A Doutrina Social da Igreja e a crise

Crise! Que é a crise?
O conceito não é unívoco. Pode ter mais que um significado. Tanto pode referir-se a oportunidades e a passagem para estádios superiores (crise de crescimento, de adolescência) como dizer respeito a aspetos negativos. É neste sentido que habitualmente se fala da atual situação económica e social portuguesa.
De forma grosseira, pode ser simbolizada na balança de braços: por qualquer motivo, os pratos que estavam em equilíbrio deixam de o estar e um afunda-se enquanto o outro sobe. Porquê? Ou porque a estabilidade era mantida artificialmente ou porque um novo fator veio desestabilizar tudo.
De seguida, deixo uma reflexão incipiente sobre isso. Fixo-me em umas poucas notas com o único objetivo de favorecer a reflexão. Obviamente, situar-me-ei numa dimensão humanista, já que esta, na mente da Igreja constitui a solução do problema.

1. Voltemos à imagem da balança. Da mesma forma que se um prato sobe o outro desce, também se milhões e milhões de pessoas perdem, alguém ganha. E de facto, essa perda é canalizada para uns poucos, que lucram imenso. Dotados de mecanismos eficientíssimos (sobre-posição dos instrumentos financeiros às economias reais, agências de rating manipuladoras, transferências de capitais, especulação bolsista, etc.), uma reduzida minoria impõe regras a que nem sequer os governos conseguem subtrair-se. E regras… desumanas. A roçar a extorsão… «legalizada».
É o pecado estrutural, essa soma de pecados pessoais que interagem uns com os outros e se potenciam enormemente. E sobre os quais é difícil intervir. É como no caso do maquinista do comboio: orientar nesta ou naquela direção não depende dele, mas da disposição exterior das agulhas.

2. Por isso, tem razão a Igreja quando refere: a saída da crise não depende apenas de soluções técnicas, mas de um enquadramento global ou de uma nova síntese humanista. Depende da conversão pessoal e coletiva. O problema é, de facto, moral. São os valores que estão em jogo. É preciso saber se o nosso mundo ainda dá crédito a noções tais como justiça, responsabilidade social, bem comum, lealdade, transparência, dignidade, fraternidade, etc. Sem mudança de conceitos, sem mudança cultural, não sairemos da crise. E sem moral não existe verdadeira mudança cultural.

3. A modernidade fracionou os saberes. Atomizou-os. Desintegrou a realidade em partículas infinitamente pequenas. E muitos aspetos sectoriais das ciências, inegavelmente, progrediram. Mas conhecer as partículas não é a mesma coisa que abarcar a realidade. Até pode ser desfazê-la. Por isso, hoje exige-se “uma interdisciplinaridade harmónica, feita de unidade e distinção” (Encíclica Caridade na verdade, 31). Ciência, metafísica, ética, teologia e fé, no respeito da especificidade de cada uma, devem conjugar-se para encontrar aquela unidade que constitui o humano integral. Mas alguns recusam-na. Porque será? E a crise alastra…

4. Na conhecida expressão de Ortega, a pessoa é ela e as suas circunstâncias. Eu diria: é ela e as suas instituições. Pois bem, algumas delas não estão a cumprir o que deviam. A que mais falha parece ser a ONU. Como referia, há tempos, o Card. Maradiaga, a ONU parece ter desistido da sua função de motor de humanização do nosso mundo para se ocupar com a difusão do preservativo e do aborto, dos direitos dos gays e da ideologia do género. A ONU está, de facto, em crise profunda. Ou se reformula ou… não sei. Mas algo de semelhante também se pode dizer da União Europeia. Parece que os Estados mais fortes estão a impor as suas visões (e os seus interesses?) aos mais débeis. Certos «eixos» apontam para aí. A EU não poderia ter feito mais pela Grécia, Irlanda e Portugal do que aplicar as eufemísticamente designadas «regras do mercado»? A Europa não necessitará de um «suplemento de alma» que a torne diferente, porque humanista? O cristianismo não poderá contribuir para isso?

5. Quase sempre, as instituições fundamentam-se numa dada ideologia. Parece que a ideologia que sustenta grande parte delas é o neoliberalismo económico. Assim, faz-se do capitalista o «sacerdote do progresso», como se dizia no século XIX, e o benfeitor da humanidade. Mas essa ideologia, enquanto materialismo intramundano, que desconhece outra dimensão de vida que não seja o lucro, a adoração do velho deus Mammon, não pode ser aceite pelos cristãos: é contrária à verdade integral da pessoa humana e ao desígnio de Deus na história. Por isso, economia absolutamente liberal, não, não e não!

6. Entre nós, esse liberalismo imposto pela troika e, pelos vistos, bem aceite pela maioria das pessoas que frequentaram as Faculdades de Economia, tem, no mínimo, de ser mitigado pelo bom senso. É lógico e urgente que se racionalizem as despesas e os desperdícios. Mas que jamais falte a alguém os bens de quatro setores fundamentalíssimos: saúde, educação, justiça e segurança. Bens que, em muitos casos, segundo o princípio de subsidiariedade, podem ter origem na iniciativa privada, apoiada pelo Estado. E, especialmente, que ninguém passe fome ou deixe de poder comprar os medicamentos indispensáveis. Isso não constituiria somente a vergonha da Segurança Social: seria a vergonha… nacional.

7. Mas também não fiquemos no pessimismo e no fatalismo. É possível a mudança! É possível uma outra cultura e uma outra mentalidade. A crise pode ser uma oportunidade. Para isso, é indispensável o contributo dos cristãos. Como? Difundindo um novo humanismo. Um humanismo integral, para o qual a economia é apenas um setor, embora importante. Mas não é tudo. Como escreve Bento XVI, “somente se pensarmos que somos chamados, enquanto indivíduos e comunidade, a fazer parte da família de Deus como seus filhos, é que seremos capazes de produzir um novo pensamento e desenvolver novas energias ao serviço de um verdadeiro humanismo integral. Por isso, a maior força ao serviço do desenvolvimento é um humanismo cristão” (CV 78).
Eu também assim penso. Piamente.

D. Manuel Linda
Bispo auxiliar de Braga

 

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