Ir. Maria José Diegues de Oliveira, sfrjs
A propósito da publicação da obra poética “A Anatomia da Fome”[1], na Semana Santa de 2022, partilho algumas reflexões sobre o significado deste termo, FOME, com múltiplas abordagens semânticas, abrindo depois para a apresentação de uma figura da nossa história recente, um pouco desconhecida, mas que nos pode trazer desafios de meditação ao modo como orientamos a nossa “fome”: a Ir. Maria de S. João Evangelista.
Afinal o que é a fome? Será apenas aquele terrível sofrimento que nos consome as entranhas e a própria vida? Na verdade, sem o sentido da fome inscrito no ímpeto da sobrevivência, talvez morrêssemos de inanição. Na minha perspetiva a fome desenvolve-se espontaneamente, mas vai tocar ou até provocar três realidades que nos movem: o instinto, a vontade e o desejo. Ela pode ser conotada apenas no plano fisiológico, mas vai muito para além dele, até afetar as nossas moções e emoções. Os motores da nossa caminhada humana.
O facto de Jesus proclamar felizes os pobres (Mt 5, 3) e os que padecem de algum tipo de carência será apenas um discurso demagógico, de consolação fútil, ou é um programa que nos faz mover no encalço da plenitude? Talvez Jesus queira que entendamos a fome como um móbil. De facto, a fome pode levar-nos muito longe. E não é longe que queremos chegar? Mas a que longe!?
Na Quaresma de 2016, o Pregador da Casa Pontifícia, Padre Raniero Cantalamessa, desenvolveu algumas catequeses sobre a Constituição Sacrosantum Concilium, um documento fundamental do Concílio Vaticano II sobre a Liturgia. Na primeira pregação intitulada “A adoração em espírito e verdade, reflexão sobre a Sacrossantum Concilium” o Pe. Cantalamessa salientou alguns aspetos ligados à oração, ao culto e à ação do Espírito Santo na vida da Igreja. Uma citação de S. Basílio, abriu-me caminhos de reflexão: “Qual é hoje, para nós cristãos, aquela cavidade, aquele lugar, onde possamos refugiar-nos para contemplar e adorar a Deus? É o Espírito Santo! Quem no-lo disse? Foi o próprio Jesus, que disse: os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade.”[2]
A cavidade ou fenda do rochedo está presente em inúmeras passagens do Antigo Testamento, todas encaminhadas numa linha de revelação de Deus e de relação amorosa com Ele. Desde o pedido de Moisés que deseja ver a Deus e é colocado na cavidade do rochedo, até à Esposa do Cântico dos cânticos a quem o Esposo interpela: “Minha pomba, nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos, deixa-me ver o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz. Pois a tua voz é doce, e o teu rosto encantador.” (Ct 2,14). As rochas erodem até à areia, até ao pó, e daqui se fazem caminhos, onde um povo saboreia a dor da libertação. “De tanta pedra quebrada, faz-se o caminho no deserto/ para que, a céu aberto, travemos o combate de te conhecer./ Doravante, em cada grão de areia que pisar/ hei de soletrar a passagem da tua formosura.”[3]
A dureza da rocha é vencida pela vara de Moisés para dela sair a água que alimentará a travessia deste povo pelo deserto. A rocha que verte água há de ser imagem do peito de Jesus que é aberto pela lança para dele sair sangue e também água, símbolos dos sacramentos.
A cavidade bíblica é um espaço de teofania, lugar recôndito onde Elias descobre o Deus de Quem fugia, e no Novo Testamento é a gruta de Belém e a estalagem de Emaús, lugares onde nasce o pão da Eucaristia; é o esconderijo onde se morre com Cristo. A cavidade da rocha é o sepulcro… o de Lázaro e o de Cristo, não um lugar de morte, mas do processo de gestação, ventre da Vida, que remete para o ambão nas nossas igrejas, onde Jesus continua a nascer, como revelação, da Palavra. A cavidade da rocha é o lugar onde renascemos no batismo os que fomos sepultados na morte de Cristo, para participar na sua ressurreição. “As fendas dos rochedos são boas para os ninhos!”[4]
O título deste livro foi elaborado a partir deste movimento no qual a criatura se prepara para receber a Deus. Como um cálice. Também aquele cálice que Jesus toma na última ceia e no qual verte o seu sangue. A criatura despoja-se para gerar um vazio. Mas não é o vazio como meta, é o vazio como disponibilidade para a Presença, escavando-se até ao ponto de poder dizer com S. Paulo “Já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim.” (Gal 2, 20).
Ao proclamar bem-aventurados os pobres, os que têm fome, os que não se rendem às ditaduras de fartura deste mundo, Jesus pede-nos que elaboremos esta cavidade, esta fome, este vazio, este silêncio para que nos possa envolver e habitar o Hóspede. Foi esta cavidade que Maria engendrou ao aceitar a gestação do Verbo, ao fazer-se Sacrário e irradiação da Vida. O vazio nunca é destinado a esgotar a nossa atenção em nós mesmos. Isso seria narcisismo e orgulho. O vazio destina-se a criar espaço. Para alguém, para Alguém!
Ao falar de fome de Deus também podíamos falar de sede. Mas esta é mais conotada numa dimensão espiritual. A fome leva-nos para um ponto muito material. Não só ao nível humano, mas também espiritual. A espiritualidade tem um corpo, tem a sua solidez. A fome tem algo de palpável, de analisável aos sentidos e, ao nível semântico, leva-nos para diversos sentidos que é importante refletir.
Surge aqui a proposta de “dissecar a origem da fome real e descobrir as causas profundas dos apetites humanos, a mecânica dos sentimentos, a articulação dos pensamentos, a morfologia do sentido da vida, a organização dos tecidos espirituais. Aqui se constroem e desmontam a sede e a fome do espírito humano. A Bíblia e a espiritualidade cristã estruturam a coluna vertebral desta observação espiritual.”[5]
A fome é um poderoso instrumento de procura. Impele-nos à sobrevivência. Situa-se entre a morte e a vida. É um meio privilegiado para chegar ao outro. Pode ser convertida num manjar de relações. A fome desemboca na refeição que, quando é partilhada, se multiplica em sabores. A arte da culinária surge nesta dimensão de relação, de proporcionar a afinação do paladar e combiná-lo com vários tipos de sabores, os fisiológicos, os humanos e os espirituais.
Mas há também um tipo de fome voluntária que importa realçar, o jejum, que trabalha o ser humano até ao ponto de o fazer ciente que não se vive “só de pão, mas da Palavra que vem da boca de Deus” (Mt 4, 4). O verdadeiro jejum transforma-se em partilha, ajuda a criar esse espaço, essa cavidade para receber o outro na própria vida.
Mas se a fome é bem-aventurada, como nos diz Jesus, também há um aspeto de perversidade dentro deste tema que é necessário denunciar: é o facto de haver tantos seres humanos no mundo que não têm acesso aos bens de que a terra é pródiga e faria chegar para todos. Mas se é tão mau ser sujeito a uma fome injusta também é muito mau não sentir fome. Além da falta de alimento, que tem de se denunciar, há também uma falta de fome que nos empurra para o comodismo e para a indiferença. Temos no mundo o sério problema da fome, mas talvez não seja menos problema o facto de muitas pessoas não sentirem fome, de estarem satisfeitas, refasteladas nas suas seguranças, sem fome dos outros, sem fome de Deus. Sem precisarem dos outros, sem precisarem de Deus.
Muitos dos nossos contemporâneos não têm ou deixaram de sentir necessidade de salvação, como se tivessem neste mundo uma morada permanente, que podem controlar com um certo esforço humano ou manobras mais ou menos inteligentes. Deixar de almejar mais, deixar de haver um bem melhor no horizonte pode ser a maior desgraça de um ser humano. E quem imagina o Céu como uma instalação num outro lugar, à imagem e semelhança das condições de conforto deste mundo, que pode esperar de um Deus que supera sempre a nossa expectativa?! “Leva-me, meu Amor,/ esconde-me na largura do teu anseio,/ só me entenderei na amplidão do teu pensamento/ só sobreviverei na profundidade da tua visão.”[6]
Talvez muitos dos problemas sociais são devidos ao facto de que muitos de nós deixaram de ter fome, ou talvez tenham esmorecido a consciência de que somos seres famintos e que podemos e devemos esperar mais de Deus, “muito além dos nossos méritos e desejos”[7]. É doentia a sociedade em que as pessoas chegam a um ponto em que não precisam das outras, em que se sentem autorizadas a levar uma vida independente e solitária, construindo ilhas, ficando gradeadas nas suas defesas, numa desconfiança militarizada.
Jesus apela à fome e à sede de justiça e elogia a pobreza. Será desmancha prazeres este Jesus, que nos parece desencorajar ou até proibir os prazeres da vida? E, no entanto, há uma fome que não conseguimos apagar, mesmo com os nossos esforços, mesmo que a confundamos com os apetites mais diversos. Este livro tem também como objetivo ajudar-nos a conhecer a fome que vive dentro de nós, e que deve ser evangelizada. E qual é, no fundo, esta fome? É mister descobrir que somos seres famintos de Deus, mesmo por detrás das capas das nossas ambições, que muitas vezes nos podem levar por sendas absurdas ou insensatas.
Alzira da Conceição Sobrinho (1888-1982), natural da aldeia de Pereira, Mirandela, viveu toda a sua vida, uma intensa paixão por Jesus Eucaristia. Também foi uma inspiradora deste livro, como faminta de Deus. A sua fome situava-se dentro da perceção de um Deus presente, com um Corpo, o Corpo Eucarístico. Por isso, mais que uma fome espiritual, ela ambicionava conservar-se na Presença física de Jesus, na sua presença Eucarística onde acreditava estar realmente em Corpo, Alma e Divindade. E era um desejo impetuoso e vital: “Jesus meu querido Esposo da minha alma e coração, és a vida, sem ti não posso viver!”[8]
Além de O querer comungar e fazer-se um com Ele no Sacramento do seu Corpo e Sangue, ela desejava retribuir a presença, em louvor e adoração Àquele que, por amor ficou no Sacrário “prisioneiro”, como ela o entendia, não podendo tolerar que não fosse continuamente reconhecido, reverenciado e adorado. Para tal ela percebia de Jesus o pedido para que os verdadeiros sacrários fossem as pessoas vivas. Ela quis tornar-se esse sacrário e, num tempo em que era impensável que uma Hóstia Consagrada pudesse ser manuseada por uma mulher, Jesus concede-lhe o milagre dessa presença. Provada de múltiplas formas, Jesus manifestou, por diversas vezes, que se queria fazer presente, junto daquela que tanto desejava a sua presença: “a minha fome por Jesus era das mais devoradoras, pois a saudade me matava!”[9]
No dia 10 de junho de 2022, passam 40 anos do falecimento desta mulher. Nesse ano ocorria à data, a celebração da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue do Senhor, a festa dos seus encantos. Neste ano de 2022, vai ser realizada uma Jornada de Espiritualidade Eucarística que quer fazer salientar a originalidade da mensagem de Jesus que por ela foi veiculada e que hoje está viva e atuante na Congregação cuja fundação ela inspirou e no Movimento Eucarístico de Leigos que partilha desta espiritualidade.
Os muitos manuscritos da Ir. Maria de S. João (Alzira da Conceição Sobrinho, também conhecida por Alzirinha) que o Arquivo da Congregação guarda atestam uma mensagem que Jesus quer revelar ainda hoje e que se situa no âmbito do reconhecimento da sua presença Eucarística, uma “presença muito especial, que – para usar palavras de Paulo VI – «chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem».”[10]
Se a fome descontrolada é um perigo, também não é menos verdade que é a fome que nos faz progredir e caminhar, lutar pelo bem melhor. Como são felizes os que a orientam para a Beleza, para Deus… A “felicidade é vazia”!
Ir. Maria José Oliveira,
Congregação das Servas Franciscanas Reparadoras de Jesus Sacramentado.
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[1] OLIVEIRA Maria José Diegues, A Anatomia da Fome, Ed. Paulinas, 2022
[2] S. Basílio, De Spiritu Sancto, XXVI, 62.
[3] Do poema “A cavidade do rochedo” in A Anatomia da Fome, Ed. Paulinas, 2022, p.59
[4] Do poema “Nascentes de voos” in A Anatomia da Fome, Ed. Paulinas, 2022, p.52
[5] D. Carlos Moreira Azevedo, Prefácio A Anatomia da Fome, Ed. Paulinas, 2022, p.52
[6] Do poema “Fome do Céu” in A Anatomia da Fome, Ed. Paulinas, 2022, p. 68
[7] Missal Romano, Oração coleta do XXVII Domingo do Tempo Comum
[8] Alzira da Conceição Sobrinho, Acto de petição ao Ssmo Sacramento, 22-10-1916
[9] Alzira da Conceição Sobrinho, Apontamentos particulares de consciência, II
[10] S. João Paulo II, in Ecclesia de Eucharistia, 15