A Igreja e a República

Incidências da “Lei da Separação”, de 20.04.1911, no Distrito de Viseu

(Com base nas respostas ao Inquérito dirigido aos Presidentes de Câmara e aos Administradores dos Concelhos pelo Presidente da Comissão Central de Execução da Lei da Separação, por ofício de 26 de Fevereiro de 1914)

 

Ex.ma Senhora Presidente da nossa Ilustre Academia, 

Senhores Académicos,

Minhas senhoras e meus senhores,

De hoje a duas semanas, vai celebrar-se o primeiro centenário da publicação da famosa “Lei de Separação” no Diário do Governo, redigida pelo então ministro da Justiça, Dr. Afonso Costa.

No passado dia 26 de Fevereiro, completaram-se 97 anos depois do preocupado inquérito enviado de Lisboa para todas as autarquias do país pelo Presidente da Comissão Central de Execução da mesma lei, para saber do modo como diploma fora recebido pelas populações locais.

Tais efemérides, que marcaram uma viragem histórica nas relações do Estado com a Igreja, difíceis e dolorosas como um parto mas benéficas e proveitosas como uma dádiva, sugeriram-me a ideia de trazer até esta academia, nesta precisa data, uma despretensiosa reflexão sobre tais factos.

Bem hajam pela vossa presença, que muito me honra.

 

Senhora Presidente,

Senhores Académicos,

Minhas senhoras e meus senhores,

Goste-se ou não se goste do novo regime político instaurado entre nós em 5 de Outubro de 1910, a verdade é que ele veio substituir uma monarquia constitucional cheia de contradições e desencantos, que sempre se mostrou incapaz de implantar em Portugal as utopias sonhadas na Revolução Francesa e de substituir com beleza e êxito o Antigo Regime, e veio abrir caminhos novos para o futuro do país.

Na verdade, instaurado o regime liberal que pretendia livrar o país das peias do Absolutismo e da tutela da Religião, depressa se sentira a necessidade urgente de caminhar para a sua própria “regeneração”.

As aspirações iniciais e latentes do ideal republicano começaram por ser, por isso mesmo, uma oposição radical ao “cartismo”, no que ele significava de aproveitamento do liberalismo inicial em favor da burguesia e dos barões, com prejuízo da liberdade, da igualdade e da fraternidade proclamadas como virtudes nobres duma nova ordem do mundo que tardava a aparecer.

Efectivamente, em meados do século XIX, Henriques Nogueira, um dos ideólogos mais precoces da República, escrevia o seguinte:

“quisera que, num país como o nosso, emancipado por cruentos esforços da tutela humilhante, egoísta e  sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regímen espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas  estéreis e de cicatrizar feridas que ainda gotejam, ávido, enfim, de gozar as doçuras da liberdade por que tanto há sofrido,(quisera que) o governo do Estado fosse feito pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de REPÚBLICA”.1

A instauração de um regime verdadeiramente democrático – um governo do povo em favor do povo – implicava entretanto, na cabeça das gerações mais jovens, o derrube da monarquia.

Basílio Teles, um dos ideólogos da República, em resposta à pergunta sobre o programa do partido republicano que então se ia delineando, assim deixava escrito: “A Monarquia, em Portugal, tem sido isto: a incompetência, o impudor, a opressão. E concluía: “não há senão um acto de caridade a contrapor: a demolição sumária do regime”. 2

Um dado novo temos porém de considerar atentamente para o estudo que nos propomos: a associação quase genética da República à maçonaria portuguesa, e também ao anticlericalismo quase mórbido que se lhe foi anexando aos poucos, como irmão gémeo ou mesmo siamês.

As Conferências do Casino Lisbonense são a maior prova do que acabamos de dizer. Todos os intervenientes, com Teófilo Braga à cabeça, atacavam violentamente a religião e a sua influência na sociedade portuguesa do tempo. 

O discurso inaugural das Conferências, proferido por Antero de Quental, em 27 de Maio de 1871, apresentando-se como uma dissertação sobre as causas da decadência dos povos peninsulares, outra coisa não foi senão um ataque cerrado à Igreja Católica.

Na mente dos defensores de uma nova ordem, e nas suas actividades de propaganda, a Igreja Católica aparecia estreitamente aliada ao Cartismo desacreditado e à Carta Constitucional que se pretendia anular e substituir. Tal como antes os liberais tinham confundido a Religião com o Absolutismo, confundiam agora os republicanos os interesses da Igreja com os da Monarquia: a “aliança entre o trono e o altar” era vista como algo a denunciar e a abater. Nas vésperas e nos dias da revolução, ser republicano era, antes de mais, ser contra a Monarquia e contra a Igreja (particularmente contra os Jesuítas), já que a ideia da República aparecia aos olhos dos seus defensores com a aura de um certo messianismo vago e mal definido, mas suficiente para se acreditar que bastava a sua proclamação para libertar o país de todas as injustiças e salvá-lo de todos os males de que sofria. O movimento republicano apercebeu-se de que só seria possível aniquilar o regime da Carta minando a influência da Igreja na vida pública portuguesa, mormente nas estruturas ligadas à beneficência e ao ensino. Esta a razão porque, desde o seu início, se reivindicou a separação da Igreja e do Estado, o que veio a concretizar-se através da Lei da Separação, a que dedico este meu despretensioso estudo. 3

 

A Lei da Separação

Com as múltiplas, acintosas e apressadas medidas tomadas contra a Igreja logo no seu primeiro trimestre de existência, o governo provisório deu início à laicização da vida pública, criando pelo país um ambiente de algum terror, que se prolongou pelo menos até 1913.

O maior ataque à Igreja e às suas instituições chegou porém em 20 de Abril de 1911, com a célebre Lei da Separação do Estado das Igrejas, redigida por Afonso Costa e publicada no Diário do Governo nº 92, do dia seguinte.

A lei, nos seus 196 artigos, começando por garantir a liberdade de consciência a todos os cidadãos residentes (artº 1º) declarava em seguida que a Religião Católica deixava de ser religião do Estado (artº 2º), e condicionava o culto religioso e mormente as manifestações externas do mesmo culto a locais e a horas determinadas, na dependência das autoridades civis de cada localidade. (artºs  43 -60)

Na prática, a hierarquia eclesiástica deixava de ser reconhecida e respeitada, substituindo-se ao poder eclesiástico o poder civil, e tomando este último o controle quase absoluto da vida e da organização da Igreja.

Na linha do que já tinha ocorrido nos tempos do liberalismo, especialmente em 1834 com a extinção das Ordens Religiosas, a Igreja viu-se privada por esta lei de personalidade jurídica e foi expropriada da maior parte dos seus bens incluindo os seminários, os lugares de culto, e ainda as residências e os passais paroquiais, estruturas que tinham sido construídas exclusivamente com as esmolas do fiéis e sem qualquer contributo do Estado, cabendo às comissões concelhias fazer o arrolamento e a inventariação desses bens. 4

Em simultâneo, e para além de outras medidas ofensivas à Igreja e à liberdade religiosa, instituíam-se as chamadas “cultuais” – corporações e organismos laicos encarregados de gerir os bens das igrejas e o exercício do culto, estando expressamente excluídos de fazer parte delas os sacerdotes, e, para substituir as côngruas paroquiais que ficaram abolidas, estabelecia-se um sistema de “pensões” a pagar pelo Estado “aos ministros da Religião Católica” que as requeressem.5

Para levar a lei à prática, criou-se a chamada “Comissão Central de Execução da Lei de Separação”, dependente do Ministério da Justiça.

Tratava-se, ao fim e ao cabo, de manietar a Igreja, de subjugar os seus ministros, de a fazer morrer à míngua.

Comentando o facto, assim dizia um bispo de Lamego em 1956: “Acalentando talvez a esperança de privar a diocese de pastores, os revolucionários de 1910 atiraram um golpe certeiro à cabeça da Igreja: ao Bispo e ao Seminário. Se assim fosse, o golpe seria mortal!”6

Num protesto comum do episcopado, publicado em 6 de Maio desse mesmo ano, diziam os bispos:

“…não é separação, não é divórcio, é prepotência. Não é neutralidade, é o propósito ostensivo e inegável, não só de fiscalizar (que a fiscalização seria de admitir, nos limites razoáveis e dentro do direito comum), mas de escravizar”. 7

Em 24 do mesmo mês, era o Papa Pio X a denunciar o teor da famosa Lei. Na sua Encíclica “Jandudum in Lusitânia”, reiterava a doutrina da Igreja sobre as relações da Igreja com o Estado e expressava o seu apoio inequívoco aos bispos portugueses.

Conhecido o apoio do Papa, a reacção oficial de cada um dos bispos não se fez esperar. Em circulares enviadas aos seus diocesanos, um após outro, os bispos condenaram as associações chamadas “cultuais” e proibiram os párocos de aceitarem as referidas “pensões”, pelo significado que tal aceitação implicava de reconhecimento implícito da expropriação dos passais. Tal resposta de cada um dos bispos trouxe como consequência a sua expulsão das respectivas dioceses por decreto da presidência de República sob proposta do então Ministro da Justiça, Afonso Costa, o desterro forçado para fora dos seus distritos pelo período de dois anos, com saída no prazo de cinco dias, e a expulsão de mais de uma centena de padres que também ousaram resistir, para fora dos seus concelhos. Os documentos da época – circulares dos bispos e  ofícios governamentais – dão-nos conta de um ambiente de “cortar à faca”.

Respondendo ao administrador do concelho que o intimara a sair da diocese, por ofício de 14 de Fevereiro de 1912, dando cumprimento a um decreto publicado no Diário do Governo no dia anterior, o bispo de Lamego assim dizia: “Expulsa-se um cidadão da sua casa, desterra-se, violenta-se um bispo a separar-se e a abandonar a sua diocese, sem que se lhe aponte o crime ou o delito que cometeu, a lei que porventura infringiu?”8

As coisas ocorreram de tal forma que, em Maio de 1912, não havia um único bispo a residir na sua diocese e a administrá-la directamente. 

No seu “Apêllo aos Cathólicos Portugueses”, conhecido também por “Apelo de Santarém”, escrito em 1913, os bispos comentavam assim a situação da Igreja: “Querem encerrar a nossa vida religiosa (se tanto…) no recinto dos templos; querem despojar-nos de todas as liberdades, arrancar-nos todos os direitos, anular-nos toda a influência externa, privar-nos de toda a acção social. Expulsam o clero da escola; escorraçam-nos das funções públicas; proíbem-lhe toda a interferência na administração das coisas do Estado, e até na direcção e gerência das coisas do culto religioso Pretendem reduzir-nos à condição de ilotas, de párias, de estrangeiros em nossa terra…”9

 

O Inquérito Geral de 1914

A Lei, ao contrário do que os seus autores esperavam e supunham, não foi benéfica para o regime. Pelo contrário, pela reacção que provocou, ela veio fomentar a divisão entre os seus fautores mais ilustres, propiciar a sua fragilidade interna e preparar o divórcio fatal entre o povo e o regime.

Não faltaram por isso facções republicanas a querer amenizar a Lei e até a substituí-la.

O próprio José Relvas, nas suas memórias políticas, via mais tarde “a separação, tal como foi redigida, e na forma como foi executada, uma das fortes causas do divórcio de uma grande parte da opinião pública em Portugal em relação à República”. 10

Três anos decorridos depois da promulgação da Lei, conhecedora do desconforto geral da igreja portuguesa no tocante às medidas que limitavam a liberdade religiosa, magoavam os sentimentos mais profundos do povo e beliscavam gravemente as suas tradições mais sagradas, e talvez na intenção de por cobro a alguns do seus exageros e de tentar acalmar os ânimos exaltados contra o regime, a Comissão Central da Execução da Lei quis saber o pulsar geral do país sobre o assunto. A avaliar por certas perguntas, poderá mesmo imaginar-se uma abertura do governo de então para alterar na lei os pontos mais chocantes para a Igreja Católica ou mais prejudiciais ao bom relacionamento do povo com a política e o governo.

Para o efeito, elaborou um meticuloso questionário de 13 perguntas e, através do ofício nº 268, de 26 de Fevereiro de 1914, enviou-as aos Administradores dos Concelhos e aos Presidentes das Câmaras ou das Comissões Administrativas das mesmas, solicitando-lhes uma resposta urgente e o mais possível fidedigna.

Do questionário, constavam essencialmente seis questões fundamentais: 1ª- Se tinha havido nas freguesias e nos concelhos conflitos ou movimentos de contestação motivados pela Lei da Separação e quem tinha estado na sua origem; 2ª – Se tinham sido expulsos alguns padres do concelho por motivos relacionados com a dita Lei; 3ª – Quantos padres do concelho tinham aceite a pensão do Estado e se eram tolerados ou perseguidos por isso; 4ª- Se o povo continuava a sentir e a manifestar necessidade do culto religioso, se havia ou não fanatismo religioso e se a frequência dos templos aumentara ou diminuíra depois da proclamação da República; 5ª –Se a República estaria a ser prejudicada se a Lei permanecesse como estava, nomeadamente proibindo ou dificultando o culto externo; 6ª – Qual a opinião e o parecer geral de cada um dos inquiridos relativamente ao assunto em causa.

Não sendo possível, num trabalho deste âmbito, debruçar-nos sobre as respostas dos Administradores e das Câmaras de todo o país, limitar-me-ei aos concelhos do distrito de Viseu, a que pertenço.

Para o efeito, vali-me das respostas manuscritas de todos os autarcas do distrito desse tempo, enviadas à referida Comissão Central de Execução da Lei pelo Governador Civil de Viseu, respostas que se encontram inéditas no Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças.

No distrito, existiam ao tempo 24 concelhos distribuídos por duas dioceses: A diocese de Viseu, com 176 igrejas e a de Lamego com 237. 11

As respostas dos Presidentes das Comissões Executivas da Câmara e as dos Administradores dos Concelhos, de modo geral, são coincidentes. Parece até que terão trocado impressões sobre o assunto, para não haver notáveis divergências. A diferença está apenas no modo como cada um encara a questão, de acordo com as convicções políticas e os sentimentos religiosos de cada um, que ficam bem claros e expressos em muitas das questões, sobretudo nas de resposta mais aberta.

Em relação à primeira questão, sobre possíveis movimentos ou motins de reacção às disposições da Lei, apenas oito situações são descritas e explicadas, apontando-se quase sempre como seus instigadores os “párocos”, os seus “agentes” ou as “beatas”.

Casos mais interessantes: Em Vale de Remígio –Mortágua, “como protesto pela saída do Archivo Parochial” ; em Pala, no mesmo concelho, “por causa da entrega das chaves da Egreja quando a Junta as exigiu, dias depois de haver saído o respectivo parocho”; nas Antas, concelho de Penalva do Castelo, porque, na sequência da Lei da Separação, alguém partira as cruzes do cemitério. O pároco comentara o caso numa homilia, dizendo que era um serviço mal feito e chamando ateus aos autores da má acção.. O administrador intimara-o por isso para vir responder ao seu gabinete pelo seu comentário. Perante tal intimação, o povo amotinara-se e viera espontaneamente defendê-lo, exigindo que ele fosse livre para a sua freguesia; em Penela da Beira, concelho de Penedono, o pároco foi incomodado por se ter manifestado em público contra as disposições da Lei da Separação e do Registo Civil. Quando se apercebeu de que as autoridades o tinham levado preso, o povo amotinou-se, tocou os sinos a rebate e correu à vila exigindo a sua libertação; numa freguesia de S. Pedro do Sul, quando as autoridades fizeram o arrolamento dos bens da igreja e também quando, à passagem de uma procissão, dois indivíduos se mantiveram com a cabeça coberta, desrespeitando e ofendendo a crença dos demais; em Tarouca, por ser costume celebrar Missas antes do nascer do sol no dia 1 de Novembro e, com base na Lei da Separação, uma minoria se ter manifestado contra a celebração dessas Missas; finalmente, na cidade de Viseu, relatando o momento da saída do bispo para o desterro, o presidente da Comissão Executiva da Câmara assim refere: “Acorreram à cidade inúmeros grupos de pessoas principalmente mulheres capitaneadas por padres de muitas freguesias, deste e de outros concelhos…Um padre deitou discurso ao ar livre no Largo da Sé, onde se tinha reunido toda a multidão, para dali irem em sua manifestação para Fontêlo, então a residência do bispo. Houve vivas ao bispo e à santa religião mas, a certa altura, principalmente ao aparecimento de uma força, tudo debandou.”12

Relativamente à segunda questão – a expulsão de ministros ou pastores da Igreja – as respostas ao questionário     dão-nos conta de terem sido expulsos pelas autoridades de então os bispos de Lamego e de Viseu e 32 padres do distrito. A expulsão do bispo de Lamego é explicada pelo presidente e pelo administrador, do modo seguinte e sem qualquer comentário: “o motivo consta do decreto de 12 de Fevereiro de 1912, publicado no Diário do Governo de 13 do mesmo mês e ano”. Os inquiridos de Viseu dizem apenas: “foram expulsos cinco padres e o bispo, por não acatarem a Lei da Separação”.

Em relação aos padres expulsos, constam das respostas ao questionário: 18 só em Tondela, por terem lido a “célebre Pastoral do Bispo de Viseu por ele publicada sem o beneplácito, e por terem protestado na imprensa contra o castigo que ao referido bispo fora infligido”; 1 em Tabuaço, diocese de Lamego, por inobservância da lei do Registo Civil, inobservância que o administrador esclarece, dizendo que foi por “fazer um enterramento sem estar lavrado o Registo de Óbito”; 3 em Mortágua, por terem desobedecido à Lei da Separação; 5 em Viseu por terem feito propaganda contra a República e as suas leis; 13 5 em Santa Comba Dão, por terem lido à Missa Conventual a “Pastoral Colectiva”: dois deles foram posteriormente condenados pelo mesmo delito em processo correccional; e três que os tinham vindo substituir em cumprimento da pena do desterro que lhes fora também aplicada, por terem lido à Missa Conventual uma excomunhão emanada do bispo contra um clérigo que se casara.

No que diz respeito à terceira questão – sobre a aceitação da pensão que o Estado oferecera aos sacerdotes que a requeressem, em substituição de outras fontes de subsistência que lhes retirara – côngruas e passais – conclui-se das respostas ao questionário que, no distrito de Viseu, apenas a requereram e receberam 34. Vinte e cinco na diocese de Lamego: 1 em Armamar, 1 em Cinfães, 2 em Castro Daire, 3 em Lamego, 3 em Moimenta da Beira, 3 na Pesqueira, 1 em Resende, 2 em Sernancelhe, 4 em Tabuaço, 4 em Tarouca, e 1 em Vila Nova de Paiva. Na diocese de Viseu, apenas 9: 3 em Tondela, 2 em Viseu, 1 no Sátão, 1 em Nelas, 1 em Santa Comba Dão e 1 em S. Pedro do Sul. Existindo ao tempo no distrito à volta de 580 padres, 14os pensionistas resumiram-se a pouco mais de 5,5%. Uma minoria quase insignificante. Assim sendo, e aparecendo a sua atitude como uma desobediência ao seu bispo e uma traição aos seus colegas, 8 deles terão sido de algum modo afrontados ou perseguidos pelos colegas ou pela diocese. Tal perseguição consistiu na maior parte dos casos numa certa marginalização desses sacerdotes pelos seus colegas, recusando-se a trocar serviços pastorais com eles.

O caso de perseguição mais gritante terá acontecido em Tondela. O administrador do concelho refere o seguinte: “Têm sido ferozmente perseguidos pelos não pensionistas. Alegam estes que, desde que eles aceitaram a pensão, ficaram “ipso facto” excomungados e interditas as respectivas igrejas. Não cooperam com eles em qualquer acto de culto; concorrem para que os fiéis lhes não dêem Missas, retirando-os de assistir a actos por eles praticados, criando-lhes assim um ambiente hostil e prejudicial; em jornais afeiçoados são apontados ao público como indignos de continuar na sua missão etc. etc.”15

Dentro do mesmo assunto, não posso deixar de evidenciar o caso insólito que, de acordo com o administrador de S. Pedro do Sul, ali terá acontecido. Diz o senhor: “Neste concelho, nenhum padre aceitou a pensão. Há pouco, veio viver para aqui um pensionista do vizinho concelho de Castro Daire. Um Domingo, antes de principiar a Missa, uma rapariga disse qualquer coisa contra a validade da Missa do pensionista. Contestada por outras mulheres, tudo acabou por serenar. A rapariga foi depois processada mas aproveitou com a última amnistia, segundo me informaram.”16

À pergunta sobre a necessidade que o povo sentiria ou não do culto religioso e quais as suas motivações, das 48 respostas, só 4 diziam que não (os representantes de Carregal do Sal e de Santa Comba Dão), e outro que só os adultos (o administrador do concelho de Cinfães). Todos os demais afirmavam que sim, que o povo continuava a sentir necessidade do culto. Explicando as razões ou motivações de tal necessidade, a grande maioria fala de simples rotina e tradição, um ou outro de crença e fé, e um aponta como explicação a ignorância do povo.

Entre todos, pela curiosidade das suas respostas, vou citar apenas três: O presidente de Penalva do Castelo escreveu: “O povo dá evidentemente a conhecer o seu amor à Religião Christã (Cathólica) espontaneamente; podendo mesmo dizer-se que é mais religioso do que os próprios padres que, com algumas excepções, encaram a Religião como um modo de vida. Isto, devido à má escolha dos neolevitas.”17 

O administrador de S. Pedro do Sul respondeu: “A necessidade do culto religioso sente-se e manifesta-se, respeitando os párocos, presenteando-os, continuando com as suas festas predilectas, Confissões, Comunhões, etc. A maioria é levada por tradição, não conseguindo justificá-la ou baseá-la em razões de qualquer ordem, pela sua grande ignorância. Alguns é por crença viva, bem sentida e raciocinada. Poucos, por snobismo e como manifestação contra a República.18

O administrador de Cinfães opinou: “Só os adultos, que são essencialmente ignorantes e que estão fanatizados, sentem necessidade do culto religioso por tradição. De resto, uma pequena porção que o exibe, só o necessita por má fé e gozo.”19

À pergunta sobre o aumento ou a diminuição da concorrência aos templos depois da implementação da República, 31 respostas afirmaram que era a mesma, 11 que tinha diminuído e 6 que tinha aumentado e havia mais fervor religioso. O presidente da Câmara do meu concelho de Resende acrescentou: “aumentou como não há memória. Assim lavram os católicos o seu protesto”.20

Em alguns casos, há profunda divergência entre o presidente e o administrador do concelho nas suas avaliações, o que se explicará pela simpatia ou antipatia pessoal de cada um em relação à Religião ou também pelo desejo de agradar às autoridades centrais da República. 

Relativamente à questão de a República ser ou não prejudicada se a lei ficasse como estava e não se lhe fossem introduzidas alterações, 29 responderam que não, 18 que sim e 1 disse que tinha muitas dúvidas. Um ou outro dos que defendiam a Lei como ela estava, eram bastante irredutíveis dizendo: “facilitando-se o culto externo sofreria imenso a ordem pública”; 21tudo está bem assim desde que o elemento clerical reconheça nas autoridades administrativas a energia precisa para reprimir severamente todos os seus manejos e teorias antipatrióticas;”22 “facilitar mais o culto externo era dar demasiadas liberdades aos católicos que delas abusarão desrespeitando as crenças dos outros…”23

Dos que achavam que a República seria prejudicada se nada se alterasse na Lei, alguns manifestavam uma enorme convicção na sua resposta, dizendo: “evidentemente”; 24 “a intransigência demagógica tem sido a maior calamidade para a República”; 25estou convencido que a Lei da Separação é uma das causas principais da vida atribulada que a República tem vivido”.26

Entretanto, um dos que não achavam que a Lei prejudicava a República, alvitrava e sugeria porém que o artigo 43 da Lei devia ser modificado no sentido de se permitir a prática do culto antes do nascer do sol, e o artigo 55 no sentido de os consentimentos nele referidos serem dados por períodos de meses. 27

Finalmente, e em relação à última pergunta do questionário – um pedido de opinião ou parecer pessoal sobe o assunto – houve quem nada dissesse mostrando bem o desinteresse que o assunto lhe merecia e houve também quem aproveitasse o ensejo para manifestar a sua posição empenhada relativamente ao assunto em causa. Dos 48 inquiridos, responderam ao quesito 23.

As respostas destes últimos são muito díspares e por vezes antagónicas, até dentro do mesmo concelho. Quinze manifestaram-se a favor de alterações na Lei; cinco achavam que se devia manter tal como estava; e três pretendiam que a lei fosse alterada no sentido de a tornar mais radical.

A favor da sua modificação para melhor, pronunciaram-se os representantes dos concelhos de Castro Daire, Mangualde, Oliveira de Frades, Penalva do Castelo, Penedono, Resende, S. João da Pesqueira, S. Pedro do Sul, Tondela, Vila Nova de Paiva, e os presidente da Câmara de Viseu e de Vouzela. A favor da sua manutenção em toda a linha, os presidentes de Mortágua e de Sernancelhe, e os administradores dos concelhos de Sinfães, de Viseu e de Tondela. Pediram a radicalização da lei os representantes de Carregal do Sal e de Tarouca.

Na impossibilidade de registar todas as respostas, limitar-me-ei a citar textualmente uma meia dúzia que achei mais curiosas.

Em primeiro lugar, os que defendiam a sua manutenção.

Os representantes da Câmara de Mortágua, disseram: “Que a Lei da Separação das Igrejas obedece a um critério imparcial, racional, isento de preconceitos, de velhas e retrógradas theorias28. Para quem, como nós, vive neste meio, em contacto permanente com o povo, não é desconhecida a indiferença com que se recebeu a lei e que, se alguns factos de mínima relutância se deram, tiveram por móbil o egoísmo dos que se julgam prejudicados nos seus interesses e regalias pelos seus fanatizados agentes e por um ou outro acanhado espírito partidário. Parece-nos que qualquer reforma ou emenda que a transigência agora introduza na lei, não será duradoira porque outras se lhe seguirão em sentido muito radical, tendo por base a razão e não a fé, em harmonia com a igualdade profissional e o progressivo espírito social.”

O administrador do concelho de Cinfães recomendava: laconicamente: “Que se cumpra integral e urgentemente a lei da Separação para pôr fim à monstruosa acção jesuítica.”29

O administrador do concelho de Viseu, afirmava convicto: “O povo, na sua grande maioria, aceita bem a Lei da Separação, por ter contribuído para poder ter no serviço religioso padres que considera dignos de tal mister, afastando os fanáticos, intransigentes e gananciosos. Se não fora a propaganda dos padres reaccionários e reaccionários leigos que, para arranjarem adeptos políticos nos incultos, de má fé e tendenciosamente atacam a Lei, atribuindo-lhe intenções e disposições que não tem, para tentarem ferir a República e manterem o seu predomínio, seria bem aceite por todos os cathólicos”. 30

De seguida, o testemunho de alguns dos que defendiam alterações na Lei.

O presidente da Comissão Executiva da Câmara de Mangualde escreveu: “A lei deve ser modificada, de forma a permitir-se o culto interno e externo e fazer-se respeitar dentro e fora dos templos as crenças de cada um; e de maneira a serem sempre punidos severamente os ministros da religião que desta se servirem para fins políticos ou outros que não sejam meramente religiosos”.31

O presidente da Comissão Executiva da Câmara de Resende, opinou: “Neste concelho, nestes primeiros anos, foi-se aplicando a lei em tudo o que não pudesse levantar o protesto popular nem escravizar a consciência dos crentes. Na revisão da lei, devia-se atender às constantes e conhecidas reclamações do povo português, se querem que um dia ele sirva a República.”32

Mais explícito do que todos, o Presidente da Comissão Executiva da Câmara de Tondela, assim escreveu: “A opinião geral do concelho é a de que a lei da Separação deve modificar-se no sentido de permitir o culto externo; de se dar mais liberdade ao culto interno; de permitir o uso de hábitos talares; de permitir que os fiéis contribuam de qualquer forma para a sustentação do culto e do pároco; de entregar aos católicos os seus templos sem intervenção da junta da Paróchia; de modificar as restrições na aplicação dos  fundos das Irmandades; e de evitar a interferência do poder civil na hierarquia eclesiástica, ficando em tudo a prevalecer a supremacia e a inspecção do poder civil, de forma a evitar abusos.”33

Por último, as duas propostas de radicalização da Lei.

O administrador do concelho de Carregal do Sal, disse o seguinte: “A lei da Separação é o mais sólido fundamento desta República que, para ser respeitada e altiva no seio da civilização moderna, precisa tanto ou mais da libertação da consciência portuguesa, sempre subjugada até ao 5 de Outubro pelo clericalismo e pelo jesuitismo, como de progresso económico e de emancipação financeira da nação. Não tem essa lei hoje por inimigos senão aqueles que ilegitimamente auferiam, explorando o povo em nome da religião cathólica. Ao grande diploma, uma alteração única, e essa fundamental, há a fazer: o artigo 53º deve ser modificado no sentido de se proibir expressamente o ensino de qualquer doutrina religiosa a todas as crianças menores de quinze anos, a não ser no seio da família.”34

Por seu lado, o administrador do concelho de Tarouca sugeria: “A meu ver, a mais importante modificação a fazer â lei da Separação, com o que muito terá a lucrar a República, é retirar a todos os ministros de qualquer Religião os direitos políticos.”35

Guardei intencionalmente para o fim desta série de testemunhos os dois que achei, de longe, os mais curiosos de todos.

O presidente da Comissão Executiva de Penalva do Castelo, José Joaquim C. Lopes de Araújo, disse: “Oferece-me dizer, com toda a sinceridade, que o povo deste concelho, tanto o instruído como o analfabeto, na sua quase totalidade, veria com bons olhos que à Igreja se desse absoluta liberdade na sua esfera de acção especial (realizando-se o pensamento da Igreja livre no Estado livre) o que muito bem condiz com a verdadeira liberdade, igualdade e fraternidade que é o lema verdadeiro das democracias. Quem pensar agir de outra forma será tudo menos republicano; ou então excluam-se do dicionário português aquelas três palavras”. 36

Muito mais interessante ainda a resposta do administrador do concelho de S. Pedro do Sul: “Afigura-se-me errado o caminho seguido na questão religiosa. No que em resumo vou dizer, tenho incontestável autoridade pois, com 40 anos, há mais de 20 me abstenho de qualquer prática religiosa e tendo duas filhas, de 16 e 18 anos, nenhuma delas vai à Missa, se confessa ou comunga, o que neste meio constitui uma grave pedra de escândalo, porque ninguém mais tem a coragem de o praticar.

Que pretendem com esta Lei? Evidentemente acabar com a religião cathólica no mais breve prazo. Não discuto a oportunidade, a liberdade, a necessidade ou a conveniência de tal medida, nem me quero referir ao movimento hodierno de revivescência de espiritualismo que se está manifestando nos centros cultos da Europa e da América, pois são questões em demasia complexas para um desconhecido João Semana.

Querem apagar a religião cathólica? Seja. Mas que oferecem em troca ao povo destas montanhas? Nada. …Tiram-lhe as suas festas de igreja, as alegres romarias, as missas a grande instrumental, as suas procissões flamantes, molestam-no na sua vaidade de Juízes de Irmandades, reitores e mesários?! É pretender arrancar-lhes uma das mais reduzidas feições humanas, pois nesses actos ele sente que é humano, porque, no resto, é uma besta de trabalho para os filhos e para o senhorio.

Nas suas festas de igreja, ajoelha-se ao lado do patrão, do morgado, do ricaço do lugar; ao sair, fala de igual para igual para o grande proprietário que nesses dias magnanimamente lhe estende a mão, – e só então ele tem a intuição de que é um ser humano, pelo espírito. Destruir tudo isso? Mas que lhe oferecem em troca? Aqui não há a movimentação dos grandes centros com a sua vida e bulício modernos, não há tiatros, animatógrafos, coretos de música onde ele possa distrair-se e esquecer um pouco a enxada e o arado…E há mais ainda: Não falo já no menor consumo de géneros e de bebidas que não pouco afectaria a agricultura e o Estado; quero antes referir-me a que as relações sociais aqui só se dão quase exclusivamente nessas festas e feiras pois, no restante tempo, na maioria das aldeias, em casais isolados, as relações sociais são insignificantes ou quase nulas. É nessas festas e na missa de Domingo que falam dos seus negócios…e é aí que se iniciam e seguem os namoros para futuros casamentos. E assim essas festas, além de corresponderem à sua necessidade espiritual, têm também a sancioná-las um grande valor social… Arrancar-lhas? Afigura-se-me inútil a tentativa e perigosa em vários sentidos”. 37

 

Conclusão

Senhora Presidente,

Senhores Académicos,

Minhas Senhoras e meus senhores,

Vou terminar. Ao bom historiador compete mais investigar e expor friamente os factos e menos julgá-los ou classificá-los com critérios pessoais, subjectivos quase sempre.

Permitam porém que eu conclua estas palavras expondo-lhes a minha visão pessoal dos acontecimentos que acabo de referir.

1.— De tudo o que se passou nos primeiros anos da República, não me fica qualquer dúvida de que a intenção de alguns dos seus principais promotores era mesmo matar a Igreja Católica e destruir os sentimentos religiosos nos indivíduos e na sociedade. A Lei da Separação seria um primeiro passo para criar no país uma sociedade que prescindisse aos poucos de toda a inspiração ou influência cristã.

 Os “colarinhos brancos” da maçonaria portuguesa, que assumiram o leme da revolução, sabiam bem o que pretendiam: Afonso Costa, discursando no Grémio Lusitano, em 21 de Março de 1911, depois de anunciar aos seus correligionários que a “Lei da Separação da igreja do Estado” já estava pronta, dizia: “ Está admiravelmente o povo preparado para receber esta lei; e a acção da medida será tão salutar que, em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu.”38

Tal afirmação, veiculada pelos jornais “O DIA” e “O TEMPO”, é considerada hoje por alguns uma calúnia contra Afonso Costa, na medida em que ele próprio a teria vindo a desmentir mais tarde, em sessão da Câmara de Deputados.39

Os termos usados são porém muito divergentes e não passam de um sofisma do visado: os dois jornais falam de “eliminação do Catolicismo” e Afonso Costa de “eliminação dos sentimentos religiosos”, o que não é a mesma coisa, como é óbvio.

2.—Como sabemos, a perseguição à Igreja não foi uma novidade da Primeira República e não foi um fenómeno exclusivo do regime republicano. Em relação ao passado, a diferença estará apenas desaforo das medidas e na proporção das hostilidades.

3— A política adoptada em relação à Igreja não me parece uma atitude de quem está seguro, mas antes de quem se sente fragilizado e incapaz. É de realçar que os arautos da liberdade e da democracia tenham ameaçado com pena de prisão os ministros de qualquer religião que ousassem criticar em público os actos de qualquer autoridade pública, a forma de governo e as leis da república. (artº 48). Paradoxalmente, em minha opinião, o que se pretendia com essa perseguição à Igreja, era sobretudo subjugá-la, subordiná-la, controlá-la e pô-la ao serviço da Revolução e da República, para elas próprias poderem sobreviver. Por alguma razão, o mesmo Afonso Costa, no citado discurso, acrescentava: “Funciona a Igreja dentro do Estado como qualquer sociedade anónima. Tem, portanto, o Estado o direito de fiscalizá-la, exactamente como qualquer outra sociedade”. 40

Haja em vista os artigos 184 a 187 da referida Lei, onde se proibia o funcionamento dos seminários sem autorização prévia do governo e se restringia ao poder do Estado a nomeação de professores e empregados e a aprovação dos livros de texto adoptados nas suas aulas.41

O governo republicano estaria talvez a tentar criar uma “Igreja Nacional”, desligada de Roma e totalmente controlada pelo poder civil: uma nova edição do velho combate contra o “ultramontanismo” que já vinha muito detrás.

Por alguma razão o artigo 94 da Lei da Separação limitava o acesso à presidência dos actos de culto aos sacerdotes que fossem cidadãos portugueses e que tivessem feito os seus estudos teológicos em estabelecimentos de ensino nacionais, impedindo assim o acesso aos que tivessem estudado nas universidades romanas, nomeadamente os que tivesse frequentado o Colégio Português de Roma.

Caíram porém os políticos num grande logro, ignorando ou desconhecendo a grande ligação da igreja e do país com Roma e o papado e subestimando ou não prevendo a reacção do episcopado e de todos os crentes mais esclarecidos.

Em 1913, no referido “Appelo de Santarém”,  escreviam os bispos portugueses: “Cumpre-nos a nós, que, embora indignos, fomos constituídos atalaias vigilantes nos muros da mística Sião, tocar a unir fileiras, congregar as energias dispersas, em suma, organizar a acção católica em Portugal”. 42

A atitude firme do episcopado e a dos sacerdotes que serviam as comunidades cristãs, preferindo viver e morrer à míngua a abandonar o povo ou a dobrar-se debaixo dos poderosos, despertou a consciência dos fiéis e veio a provocar um renovamento inusitado da fé católica e um dinamismo religioso nunca visto até então.

4.—Se a Lei da Separação tivesse sido apenas e verdadeiramente uma Lei de Separação, teria sido para a Igreja Católica o melhor presente de todos os tempos.

A Igreja sempre ficou prejudicada na sua acção de evangelizar e promover as pessoas quando esteve junta, casada ou amancebada com a política e com o poder. Todos o reconhecemos hoje.

Basta lembrarmo-nos da maior parte dos bispos da segunda metade do século XIX: aliados ao poder, envolvidos alguns até nas disputas eleitorais como deputados às Cortes, descuraram os seus deveres de pastores e deixaram o clero e o povo à mercê de si próprios, da sua ignorância religiosa e até das suas sabidas devassidões.

O problema da Igreja Portuguesa não foi a Separação do Estado, mas antes o esbulho geral e fatal de que foi vítima. Se lhe tivessem deixado as estruturas indispensáveis para ela sobreviver – as igrejas, os seminários, as casas de residência e quintais anexos para subsistência dos seus ministros, a revolução só podia ser benéfica, porque uma igreja protegida e instalada perde o seu dinamismo e torna-se tíbia, insossa, medíocre e preguiçosa.

Se a separação fosse real, pacífica e mutuamente respeitosa, teria certamente sido muito melhor para a Igreja e também para a República: uma e outra evitariam graves incómodos e muitas dissensões. Nem o Estado tem que ser confessional, nem a Igreja precisa de ter privilégios.

Uma igreja livre, mesmo que seja pobre ou menos rica, é uma igreja mais viva, mais desperta e mais actuante.

O bispo de Lamego de então, regressando do exílio forçado de dois anos, assim dizia aos seus diocesanos em 12 de Março de 1914: “Esta perseguição à igreja é inútil, porque sempre a Igreja saiu das perseguições mais bela e radiante, mais cheia de vida. Assim como o ouro se depura no cadinho pelo fogo, assim a Igreja pelas perseguições. Não tememos a perseguição por nós nem pela Igreja: choramo-la pelas consequências nefastas para a nação”.43

Efectivamente, as revoluções, mesmo que difíceis, dolorosas, e até pungentes, também podem ser uma bênção celestial. E esta acabou por sê-lo. A Igreja, humana como também é, precisa de vez em quando de um abanão forte, de um sismo de alto grau, para acordar da letargia e da instalação em que se deixa cair, para se tornar mais pura e mais liberta, quiçá mesmo pobre e desprovida até do necessário, para adquirir um novo alento na fé e na caridade, e um redobrado dinamismo na evangelização da sociedade.

Bem hajam por me terem ouvido.

Lisboa, 6 de Abril de 2011

Comunicação apresentada na Academia Portuguesa de História pelo académico

Padre Joaquim Correia Duarte

 

Fontes utilizadas

– ACMF – Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças:  -questionários acerca da aplicação da Lei da Separação no país e respectivas respostas dos presidentes de Câmara e dos Administradores do Concelho do distrito de Viseu.

(arquivo digital : – ACMF/Arquivo/CJBC/INQUE/VISE)

-Diário do Governo nº 92, de  21 de Abril de 1911

-Boletins  e jornais locais, regionais e diocesanos (diversos)

 

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(NOTAS)

1             — Nogueira, José Félix Henriques  – Estudos sobre a Reforma em Portugal, Lisboa, Typographia Social, 1851,  pág. IX-X

2             —Teles, Basílio –Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, pág. 101

3             —Uma caricatura d’ O SÉCULO” , de 5- VIII-1909, da autoria  de Leal da Câmara, apresentava a Coroa Portuguesa sustentada pela Autoridade e pela Igreja.

4             —Lei da Separação, Cap. IV, artº 62

5             —Idem, Cap. II, artº 17

6             —Pastoral de D. João da Silva Campos Neves, 1 de Abril de 1956

7             —Lourenço, Joaquim Maria – Situação Jurídica da Igreja em Portugal, pág. 171-177

8             —Carta do Bispo de Lamego aos seus Diocesanos, Braga, Livraria Cruz & Cª , 1912, p. 27 e 28

9             —Appêllo do Episcopado aos Cathólicos Portugueses, Guarda, 1913, pág. 8-9

10           —História de Portugal, dir. de João Medina, Vol.X,

11           —Respostas ao “Questionário sobre a Lei da Separação” (Lamego e Viseu), anexas ao ofício nº 69 do Governo Civil de Viseu, de 16 de Março de 1914, in A C M F – Arquivo – CJBC-INQUE-VIS.

12           —Idem, idem.

13           —O administrador do concelho acrescenta que foram expulsos por ataque à República e desrespeito à Lei da Separação, e fala de um outro que conseguiu fugir para o Brasil ao saber que tinha ordem de prisão contra ele, ordem surgida em virtude de cumplicidade num atentado contra a segurança das actuais instituições.

14        —O Amigo da Religião nº 1278, de 27.07.13, cit. em “Portugal da Monarquia para a República”, in “Nova História de Portugal”, vol. XI, p. 480, dir. de Joel Serrão, Lisboa, 1991.         

15           —Respostas ao questionário da CCELS, 1914 – Tondela.

16           —Idem, idem – S. Pedro do Sul.

17           —Idem, idem – Penalva do Castelo

18           —Idem, idem – S. Pedro do Sul

19           —Idem, idem – Sinfães

20           —Idem, idem – Resende

21           —Idem, idem – Carregal do Sal

22           —Idem, idem – Sinfães

23           —Idem, idem – Tondela

24           —Idem, idem – S. Pedro do Sul

25           —Idem, idem – Resende

26           —Idem, idem – Oliveira de Frades

27           —Idem, idem – Castro Daire

28           —Idem, idem – Mortágua

29           —Idem, idem – Sinfães

30           —Idem, idem – Viseu

31           —Idem, idem -Mangualde

32           —Idem, idem – Resende

33           —Idem, idem – Tondela

34           —Idem, idem – Carregal do Sal

35           —Idem, idem – Tarouca

36           —Idem, idem – Penalva do Castelo

37           —Idem, idem – S. Pedro do Sul

38           — “O DIA”, ediç. de 29- III-1911, p.1; O TEMPO, nº 12, 27.03.1911, pág. 1-2

39           —Afonso Costa – Discursos Parlamentares, 1914-1926, pág. 46, citado por Oliveira Marques em Portugal da Monarquia para a República, Vol. XI da Nova História de Portugal, Lisboa, 1991, pág. 510

                “ Eu, senhor presidente, tenho sido acusado de muitas coisas, e, entre elas, a  de extinguir o sentimento religioso em duas gerações. Essa calúnia é de tal natureza que merece o sorriso e o desdém que, quase sempre, merecem os caluniadores.”

40           — “O DIA”, ediç. de 29- III-1911, p.1.

41           —Lei da Separação, artº 184-187,  in Diário do Governo, nº 92 de 21 de Abril de 1911.

42           —Appêlo do Episcopado aos Católicos Portugueses, Empresa Veritas, 1913, pág. 6

43           —Luciano Moreira, O Bispado de Lamego na 1ª República, p. 159

 

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