começar pela falta de defesa dos nascituros, ainda sem voz e sem meios de poder e de defesa. Esquece-se a função pedagógica das leis e, depois, admiram-se e espantam-se pelas consequências… A Igreja quer afirmar-se, perante a vida, como o Povo da vida e a favor de toda e qualquer vida, independentemente da idade, do tamanho, da diferença ou deficiência, da doença ou fragilidade que a vida possua. A igreja apoia esta sua afirmação nos dados das ciências da vida que, de forma inequívoca, determinam o início e o fim terreno, natural. Fruto do contributo científico, a Igreja tem a certeza que a vida existe desde a concepção, realizada com a união dos gâmetas masculino e feminino, a partir da qual existe vida num ser humano que jamais deixará de o ser, ao longo de um desenvolvimento que, desde o início, contém todos os elementos patrimoniais, base de um programa genético onde tudo está inscrito e determinado… Qualquer intervenção, seja para interromper = destruir = matar = aborto, seja para experimentar, seja para usar em proveito de outrem – ainda que seja para curar e salvar alguém (células estaminais) – é grave e imoral e é absolutamente contra o direito à vida que aquele ser humano tem desde o seu início. Apenas será lícita uma intervenção – hoje já possível – para curar e beneficiar o embrião ou o feto, ainda no seu processo intra-uterino. A Igreja, defendendo a vida intra-uterina, não o faz a qualquer preço. Fá-lo defendendo a vida que, pode acontecer, sejam as duas, quando possível, seja a vida da Mãe a ter em primeiro lugar, no caso do “aborto terapêutico”, seja a vida do bebé se, porventura, a da Mãe está sem possibilidades de ser salva. Fá-lo num entendimento do chamado “conflito de valores” que, por vezes, estão mesmo em conflito… Quem resolve o conflito? Equipa médica; pessoal de saúde; mulher-mãe; marido… A Igreja, defendendo a vida intra-uterina, mesmo numa situação abortiva, não condena nem penaliza a mulher que pratica o aborto. Não é papel da Igreja condenar alguém. Não é o seu papel penalizar nem o reivindica e, na sua missão pastoral, vai ao encontro da mulher, que aborta, para lhe oferecer o perdão e a misericórdia de Deus, pedindo-lhe o arrependimento e a conversão. Aliás, sabemos que não é a despenalização que está em causa neste referendo. Isto, o Estado poderá fazê-lo e cabe a um Estado de direito averiguar as culpas e atribuir as penas… O que a Igreja não pode compreender e não pode calar, no seu papel e missão de se colocar do lado da vida e dos seres humanos mais frágeis e pobres, é que se esqueça a criança, o bebé (em qualquer fase do seu desenvolvimento, pois não há a fase posterior se é eliminada na anterior – ninguém de nós estaria aqui se lhe tivessem interrompido a vida às 10 semanas); o que a Igreja não pode compreender nem calar é que o eliminar uma vida humana = matar um ser humano, deixe de ser crime; o que a Igreja não pode compreender nem calar é que se possa liberalizar desta maneira infame podendo fazer-se, impunemente, até às 10 semanas; o que a Igreja não pode calar e quer denunciar pública e claramente, é que o Estado ofereça as condições, as clínicas, os meios… tudo pago pelos cidadãos como se se tratasse de qualquer interesse e benefício público… Como tolerar que se façam contas aos gastos e aos números previsíveis de abortos, respondendo-se que o Estado tudo vai fazer para possibilitar essa execução… se as 23.000 crianças previstas para serem abortadas fazem tanta falta… Importa dizer, de forma clara, que não é pelo facto de se legislar sobre o aborto, legalizando-o, que ele passa a ser um bem ou que deixa de ser crime… Ao contrário, torna o Estado e as pessoas que votam SIM, “estruturas” do mal… Está inerente nesta lei uma enorme falácia: porquê até às 10 semanas?… Porque não até às 12, 15, 24, 36, ao nascer, aos 2, 5 ou 10 anos?… A gravidade nem era maior nem menor… O ser humano existe desde a concepção… É apenas uma questão de idade, de tamanho, de desenvolvimento… Nada, hoje, vai na linha do aborto: a ciência, a medicina, a demografia, o equilíbrio social, o emprego… Somente o propalado direito da mulher à sua liberdade, juntamente com uma irresponsabilidade na vivência do prazer, do amor e da sexualidade… Quanto à liberdade da mulher: como?… De forma egoísta, mata para se ver livre de alguém? Não é a Mãe a melhor defesa para um filho?… Não é a maternidade uma vocação nobre da mulher?… Estão a ser postos em causa valores nobres como: a dignidade, o nome, o carisma e a grandeza do papel e do lugar da mulher na sociedade? … Nunca se pode separar liberdade, de verdade, de responsabilidade e de dignidade, sem o que deixaríamos de ser humanos… Quanto ao facto de o tema da vida / aborto ser uma questão de consciência individual ou religiosa… Nada mais negativo. É uma questão de vida, provada e demonstrada pela ciência e pela razão. É uma questão de direitos, liberdades e garantias da vida humana que, no artigo 24º da Constituição é defendida como “inviolável”. E a questão da “saúde pública”?!… Será de dar condições seguras à escolha de morte de alguém?… Como iremos justificar a criminalização e a consequente condenação de outros atentados à vida, à liberdade e à sociedade?… Não existe o Estado para, pelas leis e pelas consequências da sua aplicação, minimizar o mal, dissuadir do erro e educar as pessoas?… É a força e o papel pedagógico das leis!… Quanto a outros aspectos… estão em causa as responsabilidades da família, da sociedade e do próprio Estado na revisão de toda uma educação que não está a formar para a vida, para o futuro, para uma sociedade livre, feliz e socialmente justa. De facto, quando uma sociedade mata para sobreviver ou para se defender, está a retornar aos tempos que se deveriam ter, há muito, ultrapassado… Estará a Igreja isenta de culpas, podendo apresentar-se sem responsabilidades? Não… A Igreja precisa de fazer mais e melhor, no campo da família, no acolhimento de situações difíceis, na preparação para o matrimónio, no respeito e amor pelas pessoas, no diálogo com todos os que nos vêm ao encontro, respeitando as diferenças, na formação da juventude, na formação para a vivência da sexualidade e do amor, na corresponsabilidade pelo sentido da vida e dos valores, no anúncio da Boa Nova da Vida, etc. É hora de nos darmos as mãos, apoiados nas ciências da vida, nas ciências médicas e na tecnologia que deve estar ao serviço de toda e qualquer vida, sem excepção, para encontrarmos saídas que nos dignifiquem e que nos ajudem a criar leis sábias e justas para podermos dizer com verdade este lema e convite: “VIDA: um DOM e uma RESPONSABILIDADE”, assumindo-a, também, como uma VOCAÇÃO e um DESAFIO.

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