A propósito do Natal
Contaram-me que, num jardim infantil, a educadora explicava que o «Pai Natal» tinha a ver com lendas que enalteciam o gesto de um santo bispo, de nome Nicolau –literalmente, “pessoa virtuosa”-, tão preocupado com as crianças e os pobres que não hesitava andar de porta em porta a recolher o que lhe davam para o distribuir aos necessitados. E que daí é que provinha a nossa tradição de dar pren-dinhas às crianças e aos pobres por alturas do nascimento do Menino Jesus.
Tudo muito bem, até ao momento em que uma menina foi dizer ao papá que já sabia quem era o Pai Natal e a razão de ser das prendinhas. O papá limitou-se a ouvir. Mas, ao outro dia, exigiu falar com a educadora. Para lhe reprovar o que tinha dito: que, dessa forma, estava a destruir e abalar a confiança da filha nos seus pais que sempre lhe garantiram que o Pai Natal vivia na Lapónia e que iria passar lá por casa; que destruía a sua capacidade de sonhar, imaginar, poetizar; que transportava a criança do sonho à dura realidade; que estava a estabelecer diferenças ao trazer à lógica uma criança quando todas as outras viviam na fantasia; que…
Fiquei a pensar no caso. E vieram-me à mente conceitos como laicidade, secularização, cultura, dogmas. Como, com o pretexto de emancipação do pensamento e das formas de vida social da tutela religiosa cristã, se acabam por construir novos dogmas, incontestados e incontestáveis. Como, em nome do «desencantamento» do mundo, da sua profanidade e do alto apreço pela materialidade, se constrói um «encantamento» de substituição, em tudo paralelo ao que se contesta. Como o horizonte de realização pessoal passa por uma leitura da realidade em que tudo se centra não no conteúdo, mas simplesmente no «papel de embrulho» dos novos valores comerciais a impingir «religiosamente».
Eis, portanto, duas culturas que se desconhecem e se excluem: a cristã e a secular-comercial.
Não há dúvida que a laicidade é um dos pilares da cultura ocidental. E possui mesmo valores assinaláveis. Não cabe aqui referi-los. O seu perigo, porém, está na hodierna pretensão de se arvorar em pensamento único e, como tal, de se tornar ditadora, de excluir violentamente o que não se coaduna com ela e pretender dissolver os elementos que asseguram a coesão da cultura ocidental, com destaque para o religioso cristão.
Como superar isto? Creio que passa, substancialmente, por duas vias: pela capacidade de contestação e diferença e pela redescoberta da verdadeira chave de acesso ao acervo da grande cultura que constitui o nosso património pluri-dimensional. Mesmo contemporâneo.
A nível geral, há que desmascarar e pôr a ridículo alguns desajustes chocantes da realidade: por exemplo, iluminações com renas e trenós, em Faro, onde nunca qualquer rena passeou ou neve caiu; Pai Natal agasalhado até ao nariz, nas praias do Brasil, onde a temperatura asfixia e obriga a aligeirar a roupa; representações de luxuosos embrulhos de prendas, com laços e fitinhas, estrategicamente colocados junto a bairros sociais de carências absolutas; etc. Face a isto, que fazem os cristãos? Embarcam no mesmo ridículo ou investem em símbolos com criatividade?
A nível do alto pensamento, há que fazer redescobrir que a cultura é, por natureza, uma continuidade cumulativa. Ela liga o presente, seus hábitos, símbolos, produções, tradições e conceitos básicos, à longa história da humanidade. Sem o que o presente não adquire sentido. Se faltam códigos de reconhecimento ou chaves de interpretação, por mais valiosos que sejam os conteúdos da cultura, ela funciona como museu fechado do qual se perdeu a chave da porta: nem se entra nem se desfruta. E, obviamente, não se conhece. Fica-se estranho. Neste caso, “O Cavaleiro da Dinamarca”, de Sophia, não passa de fantasmagoria; o “Nascimento de Cristo”, de A. Dürer, de retrato arqueológico de formas de viver doutros tempos; a “Adoração dos Magos”, de H. Boch, de velharia sem interesse; a “Noite Feliz”, de Franz Gruber, de melodia para adormecer crianças…
Como diria o insuspeito Debray, respeite-se a laicidade de inteligência, mas combata-se a laicidade da indigência cultural. Porque, afinal, é disto que se trata. Até porque esta mina os fundamentos sólidos da nossa cultura ocidental para os substituir pelo delírio. E isto é doença e doença grave.
A nossa «velha» Europa sofre de Alzheimer? Talvez. Mas é curável.
D. Manuel Linda
Bispo auxiliar de Braga