D. Manuel Felício, Bispo da Guarda 1. Celebramos a Festa da Sagrada Família. Na nossa meditação, diante do Presépio, contemplamos, em primeiro lugar, o Menino Jesus, pequenino e frágil como todas as crianças; contemplamos uma Mãe agradecida pelo dom do seu Filho e atenta a todos os pormenores para que nada lhe falte; contemplamos a responsabilidade de um Pai, vigilante e atento, que, sem descurar as suas responsabilidades sociais – fez uma longa viagem, de Nazaré a Belém para cumprir o dever do recenseamento – cuidou zelosamente do Filho que Deus lhe confiou recém-nascido num curral de animais, porque não houve para ele lugar nas casas da cidade; vemos o amor de um casal inteiramente dedicado aos cuidados da criança que acaba de nascer. 2. A Palavra de Deus hoje escutada convida-nos a meditar sobre a realidade de todas as Famílias, à luz do modelo da sagrada Família de Nazaré. Vamos ter em conta também que este é o último dia do ano comemorativo dos 25 anos passados sobre a publicação da carta do Papa João Paulo II sobre a Família – a “Familiaris consortio”. Assim o livro de Siracide ou Bem-Sirá e a carta aos Ccolossenses lembram-nos, cada um à sua maneira, que a Família é, em si mesma, comunidade de amor. E, por isso, é a partir do amor que se hão-de organizar e avaliar as relações familiares. É o amor que regula, no espaço familiar, as relações entre marido e esposa, dos pais para com os filhos e dos filhos para com os pais. E na medida em que o verdadeiro amor for a fonte e a força reguladora das relações no seio da Família, os pais com naturalidade honram os filhos e os filhos honram os pais; marido e mulher honram-se também mutuamente, na fidelidade um ao outro. Por outras palavras, cada um saberá criar todas as condições para que a vida cresça e se desenvolva em si mesmo e em todos os outros membros da família. Promover a vida, protegê-la e defendê-la de todos os perigos, criando-lhe, em contrapartida, todas as condições de desenvolvimento, necessariamente ligado à educação e à transmissão dos valores, é a missão fundamental da família, que faz dela a instituição básica da sociedade. A própria correcção fraterna, indiciada hoje na carta aos Colossenses, tem a sua justificação, dentro das Famílias, na necessidade de promover os grandes valores necessários à convivências e ao bem estar social, como são a bondade, a humildade, a mansidão e a paciência; mas principalmente a capacidade de perdoar, sabendo cada um suportar as fraquezas e as limitações dos outros, a exemplo de Jesus Cristo. Agora, como sempre aconteceu, no seio de cada família, nem todas as atitudes e comportamentos de cada um dos seus membros são compreensíveis de imediato, mesmo quando brotam das intenções mais rectas. Também José e Maria não entenderam a atitude de Jesus que, levado ao Templo quando tinha 12 anos, numa aparente atitude de desobediência, decidiu ficar entre os doutores e não acompanhar os pais de regresso a casa. E fez isto no estrito cumprimento da missão que o pai lhe confiava. Maria e José não compreenderam à primeira, tiveram um primeiro esboço de repreensão, mas de imediato, acolheram o misterioso plano de salvação de deus Pai, meditaram nele e foram-no compreendendo aos poucos. 3. A Família é, assim, o verdadeiro Santuário da vida humana. Diz a esse propósito, a carta encíclica do papa João Paulo II sobre a Família – “Familiaris Consortio” o seguinte: “a tarefa fundamental da Família é o serviço à Vida” (n. 28 §2º) Ora o serviço à vida começa, quando marido e esposa, diante de Deus e da sua consciência decidem gerar um novo ser humano, exercendo assim a sua paternidade consciente e responsável. O serviço à vida continua quando a criança pequenina e mesmo ainda no seio da sua mãe é bem tratada, bem acolhida; quando lhe são criadas todas as condições para o desejável desenvolvimento equilibrado, o qual é sempre o cumprimento de um projecto que já está todo presente no seu início, no embrião. Basta dar tempo ao tempo e respeitar o seu crescimento para virmos a ter um ser humano adulto, amadurecido e a caminho sempre da sua plenitude. Marido e esposa, pai e mãe, sabem, que desde o início de uma gestação, estão diante de alguém que não lhes pertence, alguém que não se identifica com a mãe que o traz em seu seio, mas vai progressivamente construindo a sua autonomia. De facto, e a ciência comprova-o, uma das primeiras manifestações da maternidade é o reconhecimento pela mãe da alteridade do seu filho, isto é, o dar-se conta de que traz dentro de si outra pessoa em relação à qual, além dos deveres específicos de mãe, tem os mesmos deveres que qualquer indivíduo tem perante a vida de outrem. Não há, portanto diferença qualitativa entre a vida que se desenvolve no seio da mãe e a vida que continua o seu desenvolvimento fora dele. Pretender criar diferenças entre os vários estádios de desenvolvimento da pessoa humana, desde a concepção até à sua morte natural, é uma pura arbitrariedade, sem qualquer fundamento, mesmo e sobretudo de ordem científica. Portanto, às 10 semanas ou às 8 semanas, às 7 semanas ou às 15 semanas, antes como depois do nascimento, o ser humano é absolutamente o mesmo, portanto, enquanto ser humano, sempre sujeito de direitos que a lei civil e o Estado, enquanto pessoa de bem, têm obrigação de tutelar. Por sua vez, o Pai e a Mãe, perante a nova vida que decidiram transmitir no acto mais sublime que marca para sempre as suas vidas de homem e de mulher, no exercício da sua maternidade e paternidade conscientes e responsáveis, são chamados a contemplar e a proteger a grande maravilha que foi confiada à sua guarda. E esta é a maravilha da vida que eles decidiram livremente acolher como parte das suas vidas e agora lhes pede generosidade e responsabilidade. Desejo aqui prestar homenagem aos pais e às mães que exercem a sua paternidade e a sua maternidade, de forma consciente e responsável, tanto na decisão inicial de gerarem mais um filho, como também na generosidade com que o acolhem, o acompanham, se sacrificam por ele, aceitando, às vezes, comprometer o seu bem estar material e mesmo arriscando as suas vidas pessoais. Nesta homenagem vai o reconhecimento de que a vida é sempre uma realidade sagrada que nos é confiada para a sabermos guardar com sentido de responsabilidade e a levarmos à perfeição, no amor, pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos. Ao contemplarmos a maravilha da vida humana, seja qual for o grau do seu desenvolvimentos, ao prestarmos a nossa homenagem aos pais e às mães que generosamente exercem as suas responsabilidades perante a vida que lhes está confiada, como seu santuário, não podemos fechar os olhos às muitas contradições que continuam a verificar-se nas nossas sociedades ditas evoluídas. Assim, por estranho que pareça, ao lado de mães que exultam de alegria com a chegada dos seus filhos, persiste o drama de outras mães que abandonam os filhos ou lhes tiram a vida antes do nascimento; ao lado de pais que assumem generosa e responsavelmente o seu papel na criação de todas as condições de boas vindas para a chegada de mais um filho, outros há que fogem às responsabilidades, abandonando os filhos ou empurrando as mães para a solução fácil do aborto; ao lado da famílias que garantem a necessária estabilidade para o crescimento equilibrado dos seus filhos, sendo fiéis aos valores fundamentais da unidade e de indissolubilidade do casamento, há outras que se desfazem e deitam os filhos ao abandono, ficando estes à mercê de boas vontades de famílias de acolhimento que os adoptam ou lhes dão outras formas de assistência, ou então de instituições que procuram funcionar como famílias de substituição. É necessário reconhecer que este é talvez o maior drama do nosso tempo, que, longe de diminuir, tem tendência para crescer, e só não atinge maiores proporções devido ao grande número de homens e mulheres que, ligados ou não a instituições, fazem da sua vida um serviço generoso aos filhos dos outros. Permita-se-me que também aqui preste a minha rasgada homenagem a tantos homens e mulheres que dedicam toda a sua vida a tratar de crianças abandonadas. E são muitos aqueles e aquelas que visitei, com quem dialoguei, ao longo das últimas semanas, sobre o maravilhoso serviço à vida e à comunidade que estão a realizar. Isto permite-me dirigir daqui um apelo a todas as mães em dificuldade para levarem até ao fim o dever que lhes assiste de receberem bem o filho que decidiram gerar. E se porventura lhes faltarem as condições necessárias de ordem material ou outras, para cuidarem bem desses filhos que decidiram gerar não tenham medo de bater à porta de pessoas e instituições que se dispõem a ajudá-las no exercício da sua responsabilidade de mães ou até mesmo a substitui-las por algum tempo ou sempre. Não estamos perante um problema totalmente novo, pois sempre existiram crianças abandonadas. Na Idade Media, havia a prática das rodas para recolher expostos, geralmente junto de conventos ou outras instituições de beneficência, para nelas as mães desesperadas poderem deixar os seus filhos, sabendo que alguém haveria de cuidar deles. Hoje existem outras formas de ajudar mães em dificuldade e, se for necessário, de as substituir. Antes de concluir desejo chamar a atenção para o folheto que já foi distribuído ou está em distribuição subordinado ao título “Razões para escolher a vida”. Nele a Conferência Episcopal lembra os 5 motivos que hão-de levar os cidadãos portugueses a formarem bem as suas consciências e a optarem corajosamente pela defesa da vida dos inocentes não nascidos no próximo referendo sobre o aborto marcado para o dia 11 de Fevereiro. Para terminar, lembro que vivemos numa sociedade onde se preza a luta contra a exclusão social. O nosso Governo lançou, em finais de Outubro, um Plano Nacional de Acção para a Inclusão (PNAI) que tem entre outros os seguintes objectivos: “ultrapassar as discriminações, reforçando a integração das pessoas com deficiência e dos imigrantes”. E, de facto, os tempos de Natal que estamos a viver são especialmente próprios para reforçar a sensibilidade geral contra esta verdadeira praga que continua a afectar cada vez mais cidadãos, pois o número de excluídos tende a crescer, dizem-no as estatísticas e as projecções que se vão fazendo. Não podemos esquecer que a primeira grande exclusão social é negar a uma criança o direito de nascer. Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda 31 de Dezembro de 2006 (homilia proferida na Catedral da Guarda)