Catequese do Cardeal-Patriarca de Lisboa no 3º Domingo da Quaresma 1. A dimensão da Eucaristia como sacrifício redentor é, certamente, a mais exigente deste sacramento. A dimensão do banquete sagrado, que evidencia a fraternidade e a comunhão, é mais facilmente captável pela inteligência e pelos sentidos. E no entanto é porque a Eucaristia é actualização do Sacrifício de Jesus Cristo que ela é sacramento de comunhão. Só o Sacrifício redime e purifica o coração do homem, tornando-o capaz de comunhão, na caridade. A fé da Igreja é clara a este respeito: “A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifício da Cruz e o banquete sagrado da comunhão do Corpo e Sangue do Senhor” . A própria linguagem sacrificial não é, hoje, comum e de fácil compreensão. Na linguagem corrente a palavra sacrifício significa algo que custa, que normalmente nos é imposta, mas que pode também ser voluntariamente aceite e oferecida. Esta palavra é reminiscência de um vocabulário religioso universal, mas sobretudo judaico-cristão. Quando o sacrifício é algo que se aceita e oferece voluntariamente, o seu significado está mais próximo da significação religiosa. Em todas as religiões o sacrifício é algo que se oferece a Deus e exprime uma atitude do crente para com a divindade: adoração, gratidão, arrependimento, súplica, de qualquer modo expressão de diálogo e busca de comunhão. O que os crentes oferecem a Deus, nos sacrifícios, vai desde aquilo que possuem, as atitudes interiores do seu coração, até se oferecerem a si mesmos ao Senhor. As pessoas podem ser objecto de “sacrifícios incruentos”, porque se oferecem a si mesmas, ou porque são oferecidas, como no caso dos primogénitos, que são sempre oferecidos a Deus, no Templo. Mas em Israel as pessoas nunca são objecto de “sacrifícios cruentos”. Os sacrifícios humanos eram estritamente proibidos. Porque é que a morte de Cristo é um sacrifício? 2. É absolutamente claro que, o próprio Jesus, e todo o Novo Testamento, interpretam a morte no Calvário como um sacrifício religioso, oferecido a Deus, na linha e no contexto da teologia sacrificial do Antigo Testamento. E esta é a expressão principal da consciência que a Igreja primitiva tem da continuidade e da ruptura que o Cristianismo significa em relação á Antiga Aliança. A continuidade exprime-se no facto de o quadro sacrificial do Antigo Testamento oferecer a chave de interpretação da morte de Cristo. A ruptura, na novidade de uma nova Aliança, está patente na originalidade absoluta da oferta de Jesus, de maneira cruenta, considerando-se o novo Cordeiro Pascal, e o sacrifício definitivo e irrepetível, na obtenção dos bens espirituais que todos os sacrifícios procuravam. A morte de Cristo é apresentada como o sacrifício perfeito e definitivo, que realiza em plenitude todas as formas e todos os sentidos da liturgia sacrificial do Antigo Testamento. E isso é assim, porque o Calvário e a última Ceia são vistos na unidade de um mesmo sacrifício. Ele é holocausto e refeição sagrada, é cruento, com imolação da vítima, e incruento em que a oferta é a da própria pessoa e dos seus sentimentos para com Deus. Os sentimentos de Jesus Cristo (Fil 2,6) levam à plenitude todas as atitudes espirituais procuradas e expressas em todos os sacrifícios do Antigo Testamento: a adoração e o desejo de intimidade com Deus; a generosidade das atitudes interiores que chegam até à oferta da própria pessoa; o desejo de conversão e de expiação dos próprios pecados, cujos efeitos negativos só Deus pode apagar. No sacrifício de Cristo tudo isto é plenamente realizado. A obediência ao Pai, que faz da comunhão trinitária o elemento decisivo e unificador da oblação de Jesus Cristo. O desejo de expiação dos pecados o Senhor fá-lo em nome de toda a humanidade pecadora. Ressalta o dom da própria vida. “Isto é o Meu sangue, entregue por vós” (Lc 22,19-20) . A morte do Senhor e a última Ceia são um único e mesmo sacrifício. “O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício” , e esta unidade justificava-se pela futura união entre Cristo e a Igreja, que a partir da Páscoa, será o “Corpo de Cristo”. A Eucaristia apresenta-se, desde a última ceia, como o único sacrifício oferecido por Cristo e pela Igreja, expressão sacramental incruenta do sacrifício da Cruz.. e para que o sacrifício de Cristo pudesse ser oferecido pela Igreja, ser o sacrifício da Igreja, ao longo dos séculos, ele tinha de ser “incruento”, isto é, sacramental. A Eucaristia é o sacrifício de Cristo oferecido pela Igreja 3. A Eucaristia é o único sacrifício de Cristo, perfeito e definitivo, oferecido por Ele, que une a si, na sua oferta, a Igreja que é o Seu Corpo. Sendo sacrifício perfeito e definitivo, nunca mais é preciso oferecer outros sacrifícios, mas presencializar sacramentalmente esse único sacrifício, em cada momento da história. Dizia São João Crisóstomo: “nós oferecemos sempre o mesmo Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício é sempre um só (…). Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se exaurirá” . E João Paulo II acrescenta: “A Missa torna presente o sacrifício da Cruz; não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial, de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da Cruz ou com uma referência apenas indirecta ao sacrifício do Calvário”. A Eucaristia faz com que o sacrifício de Cristo seja oferecido pela Igreja, seja realmente o sacrifício da Igreja. Ela significa, continuamente, o desafio máximo de identificação da Igreja com Jesus Cristo, fonte da sua autenticidade e exigência de santidade. 4. As palavras de Paulo aos Filipenses, “tende em vós os mesmos sentimentos de Jesus Cristo” (Fil. 2,6), são dirigidas à Igreja em cada Eucaristia. Essa identificação com os sentimentos de Jesus Cristo, na oferta do sacrifício pascal, marca o ritmo da sua fidelidade e da sua autenticidade, que em cada Eucaristia são garantidos pelo facto de ser Cristo o oferente e a vítima oferecida. Só Cristo garante à Igreja que ela seja a Santa Igreja. Meditemos em alguns destes sentimentos de Jesus Cristo, que Ele deseja que sejam também da sua Igreja, em cada oferta eucarística. * O louvor de Deus. A densidade do amor trinitário, amor do Filho por Seu Pai, no Espírito Santo, é o principal sentimento de Jesus Cristo. Contemplemos este mistério de amor, nas palavras de João Paulo II: “O dom do amor de Jesus Cristo e da sua obediência até ao dom da própria vida (Jo 10,17-18), é, em primeiro lugar, um dom a seu Pai. Certamente é um dom em nosso favor, antes, em favor de toda a humanidade (Mt 26,28), mas primariamente um dom ao Pai: «sacrifício que o Pai aceitou retribuindo esta doação total de seu Filho, que se fez obediente até à morte, com o seu dom paterno, isto é, o dom da nova vida imortal na ressurreição»” . A Eucaristia é, para a Igreja, antes de mais, uma expressão do louvor de Deus; ela é acto e momento de adoração e isto é possível à Igreja porque ela comunga nos sentimentos de Jesus Cristo. * A oferta de Si Mesmo. Essa é a novidade da Eucaristia em relação à Páscoa de Jesus. Ao dom total de si mesmo acrescenta-se, agora, o dom da Igreja, como afirma o Concílio Vaticano II: “pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, os fiéis oferecem a Deus a vítima divina e oferecem-se a si mesmos juntamente com ela” . Na Eucaristia o Povo de Deus atinge, assim, a expressão máxima da sua dignidade real e da sua dimensão sacerdotal: podem oferecer a Deus Pai o Seu próprio Filho e, no mesmo acto de entrega, oferecerem as suas vidas, a firmeza da fé, a humildade da conversão, a generosidade da caridade. A história presente e a eternidade de Deus abraçam-se no mesmo acto de louvor. * A intercessão pelos pecadores. Essa é a motivação salvífica do sacrifício de Cristo: a redenção da humanidade pela purificação dos pecados. “Ele que não conheceu o pecado, fez-Se pecador por nós” e intercedeu por todos os pecadores. Nós pecadores, que Ele redimiu e purificou, podemos, unidos a Ele, oferecermo-nos pela confirmação da nossa conversão e pela redenção de toda a humanidade. Na Eucaristia, na oração da Igreja que se oferece, a humanidade inteira está reunida num mesmo acto de intercessão. Em cada Eucaristia realiza-se a redenção de toda a humanidade. * A intimidade da comunhão. A solidão de Cristo na Cruz dá lugar, na Eucaristia, para Ele e para a Igreja, ao mistério da comunhão. Esta consiste numa união física ao próprio Corpo de Cristo, quando aplicamos a nós aquele “tomai e comei” da última Ceia, o que gera entre os “comensais” uma experiência única de união fraterna, na caridade. Esta comunhão, na caridade, é já da ordem da vida nova do ressuscitado e a Igreja experimenta ao vivo que o sacrifício eucarístico é também participação na ressurreição de Cristo. É com grande emoção que exclama: “anunciamos Senhor, a Vossa morte e proclamamos a Vossa ressurreição”. A necessidade de anunciar, a disponibilidade para a missão, o desejo da plenitude da vida experimentada, que é o desejo da vida eterna, tornam-se nas “hóstias espirituais” oferecidas, pela Igreja, na Eucaristia, que mais alegram o coração de Deus. Em cada Eucaristia Deus vê que a Páscoa foi fecunda, que a morte de Cristo não foi em vão, que mais uma vez a Palavra de Deus foi eficaz na história dos homens. Em cada Eucaristia continua a realizar-se a História da Salvação. Sé Patriarcal, 27 de Fevereiro de 2005, † JOSÉ, Cardeal-Patriarca