Jorge Teixeira da Cunha, Diocese do Porto
O Governo português elaborou uma proposta de revisão do Código do Trabalho que colocou recentemente em discussão pública. Apresenta como justificação a necessidade de modernizar a legislação laboral, adaptando-a às condições novas, de combater a precariedade, de regular o trabalho temporário e a contratação de trabalhadores exteriores ao quadro habitual das empresas, de reforçar os direitos dos trabalhadores, nomeadamente dos ditos trabalhadores independentes, de aumentar a produtividade e assim por diante. Visa também regulamentar outras situações como harmonizar trabalho e maternidade. Que comentário fazer a este propósito, do ponto de vista da doutrina social da Igreja?
Não compete à Igreja fazer leis, mas não lhe é alheio o espírito das leis e os valores que as leis veiculam. É também evidente que não há dúvida que existem novas condições que é necessário ter em conta na hora de fazer leis. Entre essas a possibilidade que a tecnologia proporciona de trabalhar à distância, as preferências das novas gerações que querem gerir o seu emprego sem uma vinculação definitiva a uma empresa, a questão de conciliar procriação e trabalho. Mas o trabalho é uma questão de sempre que deve ser avaliada tendo em conta um conjunto de valores que não podem ser desestimados. Entre esses, pomos em evidência os seguintes.
Nenhuma reforma laboral pode deixar de visar o trabalhador como sujeito do seu trabalho. O ser humano trabalhador é o centro da questão laboral. É necessário afirmar isso convictamente quando vemos que a cultura e a economia de hoje tendem a fazer do trabalho uma realidade objectiva, uma quantidade que é possível medir. No projecto de revisão das leis do trabalho, esta centralidade do trabalhador não aparece no seu lugar, que é o primeiro. Não vemos lá a preocupação com a formação contínua dos trabalhadores nem medidas que visem o melhoramento dos ambientes de trabalho.
O trabalho humano é também uma realidade associada. O ser humano trabalho em comum com outros seres humanos. Por isso, a empresa não pode ser vista como um conjunto de funções, mas como uma associação de pessoas. O que vemos é que a dependência dos trabalhadores, tanto ao nível empresarial como a nível global se mantém. Se é certo que já não estamos como nos alvores da revolução industrial, vemos a permanência de uma estrutura de poder mundial que se impõe sobre as pessoas trabalhadoras. Qualquer revisão das leis laborais deveria estar preocupada com este aspecto e prever a participação dos trabalhadores nas decisões que dizem respeito à permanência da actividade e ao melhoramento dos procedimentos.
Mas há um ponto que vemos totalmente ausente: é a referência à questão dos salários. Este assunto é deixado totalmente às leis do mercado. E não pode ser assim, do ponto de vista da doutrina social da Igreja. O trabalho põe em questão a justiça. Mesmo que definir o valor monetário do trabalho seja uma questão insolúvel, há algo sem o qual não podemos viver: o ser humano ganha a sua vida no trabalho. Uma reforma laboral verdadeira tem de colocar no seu centro a preocupação pela distribuição justa do produto do trabalho. Parece que a percentagem do rendimento das empresas que é aplicada nos salários tem vindo a diminuir se comparado com outros factores, como seja a remuneração dos quadros superiores e a remuneração do capital. Isto é um elemento incoerente do ponto de vista de uma ética social cristã. Parece mesmo haver um sistema internacional de apropriação do valor do trabalho que deixa sempre mais longe a multidão dos trabalhadores. A doutrina social da Igreja vê com alguma desconfiança o predomínio dos factores do chamado “dador indirecto do trabalho”. Uma reforma que tenha em conta o estado actual das coisas deve ir no sentido de aumentar a remuneração directa do trabalho, em vez da administração indirecta do rendimento pelas complexas estruturas do chamado Estado social. Os trabalhadores são cada vez mais competentes para administrar o seu rendimento, o qual lhes deve ser creditado directamente e não sob a forma de prestações sociais que se escapam sabe-se lá para quem, mediante o complicado mecanismo das prestações em saúde, em educação e em outras prestações cuja legitimidade não faz parte do pacto moral que une os membros de uma sociedade.
Para terminar, a doutrina social da Igreja não se oporia a um acordo pelo qual o custo da maternidade e da procriação fosse assumido pela sociedade. Dentro de uma visão aceitável da família, seria de discutir um salário social para as mães em idade fértil, que lhes proporcionasse cuidar devidamente de si e das crianças. Isso seria um ganho futuro extraordinário.
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