A Igreja do Futuro – Uma Igreja Mundial

António Salvado Morgado, diocese da Guarda

– Um apontamento –

O conhecido teólogo Karl Rahner (1904-1984) escreveu que o Concílio Vaticano II, acabado então de encerrar e de que fora um dos teólogos participantes, teria sido o primeiro concílio verdadeiramente católico e gérmen de uma Igreja Mundial em que assumiria expressões novas na diversidade de culturas e povos, razão pela qual se veio a divulgar a expressão Terceira Igreja por analogia ou paralelismo com a tradicional expressão Terceiro Mundo, utilizada no quadro do desenvolvimento das nações.

É por aí que começa um interessante volume da autoria de Jr. John L. Allen (1965), jornalista americano e autor de duas biografias do Papa Bento XVI, intitulado «La Iglesia del futuro: Diez tendências que están revolucionando la Iglesia católica». A obra é de 2009, mas a tradução espanhola – creio não haver portuguesa – é de 2016 em edição de Editora San Pablo. Como se depreende pelo subtítulo, nela se analisam dez tendências com que a Igreja se confronta. «Uma Igreja mundial» é precisamente a primeira dessas tendências.

No mundo ocidental em que nos inserimos estamos tão acostumados a falar e a ouvir falar tanto de questões pontuais, como o poder do Papa e democracia na Igreja, a situação da mulher na comunidade católica e sacerdócio feminino, o celibato clerical, a homossexualidade, que poderemos estranhar que um volume de muitas centenas de páginas assuma uma perspectiva tendencial descritiva, que não prescritiva, como faz questão de acentuar o autor.

Inspirando-se no historiador britânico Arnold J. Toynbee (1889-1975), John L. Allen distingue entre os assuntos sensacionais que podem originar bons títulos jornalísticos, mas que se encontram na superfície da vida e os movimentos, imponderáveis e pouco perceptíveis, que se produzem sob a superfície, mas que penetram nas profundidades da existência humana. Movimentos mais lentos, são eles que fazem a história e se agigantam no futuro quando os acontecimentos sensacionais e transitórios ficam reduzidos à sua dimensão verdadeira vistos na perspectiva dos movimentos mais lentos e menos visíveis, mas mais profundos e vitais.

Será esse o sentido das dez tendências caracterizadas por John L. Allen que apelida a obra como jornalística e não como uma espécie de «declaração de fé» embora, como católico, não esqueça que, para além de qualquer descrição da Igreja como a vê um sociólogo, há o ponto de vista sobrenatural na base do qual, com oração e reflexão espiritual, o crente empenhado poderá discernir para onde é que o Espírito Santo impulsiona a Igreja.

Os temas, assuntos e acontecimentos que fazem as manchetes dos meios de comunicação social ocidentais encontram-se bem presentes no desenvolvimento do texto de John L. Allen, mas ganham um novo sentido enquadrados, como estão, nas várias tendências ali descritas.

Confesso: li esta obra com inusitado interesse quando, no ano da edição espanhola, a adquiri numa livraria de Salamanca e muitas outras vezes a fui consultando em ocasiões específicas, como foi o caso do lançamento, por parte do Papa Francisco, do sínodo sobre a sinodalidade. Importava-me, então, conjugar a dimensão local da Igreja – paroquial, diocesana, nacional – com a dimensão universal. Tratava-se de alargar o olhar e tentar ver a Igreja Local à luz da Igreja Mundial, e ver a Igreja Mundial, inserida como está em múltiplos contextos sociais e culturais, à luz da Igreja Local, situada aqui na velha, cansada e problemática Europa que parece envergonhar-se do seu legado histórico. E digo, intencionalmente, Igreja Mundial cujo gérmen, segundo Karl Rahner, seria o Concílio Vaticano II, e não Igreja Universal que sempre o foi enquanto dispensadora da Graça do Evangelho a todas as gentes.

Revisitei, repito, esta interessante e bem fundamentada obra daquele jornalista americano quando, há anos, o Papa Francisco convidou a Igreja a pensar a sua dimensão sinodal. A sinodalidade, se bem entendia – e se bem entendo – apontava – e julgo apontar – para se ir além da dimensão meramente paroquial da Igreja e situar-se o crente, abrindo-se ao Espírito Santo, na dimensão de uma Igreja Mundial que vive, inculturando-se, num poliedro de culturas de que se tece a vida humana na Terra. Tarefa bem difícil que só o Espírito Santo pode efectuar, sendo os crentes seus instrumentos.

Recentemente revisitei a obra de novo. Foi quando li e reli a declaração Fiducia supplicans. Acompanhando a reacção de tantos no nosso mundo e, especialmente, dos bispos africanos, fui vendo que, mais uma vez, um assunto teve honras mediáticas e o sensacionalismso de superfície foi ignorando a profundidade vital. Socorrendo-me do índice analítico, consultei a obra. Não irei dizer o que encontrei, mas sempre direi que fiquei a pensar nos quatro princípios que Francisco refere na exortação apostólica “Evangelii Gaudiaum”: «O tempo é superior ao espaço», «a unidade prevalece sobre o conflito», «a realidade é mais importante que a ideia», «o todo é superior à parte».

E onde fica a Igreja Mundial e a Terceira Igreja?

Sendo que «o tempo é superior ao espaço», talvez o tempo do Espírito esteja a deslocar a Igreja Católica do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul, situação de que o Papa Francisco, vindo da Argentina do «fim do mundo», será disso já um sinal visível. Sendo que «a unidade prevalece sobre o conflito», talvez os conflitos e antagonismos que emergem nas igrejas do Hemisfério Norte potenciem novos lugares espirituais para todos e, particularmente, para as Igrejas situadas a Sul. Sendo que «a realidade é superior à ideia», talvez a realidade espiritual se imponha de tal maneira que as gentes do Hemisfério Norte venham a sentir a necessidade de serem evangelizadas pelas emergentes Igrejas do Sul: da África subsariana, da América ou do Extremo Oriente. Sendo que «o todo é superior à parte», também o todo é superior à soma das partes, sejam as partes do Norte e do Sul, como as partes do Oriente e do Ocidente.

Universal na mensagem, a Igreja é mundial pelas expressões que pode encarnar na diversidade de culturas, etnias, povos e nações.

Guarda, 8 de Fevereiro de 2024

António Salvado Morgado

 

 

 

 

 

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