A epopeia da Palavra criadora

Homilia do Cardeal-Patriarca na Solenidade do Natal do Senhor 1. As leituras desta celebração convidam-nos a não ficarmos prisioneiros, na meditação do nascimento de Jesus, dos pormenores dos acontecimentos de Belém, mas a alargarmos o horizonte da nossa compreensão à Palavra eterna de Deus e Sua manifestação progressiva na Criação e na História da Salvação, e à plenitude dessa manifestação na encarnação do Verbo de Deus na pessoa de Jesus Cristo. A verdadeira novidade do Evangelho de São João é a de identificar a plena manifestação da acção do Verbo eterno, na pessoa de Jesus, o Verbo feito carne. “No princípio era o Verbo, o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus” (Jo. 1,1). Este “logos”, na pena de São João, é a aplicação a Jesus Cristo do mistério da Palavra (dabrar) e de toda a sua eficácia divina, na criação e na história da salvação, ambas reunidas no âmbito da acção divina. Há entre a criação e a salvação um elo de continuidade do poder criador de Deus. O Verbo é a força criadora de Deus. Só em Jesus Cristo nos é revelado que Ele é uma Pessoa divina. É por isso que a Sagrada Escritura afirma que “tudo se fez, por meio d’Ele e, sem Ele, nada se fez” (Jo. 1,3). Este início do Evangelho de São João, em que narra a obra salvífica do Verbo encarnado, evoca o versículo um do Génesis, que afirma que “no princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gen. 1,1). Trata-se da obra criadora do Verbo divino. Isto abre-nos para o mistério das criaturas, que existem e subsistem a partir desta força criadora de Deus, porque “n’Ele existe a vida e a vida é a luz dos homens” (Jo. 1,4). A relação de cada homem, com Jesus Cristo, na fé, apenas explicita e aprofunda esta relação vital, ao nível do ser, com o Verbo criador de Deus. É esta explicitação da fé de algo que é congénito no mais profundo do ser humano, que o mesmo São João explicita na sua primeira Carta: “Anunciamo-vos a vida eterna que estava junto do Pai e nos apareceu: o que nós vimos e ouvimos, nós vo-lo anunciamos, para que estejais em comunhão connosco e que a nossa comunhão seja com o Pai e com o Seu Filho Jesus Cristo” (1Jo. 1,2-3). O anúncio de Jesus Cristo, a que chamamos evangelização, é também o anúncio, a cada homem, do seu mistério mais profundo, a origem da sua vida. A fé em Jesus Cristo é sempre a luz que leva o homem a descobrir uma realidade que é antes da fé. A relação de cada um com o Verbo Criador não depende da sua vontade; existe, porque nós existimos. É este o sentido radical da expressão “no princípio”. No início da nossa vida e em cada etapa do seu desenvolvimento, como a descoberta do amor e do sentido, o experimentar da alegria como antecâmara da felicidade, está sempre a Palavra criadora, que sendo fonte de vida, é reveladora de sentido. 2. Compreende-se, assim, que a Teologia do Antigo Testamento atribua a esta força criadora de Deus, a Sua Palavra, toda a História da Salvação. Esta Palavra eterna assume, no contexto da salvação, que aparece como “segunda criação”, uma dupla dimensão: a de força criadora, e a de Palavra reveladora, pois uma história de salvação só é viável, com o conhecimento progressivo da intimidade de Deus e do Seu desígnio. Cada acção de Deus em favor do Seu Povo é sempre realizada por essa Palavra criadora e desvela o segredo do coração de Deus, o Seu desígnio de amor, que já presidiu à criação e conduz a história. É por isso que, na tradição sapiencial, a Palavra criadora é vista como “sabedoria personificada”, porque a Sabedoria, ao mesmo tempo que cria e transforma, revela o sentido (cf. Prov. 8). 3. O dado novo que nos traz o nascimento de Jesus é a afirmação de que o “Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo. 1,14). Essa é a ousadia da fé pascal: aplicar a um ser histórico concreto, Jesus morto e ressuscitado, tudo o que a tradição bíblica afirmava da Palavra criadora e da Sabedoria divina. Imerso na nossa realidade humana, Ele continua a ser a Palavra criadora e reveladora. “O Verbo era a luz verdadeira, que todo o homem ilumina, ao vir a este mundo”. São Paulo, na Carta aos Colossenses, referindo-se a Jesus Cristo, diz dele o que o Antigo Testamento afirmou do Verbo eterno: “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura, porque n’Ele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis” (Col. 1,15-16). Na primeira criação, Deus foi completamente soberano. Nada na criação se opôs ao Seu poder criador; antes, Ele pôde contemplar a beleza de tudo o que criou. Ao contrário, a força criadora da Palavra, a actuar na História da Salvação, encontrou a resistência da liberdade humana, ferida pelo pecado. “O mundo, feito por meio d’Ele, não O reconheceu. Veio para o que era Seu e os seus não O acolheram” (Jo. 1,11). A paixão e morte de Jesus não foi a primeira rejeição dos homens à Palavra eterna, que criava e revelava. A sua acção tornou-se dialéctica e dramática, numa batalha que tem de ser vencida no coração de cada homem que se deixou fazer pela Palavra, tornando-se filho de Deu. É uma luta que só acabará quando todos os inimigos tiverem sido vencidos e todos se sujeitarem à Senhoria de Jesus Cristo. Em Deus só o Seu Verbo podia encarnar, pois Ele está congenitamente ligado à Criação. Não Lhe repugna exprimir-se num homem, porque no homem exprimiu, “desde o princípio”, a Sua força criadora. 4. Na encarnação tornou-se visível, para nós, que o Verbo eterno é uma Pessoa, e que a Sua força criadora e reveladora é um mistério de comunhão e de amor. Tudo em Jesus Cristo é Palavra e não apenas as suas palavras, o que revela o sentido radical da Pastoral da Palavra, na Igreja. Cristo ressuscitado, pela acção do Seu Espírito, continua a ser, na Igreja, Palavra criadora e reveladora. Os sacramentos são a principal expressão do Verbo criador; o discurso é uma das expressões da Palavra reveladora, desvelando o sentido da obra criadora e redentora do Verbo eterno de Deus. O cristianismo é irredutível a uma doutrina; ele tem a força e a surpresa da vida a acontecer, em cada criança que nasce, em cada homem que se converte, em cada coração que aprende a amar. É “que o Verbo fez-se carne e habitou no meio de nós. E nós vimos a glória d’Ele, glória que lhe vem do Pai, como a Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14). Sé Patriarcal, 25 de Dezembro de 2005, † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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