Luís Silva, Diocese de Aveiro
O país anda em polvorosa com as ações policiais. Encontrei a lupa para a sua análise numa situação simples do meu quotidiano.
Por sugestão da minha filha, estendi, ao longo da parede da minha sala, uma gambiarra de natal. Fixei-a em sete ou oito pontos, com recurso a pastilha de fixação (vulgarmente designada, por efeito do frequente fenómeno de ‘colagem’ de uma marca ao produto, como ‘bostik’). O efeito luminoso cadenciado entusiasmou-nos e tudo parecia estar preparado para que os enfeites de natal ficassem para durar.
Após a primeira noite, porém, a gambiarra foi parar ao chão. Um dos pontos de fixação cedera e arrastara toda a estrutura, ponto após ponto, por efeito da lei da gravidade, cujo imposto pagamos com a dificuldade em voar.
Na segunda noite, estive atento. Quando o primeiro ponto cedeu, reforcei a dose de ‘bostik’ e assim se manteve até agora. A estrutura não voltou a ceder.
A situação não podia ser mais exemplificativa do que a realidade portuguesa pedia que visse.
Somou-se, curiosamente, a esta situação quotidiana, a convergência de uma conversa em sala de professores. Contava-me uma colega que, dias antes, percorrera uma das ruas da cidade e encontrara, num troço de uma calçada portuguesa, uma pequena pedra levantada. Decidira repô-la no sítio.
Dias mais tarde, regressara ao mesmo ponto. A pedra que colocara tinha sido, entretanto, retirada e arrastara, entropicamente, outras que, pela sua deslocação, tinham deixado aberta uma ‘progressiva’ cova no chão tipicamente português (não sei se a calçada ou a falta de conservação são o que melhor ilustra o espírito português, mas serve-me, para aqui, a ambiguidade da expressão…).
Ambas as situações são ilustrativas e suficientemente exemplares para que delas se retirem as implicações de múltiplas ordens.
Veja-se como a sua aplicação pode fazer-se ao âmbito pedagógico.
É melhor e mais eficaz evitar a acumulação de problemas e dúvidas e ‘atalhar’ as dificuldades de aprendizagem quando elas se apresentam, em vez de esperar pela acumulação de progressivas dificuldades em que já só planos profundamente transformadores poderão permitir alguma resposta, mas com enormes custos em termos de recursos e com expectativa menor de resultado positivo.
Já Steven Levitt e Stephen Dubner, no seu livro ‘freakonomics’, tinham feito uma constatação coincidente com estas intuições. Nos Estados Unidos, os estados com molduras penais mais pesadas (com pena de morte, por exemplo), não são, necessariamente, os que têm menos crimes. A inibição dos crimes não se faz com a ameaça de penas mais pesadas, mas com a eficácia no combate aos pequenos delitos. Se sei que o pequeno delito será punido, isso inibe o progresso para crimes mais graves. Se, pelo contrário, só se ameaça com penas pesadas, os que têm ‘tentação’ do crime confiarão, sempre, na sorte e na expectativa de que não lhes chegue a ser aplicada essa pena.
Ora, é notório, com estes dados, que, mesmo que, politicamente, tragam menos benefícios eleitorais a prevenção e inibição do crime pela punição dos delitos logo no seu emergir, é o método mais eficaz para que se possa garantir uma sociedade pacífica. E, bem certo que, numa democracia que vive dos resultados eleitorais, a tentação será a de mostrar resultados de grande monta, em vez de se dedicar a cuidar e conservar, evitando o avolumar perigoso do peso do ponto de fixação que cede… Mas o que queremos, como sociedade?
Recupero, para a consolidação desta resposta, o que conta Baltasar Garzón, o super-juiz espanhol entretanto caído em desgraça, no seu livro ‘Um mundo sem medo’. Recorda este juiz que o combate ao crime organizado precisa de gente corajosa, que não se deixa vencer pelo medo (onde há medo, não há liberdade!), mas que, para que essa gente corajosa possa atuar, precisa de receber sinais da sociedade. No caso do combate contra a máfia italiana, a operação ‘mãos limpas’ precisou do envolvimento do povo, cansado do crime e da insegurança e que, pouco a pouco, foi dando pequenos sinais (atirar uma pequena moeda para o chão, quando se aproximava um mafioso…) para se agregar em torno da causa que veio a limpar a Itália da influência mafiosa. A operação veio a ser desencadeada após a morte do incorruptível Juiz Guiseppe Falcone, assassinado com a família, pela Máfia, durante uma viagem de carro.
Para os que se interessam com resultados eleitorais, deixar avolumar os problemas permite tornar mais visíveis as respostas, com custos cifráveis e fotografáveis. Mas uma sociedade justa, equilibrada e assente na autêntica paz, que não se faz com recurso ao aumento do som das armas, é feita de decisões pouco visíveis, mas que asseguram a tranquilidade e impedem o que muitos designam como ‘mexicanização’ das sociedades.
O sonho está nas nossas mãos. O ponto de fixação soltou-se? É preciso voltar a fixá-lo… A gravidade não perdoará se deixarmos que outro ponto vacile.