A Festa e o drama

Homilia do Cardeal-Patriarca no Domingo de Ramos 1. Com esta Liturgia iniciamos a celebração pascal. A Páscoa é uma festa, a maior festa cristã, a fonte das alegrias verdadeiras e profundas. Todos pudemos já experimentar essa alegria, quando comungamos o corpo eucarístico de Cristo Vivo e fonte da vida, quando o Seu amor sentido reacende a nossa esperança e a nossa capacidade de viver; quando, movidos por esse amor, amamos os nossos irmãos como Ele os ama, gerando a experiência da comunhão, a única que solidifica, na nossa vida, a alegria e a festa. Cristo Vivo, porque ressuscitado e vencedor da morte, encerra, para nós, o segredo da vida. Mas a alegria da Páscoa encerra o drama da Paixão; e a Eucaristia, principal expressão da festa cristã, é o sacramento da morte e da ressurreição de Jesus. Nós os cristãos, aprendemos com Jesus Cristo que não há festa sem drama, que a alegria é a flor que brota do sofrimento, que o Senhor compara a uma semente fecunda lançada à terra, que a verdadeira felicidade se constrói na coragem, na dor, no dom da própria vida. A Liturgia deste Domingo de Ramos evoca, toda ela, a complementaridade entre a festa e o drama. A exaltação messiânica nas ruas de Jerusalém, se seguisse a lógica da alegria fácil e da festa superficial, teria de conduzir à solene entronização de Jesus como Messias Rei, vencendo o inimigo ocupante e distribuindo lugares de honra aos seus amigos, como lhe tinham pedido Tiago e João: “Concede-nos que na Tua glória, nos sentemos, um à Tua direita e outro à Tua esquerda” (Mc. 10,35). Nem perceberam que Jesus lhes anunciara, imediatamente antes, a verdadeira profundidade da Sua glória: os representantes do povo iam matá-l’O, mas Ele ressuscitaria ao terceiro dia (cf. Mc. 10,32-34). Jesus ia a caminho de Jerusalém por causa da festa. Naqueles dias era a grande festa, a da Páscoa e dos Ázimos (cf. Mc. 14,1). Jerusalém regurgitava em ambiente festivo, com forasteiros, vindos de toda a parte, por causa da festa. E foi nesse ambiente que os Sumos Sacerdotes resolveram matar Jesus. No início, os discípulos de Jesus não perceberam a dimensão dramática daquela festa. Certamente entusiasmados com a recepção em Jerusalém, perguntam simplesmente a Jesus: “Onde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a Páscoa?” (Mc. 14,12). E prepararam tudo como estava previsto na tradição religiosa de Israel. Mas aquela festa pascal teve a densidade da oferta que Cristo faz da Sua vida. Aquele pão torna-se o Corpo de Cristo oferecido para o sacrifício da Cruz, e a taça da fraternidade é agora o cálice do Seu Sangue derramado. Tiago e João terão, talvez, compreendido a pergunta que Jesus lhes tinha feito: “Podereis beber o cálice que Eu bebo e ser baptizados com o baptismo com que Eu sou baptizado?” (Mc. 10,38). Não haverá festa pascal, alegria da vida em plenitude, sem aceitar beber daquele cálice, sacrifício misterioso do sofrimento oferecido. Naquela noite, a festa e o drama ficaram unidos até à eternidade. Ao Seu próprio Filho, de condição divina, Deus só O exaltou com a plenitude da Glória que lhe pertencia enquanto Verbo eterno, depois de, na Sua humanidade, ter sido humilhado, tomado a condição de servo e ser morto na Cruz, com a mansidão de quem obedece (cf. Fil. 2,6-11). 2. Uma das fragilidades da nossa cultura contemporânea é o conceito de felicidade fácil que gerou, contentando-se com alegrias momentâneas e efémeras, que nem sequer são, tantas vezes, a semente da verdadeira e definitiva felicidade. Esquecemo-nos que a felicidade é um caminho longo, que supõe a purificação, a coragem de abraçar as exigências e o sofrimento. A quantos desejam rapidamente e sem sofrimento fazer a festa da vida, o Evangelho deixa a mesma pergunta: “podeis beber o cálice que Eu vou beber?”. Quem recusar o sofrimento e a exigência da fidelidade, a que o Evangelho chama obediência, nunca experimentará a festa da Páscoa. A alegria cristã está ligada à fidelidade generosa e corajosa. Ser fiel é tocar, num momento, a beleza da vida e nunca mais desistir dela, custe o que custar, dure o que durar. É assim no amor, é assim na vocação que escolhemos, é assim na determinação de encontrar a alegria da vida no dom generoso dessa mesma vida, para que os outros possam festejá-la connosco. Mas a que assistimos nós? Nas relações de amor, na fidelidade à vocação escolhida, na prossecução de um ideal, desiste-se perante as dificuldades encontradas e começa-se de novo, à procura de outra festa. Passa por aí a fragilidade da família, a fraqueza das vocações consagradas, a desilusão dos ideais. Os cristãos têm uma única festa, a da Páscoa de Jesus, e entram nela, os que aceitarem o Seu chamamento de abraçar a própria Cruz e O seguir. Um autor recente chamou à alegria dos cristãos a “festa dos loucos”. Também São Paulo ensinou que a Cruz de Cristo era escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para aqueles que foram chamados a seguir o Senhor, ela é força e sabedoria de Deus (cf. 1Co. 1,23). Na humildade da sua fé, na coragem da sua perseverança, talvez no silêncio da sua discrição, há, na Igreja de hoje, muitos cristãos que podem celebrar a festa da Páscoa. Penso nos casais, que vencendo as dificuldades e resistindo a tentações, se mantêm fiéis, aprofundando sempre o seu amor; penso nos jovens que, remando contra a corrente, querem seguir generosamente Jesus Cristo; penso nos doentes que oferecem, com confiança, o seu sofrimento. Aquando do Congresso, os doentes aprenderam a ser missionários apenas através do sofrimento oferecido. Quero abraçá-los a todos, nesta festa da Páscoa, festa que não exclui o drama e que encontra na alegria a verdadeira grandeza do coração humano. Todos podem vir à festa se se converterem, ou seja, se responderem ao desafio de Jesus: “Podeis beber o cálice que Eu vou beber?”. 3. A conversão é a experiência cristã, onde a festa e o drama se encontram mais profundamente. A parábola do Filho Pródigo (cf. Lc. 15,11-32) mostra-o bem. O filho pródigo começa na festa da vida, vivendo-a ao sabor dos apetites, passa pelo drama da degradação e pela luta interior, que lhe dará coragem de regressar, e acaba na festa da reconciliação com o Pai. Converter-se pode ter a densidade de um drama. Há opções a tomar, dúvidas a esclarecer, obstáculos a vencer, bens efémeros a deixar cair. É como “nascer de novo”, o que tem a ousadia da esperança e a exigência da confiança. Converter-se pode significar rasgar o coração, para que nasça um coração novo. Mas a alegria que brota dessa mudança, dessa coragem de “nascer de novo” é das mais jubilosas e libertadoras que pode sentir o coração humano. Em cada conversão revive-se a Páscoa de Cristo, no drama da Paixão e na alegria da Ressurreição. A alegria cristã é profunda, e purificada na dor. Acreditar em Jesus Cristo e segui-l’O, significa sempre aceitar que Ele nos mude a vida. Nesta Páscoa, não voltemos a cara à exigência da conversão, para partilharmos a alegria da Festa da Vida. Sé Patriarcal, 9 de Abril de 2006 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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