«A Escola Católica ao serviço da missão da Igreja»

Conferência de D. José Policarpo no Fórum «Risco de Educar» 1. O título desta minha intervenção é óbvio, pois todas as instituições e acções da Igreja só serão legítimas se forem meios para realizar a sua missão. Esta define o horizonte de legitimidade para tudo o que a Igreja faz na sociedade. Em toda a sua acção devemos poder reconhecê-la como enviada com uma mensagem de salvação. São muitas as instituições criadas pela Igreja para ser fiel à sua missão, ao ritmo do Espírito e lendo os sinais dos tempos, isto é, percebendo as características de cada tempo e procurando responder-lhes de modo adequado. Por outro lado, o facto das instituições da Igreja serem meios para realizar a sua missão, define-lhes a sua natureza profunda e traça-lhes os objectivos fundamentais. Desconhecê-los ou desviar-se deles significa pôr em questão a sua própria razão de ser. Nesta intervenção não citarei muitos textos de um vasto Magistério sobre o assunto. Tendo como pano de fundo o Concílio Vaticano II na Declaração “Gravissimum Educationis Momentum”, considerarei, em primeiro plano, o contexto presente do nosso País, onde a Igreja é chamada a realizar a sua missão, e nesse quadro, a nossa Escola Católica. 2. A missão da Igreja, sendo una no seu objectivo fundamental, tem diversos aspectos diferenciados, adaptados à realização das pessoas e da sociedade em cada momento histórico. O aspecto concreto da missão da Igreja em que se situa, como meio, a Escola Católica, é o vasto domínio da formação humana e cristã e, dentro dele, o da educação, que elege como destinatários privilegiados as crianças e os jovens. A própria existência de Escolas Católicas afirma o direito e o dever da Igreja intervir no âmbito da educação, em colaboração com as famílias e com a sociedade como um todo e situa a educação no âmbito da sociedade civil, que os Estados devem apoiar, incentivar e respeitar. A missão de educar, em termos de missão da Igreja, engloba a missão de evangelizar. A Igreja evangeliza, educando. E se a educação que a Igreja protagoniza deve ter sempre os mesmos parâmetros fundamentais, a maneira como evangeliza pode diferenciar-se segundo os ambientes em que exerce a sua missão. Não é a mesma coisa uma escola frequentada por filhos de católicos e uma escola católica em que a maior parte dos alunos o não são, como frequentemente acontece nos chamados países de missão e que hoje começa a verificar-se nesta nossa velha Europa. A missão de educar, na Igreja, não se esgota na Escola Católica. No caso concreto do nosso País, o campo mais vasto para a Igreja realizar a sua missão de educar é composto pela vasta realidade da chamada escola pública, onde a Igreja tem de encontrar outros meios para realizar a missão, sobretudo através dos cristãos aí presentes. A Escola Católica é um meio específico de realizar a missão e exige, à partida, que se defina o seu enquadramento no conjunto de todas as escolas e no quadro mais vasto dos problemas da educação no nosso País. 3. Mas o que é, afinal, uma Escola Católica? Segundo o Direito Canónico, são católicas as escolas criadas por uma entidade canónica, ou aquelas que, sendo de iniciativa de cristãos, têm uma filosofia e um projecto educativo consentâneos com a visão da Igreja sobre a educação. Estas segundas, para serem consideradas escolas católicas, devem ser declaradas como tais pela Hierarquia (cf. c.803 do C.D.C.). Mas o facto de uma escola ser juridicamente católica não garante à partida, nem que seja uma boa escola, nem que realize a missão da Igreja. Esta qualidade define uma exigência contínua em qualidade de meios e em definição do projecto educativo. Tentarei desenvolver, de seguida, algumas dessas coordenadas e exigências do projecto educativo de uma Escola Católica. Continuarei a ter como pano de fundo o texto do Concílio Vaticano II já referido. Uma visão do homem e do mundo repassados do espírito evangélico 4. O cristianismo, ou mais exactamente, o judeo-cristianismo, não é apenas uma religião. É uma proposta cultural de civilização, veicula um sentido e uma interpretação da vida, é uma antropologia e uma mundividência. E este é o alicerce decisivo de qualquer projecto de educação. Não é agora o momento para desenvolver esta visão do homem e do mundo. Indicarei, apenas, de modo sucinto, alguns dados fundamentais: a relação do homem e do Universo com Deus seu criador, donde dimana a dignidade inviolável da vida humana e a sua dimensão escatológica. O ser humano é pessoa, isto é, ser em relação, chamado à fraternidade e ao amor. O homem encontra a sua realização na comunidade, onde dar-se e colaborar com os outros é mais importante do que buscar-se a si mesmo, introduz na educação o dinamismo de vitória sobre o egoísmo e o individualismo. A importância da dimensão ética do conviver, expressa, não apenas em afirmações, mas em atitudes, o que introduz na educação para a liberdade o sentido de responsabilidade e de generosidade. Ninguém consegue, sozinho, ser perfeito. Só se cresce, na linha da perfeição, com a ajuda dos outros e o imprescindível auxílio de Deus, que nunca nos abandona e que, para nós cristãos, se exprime na relação viva com Cristo, que nos infunde o Seu Espírito. Estes dados fundamentais de uma visão do homem e do mundo devem sempre fazer parte do projecto educativo de uma Escola Católica, mesmo que os seus alunos não sejam católicos. Todos os educadores que querem trabalhar na Escola Católica, devem aceitar esta visão, como inspiradora do projecto educativo em que colaboram, independentemente da sua posição pessoal em termos confessionais. E esta é a dimensão mais exigente da Escola Católica. Não basta que o seja juridicamente para estar a realizar a missão da Igreja. Além disso, exige-se uma síntese harmónica entre educação e aprendizagem, num tempo em que a comunicação de conhecimentos numa vasta área de matérias pode sobrepor-se às exigências educativas. O docente tem de ser um educador, ter a qualidade de um mestre e pedagogo. A Escola Católica não pode, em nome da qualidade do ensino, comprometer o seu projecto educativo. É que a missão da Igreja não se exprime só no estritamente religioso, mas na cultura que ajuda a construir. A Escola Católica como espaço de cultura 5. As grandes alterações da nossa sociedade, mesmo na própria Igreja, têm a sua origem na mutação cultural. Esta adquiriu uma aceleração como em nenhum outro tempo da história humana. As causas desta aceleração são múltiplas: a globalização da mediatização, pondo no tabuleiro da história outras visões do homem e do mundo; o sentido individual da liberdade; uma nova dimensão pragmática da racionalidade, provocada pela ciência e pela técnica; a perda do sentido da exigência e do sofrimento, numa sociedade baseada na facilidade e no consumo; a relativização da perspectiva cristã e sua substituição pela indiferença e pelo laicismo; o abandono da exigência ética e perda de valores, substituída por um sentido da verdade individual; a perda do sentido da história, da tradição e da dimensão comunitária e solidária da vida; o mito do presente, que apaga o legado do passado e não enfrenta o futuro. Sobretudo no Ocidente a mutação cultural ameaça destruir a própria cultura. Por exemplo, a Europa já tem dificuldade em se reconhecer numa cultura, o que põe em risco a sua identidade futura. Segundo o Concílio, a formação dos jovens supõe a construção de uma cultura. Um projecto educativo tem de ser um projecto cultural, repassado da visão do homem e do mundo a que me referi atrás. É um erro pensar que as crianças e os jovens não são capazes de participar num projecto cultural. É nessas idades que ele se sedimenta e adquire alicerces sólidos, base para um sadio exercício da liberdade. Para dar a toda a comunidade educativa o dinamismo de um processo cultural, tem de se ir muito mais além do ensino-aprendizagem: é preciso o debate contínuo entre formadores, famílias, comunidade humana, em que a escola se insere. É neste projecto cultural que se pode inserir a perspectiva cristã da vida, pois a fé cristã transforma-se espontaneamente, em cultura. A sintonia, longamente construída, entre o corpo de docentes e educadores, é parte decisiva na visibilidade de um projecto cultural. A escola não pode ser apenas um conjunto de actividades; é uma visão da vida, persistente e longamente prosseguida e afirmada. Educar é preparar para a sociedade concreta em que vivemos 6. Educar é preparar os educandos para viverem a sua vida adulta no meio do mundo, numa sociedade concreta, cidadãos conscientes e competentes, para contribuírem para a edificação da “cidade terrestre”, uma sociedade justa e fraterna. O texto do Concílio que escolhi como referência atribui claramente essa função à Escola Católica. Para cumprir essa missão é essencial que toda a formação se situe no quadro cultural de referência que acabei de referir. Sabemos como é, hoje, complexa a sociedade em que os nossos jovens vão viver a sua vida, complexidade que começa, aliás, na própria família, ela própria fragilizada e em profunda mutação. Para isso há traços de personalidade que têm de ser criteriosamente cultivados. Em primeiro lugar o conhecimento crítico da realidade. Educar não é proteger e fechar numa redoma. O educando deve ser habituado a confrontar-se com a realidade, com espírito crítico e com a gradualidade exigida pelo seu crescimento. Deve ser preparado para ter um juízo crítico sobre essa realidade, para não ser esmagado por ela. Isso supõe que o projecto educativo comunique uma visão da sociedade, com os seus valores fundamentais, parte constitutiva da cultura. Isto supõe que se cultive nos educandos a arte do discernimento. Este é pessoal, segundo a fisionomia espiritual de cada um, mas não estritamente individual, pois deve ser feito à luz de um quadro de valores de referência, que são património da comunidade, de modo particular da Igreja e da sua maneira de estar no mundo. E, finalmente, o discernimento supõe a formação da racionalidade. Ela deve ser apresentada como abertura à verdade, a toda a verdade, onde se inclui, para o crente, a verdade revelada, liberta de positivismos limitadores do seu horizonte, harmoniosa síntese entre razão e coração, capacidade reflexiva e sentido estético. Na fase constitutiva da formação, para um completo desabrochar da racionalidade, é importante a educação para a beleza. Devem aprender que a verdade e a beleza se encontram, que o homem não é dono e fonte da verdade, mas peregrino da verdade. É neste contexto que o Concílio afirma que a Escola Católica exerce uma função no diálogo global da Igreja com a sociedade. A Escola católica, para desempenhar este aspecto da missão, tem de se identificar com a Igreja e com a sua maneira de estar no mundo, e formar cidadãos que vão estar na sociedade com o mesmo espírito com que a Igreja está no mundo. Educação diferenciada segundo os géneros 7. O Concílio insiste que, na Escola Católica, a educação deve ser diferenciada segundo os sexos. No contexto actual das nossas escolas, quase todas em regime de co-educação, este aspecto exige criatividade lúcida e, sobretudo, uma grande atenção à pessoa concreta do educando. O sistema da co-educação impôs-se como óbvio, pois formar é preparar para viver numa sociedade de homens e mulheres, é ajudar a descobrir que viver é conviver. Mas isso não significa que se caia num modelo de educação uni-sexo. Há traços específicos na formação para ajudar os educandos a auto-descobrirem-se como homens ou mulheres, na complementaridade das suas personalidades. Não há regras nem códigos, para pôr em prática esta dimensão da formação. Depende do sentido de criatividade da equipa de formadores, na certeza de que dependerá muito dessa diferenciação o respeito e reconhecimento mútuo de homens e mulheres, na sua diferença em igual dignidade. Com isso ganhará a família e a própria sociedade. A Escola Católica como espaço de evangelização 8. Ao serviço da missão da Igreja, a Escola Católica tem de ser um espaço de evangelização. O Concílio afirma, claramente, que toda a sua acção é apostolado, mesmo na sua qualidade de serviço à pessoa humana, às famílias e à sociedade. Tudo quanto dissemos se insere nessa missão evangelizadora. Comunicar os princípios básicos de uma visão cristã do homem e do mundo, preparar para participar na cidade dos homens como presenças da Igreja no mundo, é evangelizar. Intervir na mutação cultural com os valores cristãos, é evangelizar. Mas a Escola Católica pode e deve ir mais longe na missão de evangelizar, segundo a situação dos seus alunos perante a fé católica. Entre nós ainda não se verificam situações, em que a maior parte dos alunos da Escola Católica pertencem a outras religiões. Pode haver, isso sim, uma variedade de situações em relação à fé explicitamente confessada e praticada. À semelhança do que se passa nas nossas catequeses, há muitos alunos que precisam de um primeiro anúncio da fé, uma evangelização querigmática, que é prévia ao aprofundamento catequético. Compete à comunidade educativa encontrar as formas mais aptas para o fazer, na certeza de que o ambiente que se cria e o testemunho de professores e educadores podem ser elementos decisivos. Mas o Concílio vai mais longe e fala da missão da Escola Católica de desenvolver nos seus educandos o mistério do seu baptismo. Isto significa que, no contexto da Escola Católica, se vai formando uma autêntica comunidade eclesial, onde se professa e celebra a fé, onde se aprofunda e cresce na fé. Esta comunidade eclesial é enriquecida com a participação das famílias e dos antigos alunos, que a Escola Católica deve acolher e acompanhar com solicitude. Estas comunidades, se bem estruturadas e fidelizadas, poderão constituir um modelo “sui generis” no conjunto das comunidades cristãs. Mas não basta para isso que só se reúnam nos dias de festa da escola, ou quando me pedem para baptizar aí os filhos e celebrar o matrimónio dos antigos alunos. Já o tenho permitido, mas, por favor, não me peçam só isso. Para terem a fisionomia de uma comunidade cristã de referência, tem de haver uma expressão habitual e estruturada da vida cristã, com a sua especificidade própria, mas com as coordenadas comuns a todas as comunidades da Diocese. Mas reconheço que, na actual fisionomia da cidade, são cada vez mais importantes e significativas estas comunidades de referência. A Escola Católica e as outras escolas 9. O texto do Concílio a que me venho referindo, o nº 8 da G.E.M., começa por afirmar que a Escola Católica é uma forma especial de presença da Igreja no universo mais vasto do mundo escolar. Isto sugere que a Igreja espera da Escola Católica uma atenção dialogante e cooperante com as outras escolas. No nosso caso concreto português, a Escola Católica representa uma pequena percentagem no vasto universo escolar, onde predomina a escola estatal, incorrectamente chamada pública, pela simples razão de que a Igreja é tão pública como o Estado. Isso mesmo é reconhecido pela actual Concordata, que considera a Igreja uma “pessoa pública” e que, além de reconhecer o direito da Igreja de criar escolas, estabelece o princípio da cooperação entre o Estado e a Igreja em sectores importantes para a vida da sociedade, como o são a educação e a acção social. Para atingir este objectivo indicado pelo Concílio, seria de incentivar experiências de diálogo colaborante entre as escolas católicas e outras escolas. Sobretudo não nos apresentemos como sendo as boas escolas, porque as há também muito boas entre as escolas estatais, com formadores competentes e dedicados, a trabalharem em condições pedagógicas, por vezes muito difíceis, a quem saúdo neste momento. 10. Na organização da nossa sociedade uma dimensão importante continua em aberto: a natureza e função do Estado, ao serviço da sociedade como um todo. Ao definir a sociedade democrática, já nos afastámos dos modelos de identificação entre o Estado e a sociedade, característica dos Estados totalitários. Mas resquícios de centralismo do Estado persistem, quer na mentalidade dos cidadãos, quer no comportamento do próprio Estado, que deve ser um dinamizador e regulador da sociedade civil, na sua pluralidade e potencialidade. O sistema educativo é um dos aspectos em que persistem algumas incongruências com a natureza de uma sociedade democrática. Não é função do Estado ser educador. É sua função apoiar as instituições válidas de educação, definir-lhes parâmetros de qualidade, porventura definir-lhes linhas programáticas dos conhecimentos a transmitir. Onde os sistemas constitucionais o prevêem, pode ser sua obrigação pagar o ensino, totalmente, ou em parte, tendo sempre uma atenção particular às famílias com menos posses. Num quadro democrático, estas funções do Estado devem aplicar-se, por igual, a todas as instituições de formação reconhecidas, independentemente do modo de o fazer. Afirmemos com clareza: a perfeição do sistema educativo português não se atingirá quando todas as crianças e jovens frequentarem uma escola estatal. Caminhar-se-á para essa perfeição, quando a sociedade gerar instituições de qualidade, com projecto educativo próprio e claramente definido, de modo que os pais as possam escolher em nome desse projecto educativo. Mas a realidade é o que é, e não é previsível que mude facilmente. Que o Estado seja proprietário de escolas e as mantenha, não é grave, desde que lhes dê autonomia pedagógica, com capacidade de definir o seu projecto educativo, constituir equipas formadoras, identificadas com o respectivo projecto educativo. É inalienável o direito dos pais de escolherem a escola para os seus filhos, segundo a proposta educativa que a escola oferece. E isso não é compatível com a afectação dos alunos a uma determinada escola, decidida com critérios geográficos. Talvez, então, deixemos de contrapor ensino público e ensino particular e cooperativo e passemos, antes, a distinguir boas escolas das menos boas, independentemente da entidade da sociedade que as promove. Esperemos que, nesse quadro, as Escolas Católicas se esforcem por estar entre as melhores. A discriminação económica entre escolas que o Estado paga e as que não paga, prejudica o crescimento harmónico do sistema, a sadia competição e é injusta para com as famílias, sobretudo as mais frágeis economicamente, que assim lhe vêem vedada a possibilidade de escolherem a escola que desejavam para os seus filhos. Estas mudanças estruturais têm de passar por uma mudança de mentalidade. A maior parte das famílias portuguesas não se questionam, sequer, sobre a orientação educativa da escola onde colocam os seus filhos, ou só despertam quando há problemas e conflitos. Tem de se chegar a uma consciência colectiva sobre esta matéria que possa exprimir-se no voto democrático. Então os candidatos a integrarem as estruturas do Estado ver-se-ão forçados a dizer aos portugueses o que pensam do sistema educativo. E na formação dessa consciência colectiva, todas as escolas, com o sentido da sua autonomia pedagógica e da dignidade da sua função social podem ajudar. Espero que entre elas estejam as Escolas Católicas, que devem aprender, não apenas a reivindicar, mas a colaborar. Também assim estarão a realizar a missão da Igreja na sociedade. D. José Policarpo,Cardeal-Patriarca

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top