1. A Igreja é antes de mais comunidade de pessoas, comunidade de comunhão como expressou o concílio Vaticano II. O conteúdo desta comum-união é a participação no Espírito de Cristo, que gera o corpo social e místico que é a comunidade cristã. O Espírito não precisa de outro templo senão a pessoa humana e a comunidade. O corpo social é que tem necessidade de um lugar de encontro, de acolhimento, de celebração da fé, de trabalho – necessita de um edifício na cidade. A comunidade está antes do edifício. O erro da polémica igreja do Restelo não está, primeiramente, no estilo próprio do arquitecto, mas no facto da comunidade não ter sido o sujeito do processo, quem escolheu a tipologia litúrgica, a expressão do edifício e o arquitecto. Tanto a funcionalidade como a forma simbólica do edifício-igreja derivam da comunhão cristã que é fundamentalmente abertura ao Outro, abertura da comunidade à transcendência de Deus, mistério da existência, e à presença de Deus na própria vida das pessoa e da cidade. Esta abertura opõe-se ao gueto ou à seita, que são fechamento, separação. A Igreja não tem sentido sem relação com a cidade. Uma relação específica que não se caracteriza pelo poder mas pelo serviço (Lc 20,25-26), que não exclui mas acolhe na comunhão, que não se impõe mas se propõe. Estas características espirituais da igreja-comunidade é que devem caracterizar a igreja-edifício, como seu prolongamento e sua imagem na cidade.
2. Por outro lado, a cidade contemporânea está em processo acelerado de transformação urbana e cultural. No passado a Catedral ocupava o centro, desde aí definia e organizava o território geográfico e o território dos valores e do sentido. Hoje, o centro histórico tende a ser um lugar do passado, esvaziado de habitantes, itinerário pitoresco de turistas, absorvendo neste conceito as suas igrejas. O estatuto da igreja na cidade vê-se alterado na sociedade plural, onde culturas, valores e formas de vida diversas partilham o espaço comum. Nele, a igreja-instituição já não representa o todo cultural, mas ocupa o espaço público, a par de outras instituições de significados desiguais. A igreja-edifício não tem porque ocupar o lugar do poder, o centro, ou a extrema dominante das avenidas. O edifício constrói-se a partir da comunidade, como sua casa, domus ecclesia, à escala das suas necessidades espirituais e capacidade de serviço. A igreja sobrevive como sinal e lugar de uma comunidade de identidade espiritual forte. Só quando esta enfraquece ou se ensoberbece é que volta nostalgia da monumentalidade.
Outro aspecto é a crise da cidade como lugar humano. A cidade descentralizou-se, multiplicando os seus centros, diluindo as suas periferias no suburbano. A complexidade crescente da cidade contemporânea organiza-se por valores ligados quase exclusivamente às leis do mercado, valores pragmáticos e não espirituais. O predomínio do económico e do material gera o desejo do espiritual, a saturação da informação e da imagem gera o desejo da escuta e do silêncio, a fragmentação da vida gera a busca de sentido. O urbanismo e a arquitectura são valores espirituais que promovem a cidade como lugar humano. Um desafio semelhante põe-se à presença da igreja nos novos fóruns disseminados da cidade, nas periferias e não-lugares. Saberá a igreja recriar aí tempos de paragem e reflexão? Reforçar centralidades, lugares de encontro e celebração? Recuperar espaços de identidade e de pertença, na precariedade e vulnerabilidade da cidade em mutação?
3. Finalmente, que linguagem arquitectónica para o edifício-igreja na cidade? Percorremos aspectos sociais, culturais e espirituais que condicionam o desenho da igreja-edifício na sua relação com a cidade. Em última instância a arquitectura dá-lhes um valor formal definitivo, a igreja reconhece-se finalmente pela sua forma. Mas será que esta forma sobrevive reconhecível às rupturas próprias da arquitectura como disciplina, nomeadamente ao questionamento do modernismo? Não redefiniu, a igreja-instituição também, no último Concílio, a compreensão de si e da sua relação com o mundo? O resultado, ainda que prometedor, é, actualmente, uma grande experimentação de formas e tipologias.
Os arquitectos cultivados lêem na história das formas, seleccionadas pelo tempo, a reflexão de cada época sobre a igreja e a cidade. Há no entanto que traduzi-la para hoje. Só uma reflexão aprofundada na comunidade cristã, em conjunto com o mundo da arquitectura como disciplina, pode consolidar as boas práticas.
A igreja-edifício é uma metáfora na cidade secular, pronunciada na linguagem do seu tempo. A sua estrutura poética e paradoxal deve surpreender crentes e descrentes, conduzi-los ao silêncio do mundo, despertar uma atenção inhabitual. Tem portanto necessidade do talento artístico do arquitecto.
Pe. João Norton, sj, arquitecto