A Era da informação global, mas filtrada!

Padre Miguel Neto, Diocese do Algarve

Foto: Agência ECCLESIA/MC

No mundo atual, um dos maiores ativos comercial é a posse e acesso à informação, com possibilidade de captar a atenção e manipular pessoas. Não interessa a verdade. Ou melhor, a verdade está fragmentada e é legalmente manipulada, para responder à verdade que cada um quer para si.

Um exemplo claro disso é a quantidade de pessoas, em todo o mundo, que acreditam que a terra é plana, os chamados terraplanistas. A estimativa do número de pessoas que fazem parte desta comunidade é difícil de determinar com precisão, devido à natureza segmentada e dispersa desse grupo. No entanto, existem algumas indicações baseadas em eventos, redes sociais e pesquisas[1]. Plataformas como Facebook, YouTube e Reddit têm comunidades ativas de terraplanistas. Grupos no Facebook, por exemplo, podem ter dezenas de milhares de membros.

Um dos maiores grupos de terraplanistas no Facebook tinha, em determinado momento, mais de 200.000 membros. Vídeos sobre terraplanismo no YouTube acumulam milhões de visualizações, sugerindo um grande interesse global. Existem conferências anuais, como a Flat Earth International Conference (FEIC)[2] [3], que atraem centenas de participantes. Esses eventos mostram que há um número significativo de pessoas interessadas no tema. Mais, alguns estudos e pesquisas tentaram estimar a crença em teorias da conspiração, incluindo o terraplanismo. A pesquisa Ipsos MORI (2018) [4], realizada em 24 países, encontrou que uma pequena percentagem de pessoas em cada país, que tinha dúvidas sobre a forma da Terra. Embora a percentagem varie, a média de céticos em relação à esfericidade da Terra, pode girar em torno de 1% a 2% da população em muitos países. Considerando todas essas fontes, uma estimativa conservadora sugere que a comunidade terraplanista global pode incluir alguns milhões de “crentes”. Esta é uma estimativa ampla, dado que muitos adeptos podem não se manifestar publicamente, devido ao estigma social associado à crença.

Para muitas destas pessoas o facto da terra ser plana é inquestionável e só procuram informação que confirmam as suas ideias. Mas se o terraplanista é o exemplo perfeito daquilo que o algoritmo, a ausência de Literacia Mediática e o tribalismo digital podem fazer, há outros aspetos mais preocupantes.

No mundo dos influencers, sobretudo no Youtube, existem múltiplos vídeos de pseudo-analistas da vida política, que produzem extensas análises enviesadas do quotidiano, não sendo jornalistas ou outros profissionais qualificados. Mais, na maioria das vezes, atacam o jornalismo. Em Portugal, na minha opinião, o caso mais paradigmático é o de João Tilly, atualmente deputado, que durante anos, enquanto acariciava o seu gato branco, qual agente do mal do “inspetor gadjet”, fragmentava entrevistas e debates parlamentares, comentando tudo e todos, usando uma linguagem agressiva e ofensiva para os que ele não gostava, sobretudo os jornalistas, chegando a apelidar muitos de “jornalixo”.

Aliás, o utilizar e fabricar a verdade à sua maneira é muito próprio de regimes autoritários e de quem os defende. Vejamos o que se passa na Venezuela, por exemplo, onde praticamente foram fabricados resultados eleitorais e, quem quer e defende a verdade dos resultados eleitorais, corre o sério risco de sofrer violência, represálias, prisão.

Todo o extremismo ideológico apresenta raízes comuns, ou não tivesse Mussolini, pai do fascismo, uma trajetória inicial ligada ao socialismo e ao marxismo e, algumas das primeiras influências do movimento fascista, vieram dessas ideologias.

O problema é que, na era digital, onde cada um vive e sobrevive fazendo tudo para captar a atenção e fabrica informação, a realidade está a tornar-se perigosa e a Igreja tem um claro papel importante. Deve cultivar e germinar os valores judaico-cristãos no ambiente digital, que influencia o ambiente físico e não o contrário. E por isso, quem é cristão não pode defender ideologias, ideais e ideias contrárias ao Evangelho e aos valores judaico-cristãos. Estamos a correr o risco de políticos usarem os nossos valores e a não fé para uma utilização política. E em séculos anteriores tivemos isso mesmo, ou não fosse a inquisição uma utilização da fé cristã e da Igreja, por exemplo, parte dos reinos de Espanha e Portugal, para alcançar objetivos políticos e económicos.

Como cristãos temos de lutar para conhecer a “verdadeira verdade” e não a verdade que alguns (e depois muitos), nos fazem chegar. A verdade até pode ser anunciada, mas por jornalistas isentos e que estudam anos para isso.

A Igreja, nomeadamente através do seu Magistério e de documentos fulcrais, que vêm sendo escritos desde o Concílio Vaticano II, incentiva os seus membros, os cristãos, a serem democratas e a defendem a democracia. Mais: a participarem ativamente na vida política, no sentido de defenderem intransigentemente o bem comum, o respeito pelo próximo, a misericórdia e todos os valores, nos quais assentam os ensinamentos de Cristo. É por isso que, quando na Radio Renascença li que Trump dizia que se ganhasse as eleições não era preciso votar mais, percebi que não pratica, nem defende os valores judaico-cristãos. Afinal, não há qualquer diferença entre Donald Trump e Nicolas Maduro. Ambos não gostam de eleições e querem acabar com elas. É preciso coragem, coerência e determinação para sermos cristãos hoje. E procurar conhecimento, o verdadeiro conhecimento.

 

[1] Martins, A. G., Gonsalves, R. & Estevão, I.R. (2022). Terraplanismo: perspectivas psicanalíticas de um movimento, Analytica vol.11 no.20 São João del Rei jan./jun. 2022, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-51972022000100012.

[2] McIntyre, L. (2023). How to talk to a Science Denier: What i learned at The Flat Earth Convention, Bulletin of the American Physical Society, https://meetings.aps.org/Meeting/MAR23/Session/Q12.3

[3] https://www.facebook.com/FEConference/

[4] Ipsos MORI (2018). Ipsos MORI Veracity Index, https://www.ipsos.com/sites/default/files/ct/news/documents/2018-11/veracity_index_2018_v1_161118_public.pdf.

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