António Salvado Morgado, diocese da Guarda
Não, o título não é um jogo de palavras. É a própria palavra “humanidade” que expressa realidades múltiplas, embora próximas. Nestes dias de Maio em que vamos ouvindo as palavras de Leão XIV, é por aí que me passeio, meditando.
A temática foi-me sugerida por muitos dizeres que fui encontrando nos meios de comunicação social logo após o falecimento do Papa Francisco. Ouviu-se e escreveu-se, e com razão, que a sua partida foi sentida como «uma grande perda para a Humanidade». Já num comunicado enviado pela Santa Sé aos jornalistas no dia 5 de Maio podia ler-se: «Falou-se também do perfil do futuro Papa: uma figura que deve estar presente, próxima, capaz de servir de ponte e de guia, de promover o acesso à comunhão numa Humanidade desorientada e marcada pela crise da ordem mundial. Um pastor próximo da vida concreta das pessoas».
Conduzido por estes dizeres, na manhã do dia 8 de Maio, enquanto ia olhando para a pequena chaminé da Capela Sistina a aguardar a saída do fumo sinalizador, vou ouvindo que se espera que o novo Papa esteja à altura das circunstâncias em que se encontra a Humanidade, e penso no que o Cardeal Giovani Battista Re, decano do Colégio Cardinalício que não estava presente no Conclave em razão da idade, lembrou aos cardeais eleitores, na missa “Pro elegendo Pontifex” da abertura do Conclave, ao reafirmar a necessidade de ser eleito «o Papa que a Igreja e a Humanidade precisam neste momento tão difícil e complexo da História.» Enfim, importava que os cardeais, à luz do Espírito Santo, reconhecessem a pertinência de um «Papa Pastor, mestre de humanidade, capaz de encontrar o rosto de uma Igreja samaritana, próxima das necessidades e das feridas da Humanidade.» Assim li e assim terão lido muitos outros comigo. E, como o pensamento voa, sendo ele a realidade humana mais livre, dei comigo a pensar em problemáticas cruzadas: Humanidade da Humanidade, Igreja da Igreja, Igreja da Humanidade e Humanidade da Igreja.
O Papa Paulo VI em Fátima, naquele Sábado de 13 de Maio de 1967, no Cinquentenário das Aparições, quando, na homilia da Santa Missa se referia à paz como «dom de Deus» que, não sendo um dom miraculoso, opera no segredo dos corações humanos e «tem necessidade da livre aceitação» dos homens, lança ao mundo o grito de despertar: «Homens, sede homens».
O apelo papal refere claramente dois significados da palavra “homem”, tal como os textos pré-conclave contêm dois significados da palavra “humanidade”, mas de que nem sempre nos apercebemos. Por um lado, “humanidade” significa aquilo que faz que o Homem seja humano, ou seja, a essência humana, o que nos conduz a problemáticas complexas como o direito natural, os direitos humanos e tudo o que se relaciona com a igualdade, a dignidade, a fraternidade ou a liberdade. Por outro lado, “humanidade” significa o conjunto dos seres humanos, considerados numa época determinada ou olhados em toda a sua história, ou seja, a Humanidade enquanto “género humano”, o que nos conduz a problemáticas complexas como a universalidade do direito natural e direito internacional e, no campo teológico cristão, a universalidade da redenção e a catolicidade da Igreja a que «todos, todos, todos» são chamados.
Mas uma coisa é o domínio do ser – realidade ontológica – outra a realidade do viver – realidade moral, social e política. Se a humanidade do homem, na sua realidade ontológica, é universal e intrínseca ao seu ser, a humanidade do homem, na sua dimensão moral, pessoal ou social, é uma realidade em construção. Nunca realizamos plenamente e na perfeição a essência ideal da realidade humana, pessoal e comunitariamente falando. Cada um de nós, com os outros homens e com Deus, é construtor de humanidade, como bem o afirma o Vaticano II [GS, 30).
Vivemos, nas palavras por que iniciámos estas considerações, «numa Humanidade desorientada e marcada pela crise da ordem mundial», que tem necessidade de um «Papa Pastor, mestre de humanidade, capaz de encontrar o rosto de uma Igreja samaritana, próxima das necessidades e das feridas da Humanidade.»
Chegamos assim a outros significados da palavra “humanidade”: a virtude de quem realiza em si a essência humana com plenitude possível e o sentimento de benevolência em relação aos seus semelhantes e de compaixão com os mais desfavorecidos e frágeis, feridos na sua dignidade.
A Humanidade, particularmente a Igreja, ouviu com a maior atenção as primeiras palavras dirigidas «à cidade e ao mundo» pelo Papa Leão XIV após a sua eleição. Se encontramos aí só uma vez a palavra “humanidade” para dizer que «A Humanidade precisa dele como ponte para ser alcançada por Deus e seu amor», o seu significado está repetidamente presente, nas dez vezes que aparece a palavra “paz”, nas treze vezes que aparece o pronome “todo”, no singular ou no plural, no masculino ou no feminino, quando se fala de «todos os povos», de «toda a terra», do «mundo inteiro» ou, simplesmente, do «mundo».
Deixemos aos filósofos a problemática múltipla e complexa sobre a natureza da realidade que corresponde à Humanidade enquanto conjunto de homens, Humanidade onde se cruzam factores múltiplos – materiais e espirituais, temporais e escatológicos, naturais e sobrenaturais – e fixemo-nos na sociabilidade essencial do ser humano que é a raiz da unidade da Humanidade para lembrarmos que nós, seres humanos, entrámos numa etapa relativamente nova, e talvez decisiva, da Humanidade em razão da mundialização e planetarização da vida humana, agora acelerada pelas novas tecnologias de comunicação. Assim sendo, se se impõe a organização moral de quantos vivem sobre a Terra, e se, perante os nossos olhos, se negam os direitos humanos e se desrespeita o direito internacional, cimento do entendimento e da paz entre povos e nações, mais se impõe também maior consciência da unidade da Humanidade e a necessidade de mestres de humanidade para os tempos de hoje.
Sabendo que, segundo o pensamento cristão, a família humana, a Humanidade que compreende todos os seres humanos no tempo e no espaço, possui unidade de origem, unidade de natureza, e unidade de vocação, mais se compreende ainda que o Papa Leão XIV tenha iniciado a primeira mensagem dirigida ao mundo, «a todas as pessoas, onde quer que estejam, a todos os povos, a toda a terra» com a saudação da paz com que Jesus Cristo Ressuscitado se dirigiu aos discípulos.
«Homens, sede homens» foi o grito de Paulo VI em Fátima A frase ficou e é citada com bastante frequência, mas esquece-se a sequência da homilia: «Homens, sede bons, sede cordatos, abri-vos à consideração do bem total do mundo. Homens, sede magnânimos. Homens, procurai ver o vosso prestígio e o vosso interesse não como contrários ao prestígio e ao interesse dos outros, mas como solidários com eles. Homens, não penseis em projectos de destruição e de morte, de revolução e de violência; pensai em projectos de conforto comum e de colaboração solidária.» E continua apelando à construção de «um mundo de homens verdadeiros, o qual é impossível de conseguir se não tem o sol de Deus no seu horizonte.»
Hoje é Leão XIV que, perante uma «Humanidade desorientada e marcada pela crise da ordem mundial», solicita a todos que o ajudem a «construir pontes» de humanidade e de paz para a Humanidade. Se a palavra “pontífice” significa etimologicamente «fazer pontes», o que o Pontífice de Roma pede à Igreja e à Humanidade é que todos sejamos pontífices com Ele. É a Igreja sinodal a caminho em encontro e diálogo com todos.
(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)