«A Igreja fermento do Reino de Deus no meio do mundo»

Homilia na Solenidade da Santíssima Trindade Dia da Igreja Diocesana Mosteiro dos Jerónimos, 3 de Junho de 2007 1. O mistério da Santíssima Trindade, comunhão perfeita de amor entre Pessoas, iguais e distintas, não define, apenas, a realidade íntima de Deus, mas revela o sentido profundo e definitivo da criação, o Universo e a humanidade, criados por Deus e redimidos por Jesus Cristo. Envolvidos pelo amor infinito de Deus, encontram nele a inspiração para o seu crescimento e o anúncio da sua plenitude. Todo o Universo foi criado por Deus, através da Sabedoria, o Seu Espírito. Durante todo o longo e complexo processo da sua origem e da sua formação, a criação foi orientada pela sabedoria divina: “Eu estava a seu lado como arquitecto, cheia de júbilo, dia após dia, deleitando-me continuamente na sua presença” (Prov. 8,30). A criação foi motivo de júbilo para o próprio Deus, que sentiu nela o esplendor da Sua glória. Sempre que a criação não é motivo de júbilo, afasta-se da sua verdade e também não será, para as criaturas, o lugar da alegria e da felicidade. Esta sabedoria divina exprimiu-se na nossa realidade humana através de Jesus Cristo, o Filho feito Homem que, a partir da Sua humanidade glorificada e elevada à glória da divindade, nos comunica o Seu Espírito. Neles e por eles, o amor trinitário de Deus envolve a criação nesse amor infinito, de forma definitiva. Jesus Cristo é a fonte e o caminho por onde a humanidade mergulha no amor de Deus. Referindo-se ao Espírito, Jesus afirma: “Ele Me glorificará, porque receberá do que é Meu e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai tem é Meu. Por isso vos disse que Ele receberá do que é Meu e vo-lo anunciará” (Jo. 16,15). Jesus Cristo é a plenitude de Deus e é essa plenitude que o Espírito nos comunica. Trata-se da plenitude da vida e do amor. Em Jesus Cristo, Deus continua a amar o mundo e por isso nos comunica o seu Espírito de amor. Tal como o júbilo da primeira criação, Jesus é, hoje, a alegria de Deus, a perfeita manifestação da Sua glória. É por isso que, no Espírito, nós podemos participar dessa alegria. Jesus promete aos discípulos que permanecerem no Seu amor, o dom da alegria: “Como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no Meu amor (…) Digo-vos isto para que a minha alegria esteja em vós e para que a vossa alegria seja perfeita” (Jo. 15,9-11). 2. É o anúncio do mistério da Igreja enquanto experiência de comunhão no amor de Deus, vivida pelos discípulos de Jesus. Segundo o texto da Carta de São Paulo aos Romanos, nisto consiste o âmago da nossa fé: “O amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rom. 5,5). Unidos a Cristo, formando com Ele um só corpo, participamos, por Ele, neste mistério insondável do amor de Deus. A Igreja será uma comunhão de amor se permanecer no amor de Cristo, como Ele permanece no amor do Pai. Ela encerra o sentido original da criação e anuncia o seu destino definitivo. Sacramento de Jesus Cristo, a Igreja encerra, no seu mistério de comunhão, o sentido definitivo da criação e da história. Ela está no mundo como o fermento na massa. Esta verdade da Igreja como vivência de comunhão no amor das Pessoas divinas, realiza-se continuamente na Eucaristia, onde o Pai continua a dar-nos o Seu Filho como expressão do Seu amor. Nós, ao acolhê-lo, podemos oferecer-nos com Ele, tornando-nos, também nós, a alegria de Deus. Como recentemente escreveu o Papa Bento XVI, “A Eucaristia é constitutiva do ser e do agir da Igreja” porque na sua identificação com Cristo que se oferece ao Pai e que ela acolhe como prova do amor de Deus, “a Eucaristia aparece na raiz da Igreja como mistério de comunhão”. Tem, assim, pleno sentido, meditarmos na realidade da Igreja, da nossa Igreja diocesana, em comunhão com a Igreja universal, na Solenidade da Santíssima Trindade, e descobrir a sua relação fontal com a Eucaristia que celebramos e, onde havemos de descobrir, de forma cada vez mais profunda, o nosso ser Igreja e, também, a exigência da nossa missão na sociedade concreta em que estamos inseridos. Quero falar-vos, agora, desta missão da Igreja na nossa sociedade. 3. Concretiza-se na Igreja o que Jesus pediu ao Pai para os discípulos: eles estão no mundo, mas não são do mundo, como Ele não é do mundo. Ambos estão no mundo com uma missão: “Como Tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo. 17,18). Como escreveu João Paulo II “a Igreja vive no mundo, embora não seja do mundo, e é enviada para dar continuidade à obra redentora de Jesus Cristo, a qual, visando por natureza salvar os homens, compreende também a instauração de toda a ordem temporal”. A Igreja, na sua realidade teologal específica, como Corpo de Cristo e sacramento de salvação, está na sociedade como fermento do Reino de Deus, na medida em que, na sociedade, devido à presença dos cristãos, a cultura que inspira os comportamentos e o relacionamento mútuo entre as pessoas e as instituições se aproximam do amor, pela prática da justiça. Como há uma missão interna à própria Igreja para a edificar como realidade sobrenatural, há uma missão da Igreja no mundo para, no realismo da vida da sociedade, lançar as sementes do Reino de Deus. Esta missão é responsabilidade de todos os membros da Igreja, mas é-o, de forma peculiar, dos cristãos leigos que vivem inseridos na sociedade, partilhando a mesma vida de todos os homens. É aquilo a que o Concílio chamou a índole secular da missão dos leigos. É no âmago dessa situação secular que eles são chamados por Deus, e a sua missão é imprimir na ordem temporal a verdade do Evangelho, influindo na cultura, seguindo os valores éticos que levam à justiça e ao amor, fazendo crescer a sociedade como uma comunidade onde a dignidade da pessoa humana seja respeitada. São Paulo diz aos Coríntios: “Irmãos, fique cada um de vós, diante de Deus, na condição em que estava quando foi chamado” (1Co. 7,24). A fé cristã não é uma fuga do mundo, mas uma missão para transformar o mundo a partir de dentro, da sua própria realidade. A vocação do cristão leigo está ligada a essa sua situação intra-mundana. João Paulo II, na linha do Concílio, define assim essa missão: “Os fiéis leigos são chamados por Deus para que, no seio da realidade humana, exercendo o seu próprio ofício e inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais, pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade”. 4. Esta missão dos cristãos no meio do mundo é exigente. Supõe, antes de mais, a fidelidade a Jesus Cristo, uma vocação de santidade, a viver em Igreja. Por outro lado, entre os critérios do mundo e os do Evangelho, há contrastes que provocam sofrimento e exigem coragem. Podem cair na tentação de deixar o mundo em paz, com os seus critérios e reservar a expressão da sua fé para a intimidade da comunidade eclesial. E em tempos de grande mudança cultural, como a que vivemos, em que sociedade parece afastar-se do que restava de uma cultura e de uma ordem de valores de sabor cristão, a dificuldade da missão é ainda maior. Recebo, habitualmente, muitas manifestações de cristãos, preocupados com esta evolução da sociedade; alguns interpretam mesmo alguns dados desta evolução laicista como ataques premeditados à Igreja e à sua influência na sociedade. Não ignoro que há forças organizadas que procuram retirar à Igreja qualquer influência inspiradora na cultura e na sociedade, mas nem todas as manifestações desta evolução se podem atribuir a essas forças, pois a evolução da sociedade é um fenómeno global e a própria demissão dos cristãos de manifestarem a coerência da sua fé é, certamente, uma das causas. Numa sociedade onde há tantos cristãos, a deriva laicista da cultura e dos valores é sempre também, responsabilidade sua. Perante esta evolução da sociedade não basta lastimar-se e denunciar; é preciso agir, numa coerência evangélica, em todos os campos onde os cristãos estão inseridos: a família, a política e administração, a vida económica, a vida social. Escrevem-me, como se bastasse uma palavra minha ou de todos os Bispos em conjunto para mudar o rumo da evolução. Não é assim: a grande força da Igreja na sociedade é constituída pela coerência evangélica dos cristãos que vivem no mundo, no seio da Cidade. 5. É nossa intenção programática para o próximo Ano Pastoral, valorizar esta missão específica dos leigos no seio da sociedade. É preciso apoiá-los, como apoiamos os cristãos que exercem uma missão no interior da Igreja. O Espírito Santo guiar-nos-á na busca de expressões do apreço de toda a comunidade cristã por esta forma de missão. Passa também por ela aquele abraço com que Deus continua a envolver o mundo no Seu amor. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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