A Eucaristia, coração da Igreja

Carta Pastoral de D. António Marto à diocese de Viseu Dou-te graças, Senhor Jesus Ressuscitado, porque, pouco antes de seres entregue à morte na Cruz, nos quiseste deixar em testamento o sinal definitivo do Teu amor, a Eucaristia. Fizeste-o com os gestos e as palavras mais originais, mais santas e comoventes que alguém jamais proferiu na história da humanidade: “Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo entregue por vós”; “tomai, todos, e bebei: isto é o meu sangue da nova e eterna Aliança …”; “Fazei isto em memória de Mim”. Com que comoção e perturbação as terás proferido! E com que comoção e perturbação as terão ouvido os Teus apóstolos, no cenáculo, talvez sem terem percebido, num primeiro momento, todo o alcance e toda a profundidade do mistério que elas encerram! E nós, cristãos do terceiro milénio, somos convidados a redescobrir todo o enlevo e encanto deste tão grande e sublime mistério. Concede-me, Senhor, a luz e o calor do Teu Espírito para poder comunicar algo da beleza do Teu rosto na Eucaristia. Caríssimos sacerdotes e fiéis, irmãos e irmãs no Senhor: Esta oração brotou-me espontânea quando, diante do Sacrário, meditava no tema desta carta pastoral. Espero que também vos ajude a lê-la no mesmo espírito. Escrevo-vos esta carta um mês após a minha tomada de posse como vosso Bispo. E faço-o depois de ter ouvido o Conselho de Arciprestes, os Secretariados Diocesanos, o Colégio dos Consultores e o Cabido da Catedral, em ordem a perspectivar o novo ano pastoral. A todos agradeço a cordial colaboração e as sugestões que procurei recolher. Não se trata, propriamente, de um plano ou programa pastoral, por razões evidentes da minha recente chegada. Pretendo apenas oferecer algumas reflexões e orientações aos sacerdotes e às comunidades, para programarem o Ano Pastoral de 2004/05 a nível paroquial e a nível arciprestal. 1. O Ano da Eucaristia: uma urgência eucarística Antes de mais, quero justificar-vos a razão e a actualidade do tema escolhido. Chama a nossa atenção o facto de que o Santo Padre, num breve espaço de tempo, fez publicar uma versão renovada da Instrução Geral do Missal Romano, escreveu uma encíclica sobre a Eucaristia (“A Igreja vive da Eucaristia”), seguida de uma instrução complementar da Congregação para o Culto Divino (“O Sacramento da Redenção”), confiou o mesmo assunto à reflexão do próximo Sínodo dos Bispos (“A Eucaristia, fonte e vértice da vida e da missão da Igreja”) e, no passado dia 10 de Junho, acaba de anunciar “um especial Ano da Eucaristia”, a começar no próximo dia 10 de Outubro e a terminar em Outubro de 2005. Não pode deixar de nos impressionar a proximidade cronológica e a identidade temática destas intervenções. Quais os motivos? – podemos e devemos perguntar-nos. No documento preparatório do Sínodo dos Bispos esclarece-se: “Existem motivos abundantes para reunir os pastores a fim de que sobre um tema tão decisivo para a vida e missão da Igreja, manifestem as exigências e as implicações pastorais da Eucaristia na celebração, no culto, na pregação, na caridade e nas diversas obras em geral”. Existe, sobretudo, refere o texto citado, uma “urgência eucarística”, resultante não de heresias doutrinais como no passado, “mas da praxis eucarística necessitada de uma nova expressão amorosa, feita de gestos de fidelidade Àquele que se faz presente a quantos hoje continuam a procurá-lo: Mestre, onde moras?”. De facto, constatamos a perda do enlevo, do encanto, do amor, da devoção a este sacramento, por parte de muitos cristãos católicos que se afastaram da eucaristia dominical. O censo de 2001 é extremamente elucidativo: só 28,8% dos católicos da nossa Diocese frequentam a eucaristia no Dia do Senhor, o Domingo. Para além de outros factores de ordem social e cultural, isto deve-se, sobretudo, ao enfraquecimento da fé. O próprio Papa coloca este Ano da Eucaristia dentro do projecto pastoral indicado na Carta Apostólica sobre o Novo Milénio, onde convida os fiéis a “começar de novo a partir de Cristo”: “Contemplando mais assiduamente o rosto do Verbo Incarnado, realmente presente no sacramento, eles poderão exercitar-se na arte da oração (cf. nº32) e empenhar-se naquela medida alta da vida cristã (cf. nº31) – a santidade de vida – que é a condição indispensável para desenvolver de modo eficaz a nova evangelização”(Alocução de 13.06.04). Assim, coloca este ano consagrado à Eucaristia numa perspectiva evangelizadora a fim de que cada comunidade cresça na fé em Cristo vivo, no amor para com o mistério do Corpo e Sangue do Senhor e na alegria da Sua presença. Celebrar o Ano da Eucaristia é, pois, situar, com novo impulso, o coração da vida cristã e da Igreja no único Senhor, Jesus Cristo, que dá sentido e beleza à nossa vida e à vida do mundo. 2. A Eucaristia, mistério admirável da nossa fé Por vezes, como justificação para não participar na eucaristia dominical, ouço dizer a alguns que se declaram católicos não praticantes: “Eu, para rezar, não preciso de ir à igreja. Rezo melhor em casa ou até em contacto com a natureza”. Mas a Eucaristia não se pode reduzir a uma oração ou devoção qualquer que se pode fazer privadamente. Não é uma coisa. É Alguém, uma pessoa viva, o Senhor Ressuscitado, que quer celebrar com o seu povo o mistério da sua presença real, do seu amor oferecido. S. Tomás de Aquino, teólogo e cantor apaixonado da Eucaristia, numa meditação sobre a festa do Corpo de Deus, recorre a um versículo do livro do Deuteronómio em que se exprime a alegria de Israel pelo mistério da Aliança de Deus com o seu povo: “De facto, qual é a grande nação que tem a divindade tão próxima, como o Senhor nosso Deus é próximo de nós quando o invocamos? “ (4,7). E afirma que nós, os cristãos, podemos pronunciar estas palavras com maior razão e maior alegria do que o povo de Israel, porque elas encontram a sua realização plena na Eucaristia. Na verdade, na última ceia, Jesus, a modo de testamento, não nos deixou uma coisa ou lembrança como nós homens costumamos fazer. Deixa-se a si mesmo. Tal é o sentido das Suas palavras: “Isto é o meu corpo entregue por vós; isto é o meu sangue derramado por vós…”. Na linguagem bíblica, o corpo é expressão da pessoa inteira e o sangue é expressão da vida. Trata-se, pois, da presença real da pessoa viva, singular e total de Jesus, agora na sua santa humanidade glorificada, nos sinais humildes do pão e do vinho. Ao mesmo tempo, é uma presença carregada de todo aquele “excesso de amor” com que se entregou ao Pai por nós, até à Cruz; “amor até ao extremo”, eternizado para sempre na ressurreição. Por isso, a Eucaristia é a presença de Jesus, no dom total de si mesmo por nós e a nós, isto é, a actualização do seu sacrifício redentor para dele nos tornar participantes, para o comungarmos. Deus veio verdadeiramente habitar connosco. Tornou-se carne para poder tornar-se pão vivo. Eis o mistério admirável da nossa fé, a maravilha das maravilhas do Deus connosco em que o coração de Cristo se une ao nosso e o nosso ao Seu para viver em comunhão! “De facto, qual é a grande nação que tem a divindade tão próxima, como o Senhor nosso Deus é próximo de nós?” O encontro e a comunhão dominical com o Senhor não é um peso, um fardo, mas uma graça que ilumina toda a semana. Peçamos ao Senhor que desperte em nós a alegria pela sua proximidade, feita de presença e comunhão. Esta alegria enche-nos de maravilha! 3. A Eucaristia, coração da Igreja e da vida cristã A Igreja é um Corpo vivo, de pessoas vivas, em comunhão com Cristo. Não se dá a vida a si mesma. Não se constrói a si mesma. Vive de Jesus: do seu Espírito Santo, da sua Palavra, dos seus dons sacramentais, do seu amor. E, de modo particular, vive da Eucaristia, isto é, de Jesus na Eucaristia. Por Ele é alimentada e iluminada: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue mora em mim e eu nele; aquele que me come, viverá por mim” (Jo 6, 56-57). Como um corpo vivo, a Igreja tem um coração que é a Eucaristia. Como o sangue flui do coração para todo o corpo, assim do coração de Cristo na Eucaristia flui a vida divina para todos os membros do corpo para que possam viver d’ Ele e servir bem. Porque comungamos o mesmo Senhor Jesus Cristo, em Viseu ou em Roma, somos, para além de todas as fronteiras, um só povo em comunhão, por meio da única mesa que o Senhor prepara para todos. Somos um só corpo unido pela comunhão com Cristo, unido no louvor de Deus que é a nossa alegria, a nossa libertação, a nossa esperança. “Porque há um só pão, nós, embora sendo muitos formamos um só corpo, pois participamos dum único pão” (1Cor 10,17). Neste sentido, a Eucaristia faz a Igreja, como mistério e casa de comunhão. Além disso, ela é também a fonte da missão da Igreja, como diz de modo simples e belo, Santa Teresa de Lisieux: “Se o coração não bate, os apóstolos já não podem anunciar; as irmãs já não podem mais consolar e curar; os leigos já não podem orientar o mundo para o Reino de Deus”. A comunhão com Cristo conduz os homens ao encontro uns dos outros. O Senhor que, na celebração, diz “Tomai e comei”, é o mesmo que diz “o que fizerdes ao mais pequenino, é a mim que o fazeis”. Por isso, a Eucaristia é também uma escola de amor activo ao próximo. Disto nos dá testemunho vivo e eloquente Madre Teresa de Calcutá e as suas irmãs, Filhas da Caridade, cuja espiritualidade consiste em beber o amor da Eucaristia mediante a missa matinal e uma hora diária de adoração vespertina, para levar com alegria o amor recebido aos irmãos necessitados, durante o dia. 4. A Eucaristia, mistério de adoração A Eucaristia, tal como é acolhida na fé da Igreja, apresenta um aspecto surpreendente que desconcerta a inteligência e comove o coração. Estamos perante um daqueles gestos abismais do amor de Deus, diante do qual a única atitude possível ao homem é a adoração, feita de imensa gratidão, de contemplação, de louvor e acção de graças. A atitude de adoração é a alma profunda da própria celebração eucarística. Nasce dentro da celebração e tende a exprimir-se noutras formas e espaços, para além dela, em ordem a interiorizar tão grande mistério e a viver dele na vida quotidiana. 5. A Eucaristia e a civilização da beleza e do amor A celebração da Eucaristia não diz respeito somente à vida da Igreja, mas também à cultura contemporânea. Tem reflexos no tecido cultural e social. Por si mesma, a Eucaristia é geradora de uma nova convivialidade. Os cristãos e as comunidades que, na celebração, vivem uma experiência singular de comunhão com Deus e com os irmãos, sentem-se comprometidos a irradiá-la nos vários âmbitos da convivência humana: a experiência de fraternidade, o espírito da paz e reconciliação, as atitudes de acolhimento e hospitalidade, o sentido da partilha e solidariedade, o repouso interior, o encontro familiar, a força da esperança, a dimensão festiva da vida. São atitudes humanas profundas que caracterizam uma espiritualidade eucarística e ajudam a construir a civilização da beleza e do amor. 6. Orientações pastorais Como conclusão, indico alguns pontos que me são particularmente caros e que podem sugerir que caminho pastoral cada comunidade cristã é chamada a empreender e quais os frutos que espero desta tomada de consciência sobre a Eucaristia como centro e coração da vida cristã. Para isso, estes pontos deverão ser reflectidos e concretizados nos conselhos pastorais de cada paróquia e nos encontros do clero de âmbito arciprestal. 1. Empenhemo-nos numa renovação da missa dominical, no espírito e na forma, para que seja celebrada com toda a dignidade e beleza próprias do mistério e leve a melhor participação, consciente e activa, de toda a assembleia reunida: 1.1. – Preparando a missa comunitária, não a deixando ao improviso do momento; 1.2. – Valorizando as diversas funções ou ministérios em que se exprime a comunidade cristã (presidente, leitores, acólitos, cantores) de modo que cada um faça bem e só o que lhe compete; 1.3 – Desenvolvendo uma oportuna catequese sobre a celebração eucarística, suas partes, ritmos e sinais; 1.4 – Procurando que cada um leve da missa algum pensamento ou atitude capaz de iluminar toda a semana. 2. Seja constituída em cada paróquia uma “Equipa de Animação Litúrgica” de modo que todas as liturgias dominicais sejam bem preparadas e animadas, seja qual for o horário a que se celebrem. 3. Eduquemos para a missa quotidiana as pessoas mais sensibilizadas. Proponhamo-la, diariamente, sobretudo nos tempos fortes do Ano Litúrgico; e, pelo menos, uma vez dentro da semana nos outros tempos, para uma vivência eucarística mais intensa. Recomendamos que, na celebração quotidiana, o sacerdote ofereça um pensamento de meditação sobre a Palavra proclamada. 4. A redescoberta da riqueza do mistério pascal de Jesus, sobretudo através de uma intensa preparação doutrinal, espiritual e litúrgica e de uma cuidada celebração do Tríduo Pascal e da Festa do Corpo e Sangue do Senhor, como festa da unidade da paróquia e da Igreja. 5. Realçar a dimensão contemplativa e íntima da celebração, valorizando as várias formas de adoração: redescobrindo a preparação e a acção de graças na comunhão; e propondo a visita ao Santíssimo Sacramento como um “permanecer” em Cristo e com Cristo para entrar juntamente com Ele no amor infinito e misericordioso do Pai. 6. Uma forma particularmente importante de adoração comunitária é o Lausperene. Comprometamo-nos, durante este ano, a retomá-lo e a renová-lo com criatividade, de tal modo que daí possam surgir exemplos renovados e emblemáticos para os próximos anos. Para isso, muito poderão contribuir os movimentos e associações de fiéis que se caracterizam pela devoção eucarística, tais como o Apostolado de Oração, a Cruzada Eucarística, a Liga Eucarística, a União Eucarística Reparadora e outros. 7. Confiamos aos Secretariados Diocesanos da Educação Cristã e da Liturgia a tarefa de elaborar algumas catequeses eucarísticas de tipo mistagógico, quanto possível a partir das diversas partes da própria celebração e salientando as várias dimensões que estas revelam: ritos iniciais, proclamação da Palavra de Deus, ofertório, consagração etc. Estas catequeses poderão ser feitas quer nas paróquias quer a nível de arciprestado envolvendo sobretudo, mas não só, acólitos, leitores, ministros extraordinários da comunhão, grupos corais e confrarias do Santíssimo. 8. Solicitamos ao Secretariado da Educação Cristã que tenha em atenção o mistério da Eucaristia na formação de catequistas, pais e demais agentes. Que se dê atenção especial às catequeses sobre a Eucaristia, bem como à preparação para a Primeira Comunhão. Com criatividade procurem-se formas de fazer ponte entre a catequese e a Missa Dominical e vice-versa. Sem esquecer que a iniciação cristã das crianças e adolescentes à Eucaristia deve ser acompanhada pelo testemunho dos pais. 9. As “escolas de oração” que já existem continuem no próximo ano pastoral como escolas de iniciação à celebração eucarística e, se feitas com os jovens, também à opção vocacional. A atracção que Jesus exerce na Eucaristia encontra um significado pleno na opção vocacional. Partindo da Eucaristia e de todas as formas de culto eucarístico faça-se uma proposta vocacional clara e séria. 10. Dado que o fruto da Eucaristia é a caridade, cada paróquia renove e revigore o serviço da caridade. Cada família, grupo e comunidade escolha uma acção prioritária de caridade ou gesto de solidariedade que pode resultar numa obra comum. 11. As jornadas de formação permanente do clero, neste Ano da Eucaristia, terão como tema: “ A renovação da celebração eucarística a partir da nova versão da Instrução Geral do Missal Romano de 2002”. 12. A abertura do Ano da Eucaristia realizar- se- à em cada paróquia da nossa diocese no mesmo dia, em 10 de Outubro próximo. O encerramento será a nível da Diocese, no “Dia Eucarístico Diocesano”, em 18 de Setembro de 2005, a cargo do Gabinete de Coordenação Pastoral. A seu tempo serão enviadas orientações oportunas. Irmãos e irmãs no Senhor, o simples elenco fragmentário e sugestivo das tarefas que derivam do “Ano Eucarístico” propõe-nos um caminho sério e empenhativo. Exige conversão interior das pessoas e das comunidades para que se deixem atrair por Jesus. Mas requer também expressão exterior na santidade de vida no mundo, em obras de justiça e de caridade. A Mãe de Jesus, mulher eucarística, nos guie neste caminho a contemplar com o seu olhar e o seu coração o rosto eucarístico de Jesus e a realizar a conversão pessoal e pastoral que Ele nos pede. A Ele dirigimos a nossa prece: Ó Senhor, ajuda-nos a superar a indiferença, a preguiça espiritual, a frieza ou pobreza de sentimentos e, porventura, a dureza de coração perante o mistério inefável do Teu amor. Faz crescer em nós sentimentos de encanto, de alegria e reconhecimento pelo grande dom da Eucaristia; sentimentos de fé e de adoração na Tua presença permanente no meio de nós; sentimentos de imploração para que a nossa vida se deixe renovar profundamente pelo memorial da Tua morte e ressurreição, se deixe plasmar pelo Teu sacrifício redentor como vida oferecida no dom total de si a Deus e aos homens. Saúda-vos afectuosamente, 23 de Julho de 2004, Dia da Dedicação da Catedral de Viseu + António Marto, Bispo de Viseu

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