A Igreja no futuro da Europa

A construção do futuro da Europa é uma tarefa que requer a colaboração de todos; começa no debate, necessário (cada vez mais necessário), sobre o modelo de construção europeia que queremos, se queremos.

Continua, e completa-se, na discussão sobre dois elementos axiais da União Europeia: os valores e as políticas. E é neste plano, da intersecção entre o Ser e o Fazer, que a tarefa de construção da Europa (da União Europeia, para os que resistem à assimilação entre as duas realidades) é devolvida à sociedade civil, aos actores presentes – há séculos! – no terreno, traço de união entre as dimensões da governação, da representação, da base social, das pessoas.

Há uma espécie de referência circular entre a construção europeia, "velha" de cinquenta anos, e a Igreja Católica, Apostólica, Romana, com os seus muitos séculos. Ao assinar a Constituição Europeia em 2004, depois rejeitada no processo de adopção nacional por dois países fundadores, França e Países Baixos, e por isso abandonada, os Estados-membros da União referiam, no preâmbulo, o património cultural, religioso e humanista. Durante anos falou-se, nos corredores das instituições e na vulgata da informação sobre a Comunidade Europeia, na herança greco-romana-judaico-cristão.

Um cadinho religioso – e cultural – cada vez mais caldeado nas contemporâneas multiculturidades, a Europa actual, e o seu processo sempre em crescimento de união de povos, Estados e vontades, cresce em dois sentidos: na integração, supranacional, de superação dos óbices e limitações nacionais, e no "localmente", a dimensão tão próxima das pessoas quanto possível a que, tecnicamente, se passou a chamar subsidiariedade.

Ora a subsidiariedade, a ideia de que os poderes devem ser exercidos por quem o melhor faça, tem uma matriz cristã, que remete para a encíclica novecentista "rerum novarum". Presente nas realidades (estatais) dos Estados federais, a União foi a primeira organização mundial a formalmente invocar o princípio para organizar os seus objectivos e o seu modo de funcionamento; a partir do Acto Único Europeu, que entra em vigor em 1987, mas sobretudo com o Tratado de Maastricht, de 1993, as políticas europeias passam a só poder constituir-se enquanto respeitem o princípio da subsidiariedade. O Tratado de Lisboa eleva este princípio à categoria de critério decisivo e fundador de cada política e norma europeia.

No fundo tudo se resume a uma ideia simples: a de que a União Europeia só deverá legislar quando a sua acção represente um benefício, uma mais valia, para o conjunto da comunidade. Em todos os outros casos, quando a decisão puder ser tomada tão ou mais eficazmente a um nível inferior (de hierarquia decisória) ela competirá aos Estados, às regiões, às autarquia ou às entidades locais (por esta ordem).

O que se pede à Igreja que faça, na realidade século XXI do processo europeu de unificação, é que seja parte informada (e informante) do debate e da discussão, e que promova a busca por um novo paradigma enriquecedor; que aja em políticas concretas da "unidade alargada" (a Europa em busca da sua verdadeira dimensão política, que começa por ser cidadã, participativa, moral), com destaque para os casos em que já existe e é fecundo um pensamento próprio – como acontece com o ambiente e a "vocação ecológica" dos cristãos – e pelas questões relacionadas com a vida em sociedade, nomeadamente com estilos de vida sustentáveis (moralmente, ainda que tudo comece alhures, como na dimensão económica, na da saúde, etc.) que a Igreja deve ajudar a equacionar e (porque não?) a decidir, entre muitas outras.

Um estilo ecuménico que alastra a todos os domínios e matérias da vida humana em sociedade; um conjunto vigoroso de (aproximadamente) mil milhões de seres que comungam dos ensinamentos e da prática da Igreja e dos mandamentos de Cristo; uma longa experiência de trabalho no terreno, em domínios cruciais para a construção europeia como o social ou o cívico: a Igreja Católica tem indiscutivelmente um papel a desempenhar nas políticas relacionadas com os fluxos migratórios; na resposta a dar aos mais desfavorecidos, aos pobres, aos excluídos do repasto ocidental; e tem prosélitos, todos os muitos que a acarinham e que em torno dela se refugiam, quando isso é possível e lhes parece necessário. Na dimensão social da União Europeia, a Igreja é indiscutivelmente um dos mais úteis parceiros.

Mas nem tudo pode ser pintado em cores de rosa: a Europa como estaleiro em progresso ("under construction") é um conceito descrito por observadores colocados numa perspectiva religiosa que assinala de forma clara algum desencanto com os sucessos institucionais e os cruzamentos que os assinalam: é o óbvio caso da vilipendiada Constituição Europeia mas são também as dúvidas crescentes sobre o Tratado de Lisboa.

Um documento da Conferência de Bispos da União de 2005 salienta a importância da tarefa de dar (ou devolver?) uma "alma à Europa", a par do diálogo ecuménico com outras religiões; esse – o do ecumenismo europeu – é um caminho a percorrer, e a exigir uma atenção redobrada por parte dos europeus e dos religiosos.

A Igreja Católica é um parceiro requestado da União Europeia. A sua acção pode marcar a diferença entre um processo equilibrado, de sucesso, inclusivo, cidadão e solidário, e o naufrágio nos rochedos negros do debate institucional ou das discussões de lana-caprina viradas ao umbigo nacional. Pode ser que o consiga, merece consegui-lo mas, acima de tudo, assim queira prosseguir essa via, mais pedregosa do que parece…

Paulo de Almeida Sande,
Coordenador do Gabinete do Parlamento Europeu em Portugal

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