A divindade de Cristo no Evangelho de João

Segunda pregação de Advento do Pe. Raniero Cantalamessa na manhã desta sexta-feira (9 de Dezembro) junto de Bento XVI e seus colaboradores da Cúria. Segunda pregação de Advento à Casa Pontifícia «VOCÊ ACREDITA?» A divindade de Cristo no Evangelho de João 1. «Se não crerdes que Eu Sou…» Um dia eu celebrava a Missa em um mosteiro de clausura. Era tempo pascal. Como passagem evangélica estava a página de João na qual Jesus pronuncia repetidamente o seu «Eu sou»: «Se não crerdes que Eu Sou, morrereis em vossos pecados… Quando tiverdes elevado o Filho do homem, sabereis que Eu Sou… Antes que Abraão existisse, Eu Sou» (Jo 8, 24.28.58). O facto de que as palavras «Eu Sou», contrariamente a toda regra gramatical, foram escritas ambas com letra maiúscula, unido certamente a alguma outra causa mais misteriosa, fez saltar uma centelha. Aquela palavra se iluminou dentro de mim. Não era mais só o Cristo de dois mil anos que a pronunciava, mas o Cristo ressuscitado e vivo que proclamava de novo, naquele momento, diante de nós, o seu Ego Eimi, «Eu Sou»! A palavra adquiria ressonância cósmica. Não se tratou aqui de uma simples emoção de fé, mas daquelas que, passadas, deixam no coração uma recordação indelével. Iniciei com esta recordação pessoal, porque o tema desta meditação é a fé em Cristo no Evangelho de João, e o «Eu Sou» de Cristo é a expressão máxima de tal fé. Os comentários modernos sobre o quarto evangelho são unânimes em ver naquelas palavras de Jesus uma alusão ao nome divino, como ele se apresenta, por exemplo, em Isaías 43, 10: «Para que saibais e creiais em mim e que possais compreender que Eu sou». Santo Agostinho relacionava esta palavra de Jesus com a revelação do nome divino do Êxodo 3, 14, e concluía: «Parece-me que o Senhor Jesus Cristo, dizendo: “Se não crerdes que Eu Sou”, não queria dizer nada mais que isto: “Sim, se não crerdes que eu sou Deus, morrereis nos vossos pecados”.1 Pode-se objectar que estas são palavras de João, desenvolvimentos tardios da fé, que Jesus não as fez. Mas justamente aqui está o ponto. Elas são, pelo contrário, palavras de Jesus; certamente de Jesus ressuscitado que vive e fala agora «no Espírito», mas sempre de Jesus, o mesmo Jesus de Nazaré. Hoje se costuma distinguir as falas de Jesus nos evangelhos em palavras «autênticas» e em palavras «não autênticas», isto é, em palavras pronunciadas verdadeiramente por ele durante a sua vida e em palavras atribuídas a ele pelos apóstolos depois de sua morte. Mas esta distinção é muito ambígua e não vale no caso de Cristo, como no caso de um autor humano comum. Não se trata, evidentemente, de colocar em dúvida o carácter plenamente humano e histórico dos escritos do Novo Testamento, a diversidade dos géneros literários e das «formas», tanto menos de voltar à velha ideia de inspirações verbais e quase mecânicas da Escritura. Trata-se somente de saber se a inspiração bíblica tem ainda algum sentido para os cristãos ou não; se, quando ao término de uma leitura bíblica, exclamamos: «Palavra do Senhor!», acreditamos ou não naquilo que dizemos. 2. «A obra de Deus é crer naquele que ele enviou» Cristo é o objecto específico e primário do crer segundo João. «Crer», sem outra especificação, significa já crer em Cristo. Pode também significar crer em Deus, mas enquanto é o Deus que mandou seu Filho ao mundo. Jesus se volta a pessoas que crêem já no verdadeiro Deus; toda a insistência sobre a fé traz já esta coisa nova, que é a sua vinda no mundo, o seu falar em nome de Deus. Em uma palavra, o seu ser o Filho unigénito de Deus, «uma coisa só com o Pai». João fez da divindade de Cristo e de sua filiação divina o objecto primário de seu evangelho, o tema que tudo unifica. Ele conclui seu Evangelho dizendo: «Estes [sinais] foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome» (Jo 20, 31), e conclui sua Primeira carta quase com as mesmas palavras: «Isto vos escrevo para saberdes que tendes a vida eterna, vós que credes no nome do Filho de Deus» (1 Jo 5, 13). Uma rápida passada pelo Quarto evangelho mostra como a fé na origem divina de Cristo constitui, por sua vez, seu tear e trama. Crer naquele que o Pai enviou é visto como «obra de Deus», o que agrada a Deus, absolutamente (cf. Jo 6, 29). Não crer é visto, consequentemente, como «o pecado» por excelência: «O consolador – foi dito – convencerá o mundo quanto ao pecado», e o pecado é não haver acreditado nele (Jo 16, 8-9). Jesus pede para si o mesmo tipo de fé que se pedia para Deus no Antigo Testamento: «Credes em Deus, crede também em mim» (Jo 14, 1). Também depois de sua partida, a fé nele restará como grande separador de águas no seio da humanidade: de um lado estarão aqueles que, sem haver visto, crerão (cf. Jo 20,29), e do outro lado estará o mundo que rejeitará crer. Diante desta distinção, todas as outras, conhecidas primeiramente, incluída aquela entre judeus e gentios, passam a um segundo plano. Há que se permanecer estupefacto diante da empreitada que o Espírito de Jesus permitiu a João levar a termo. Ele abraçou os temas, os símbolos, as expectativas, tudo isto que havia de religiosamente vivo, seja no mundo judaico como no helenístico, fazendo servir tudo isto a uma única ideia, ou melhor, a uma única pessoa: Jesus Cristo Filho de Deus, salvador do mundo. Ao ler os livros de certos estudiosos, dependentes da «Escola de história comparada das religiões», o mistério cristão apresentado por João não se distingue senão em coisas de pouca importância do mito religioso gnóstico e mandeu, ou da filosofia religiosa helenística e hermética. Os limites se perdem, os paralelismos se multiplicam. A fé cristã converte-se em uma das variantes desta mitologia variada e desta religiosidade difusa. Mas o que significa isto? Significa somente que se prescinde da coisa essencial: da vida e da força histórica que está por detrás dos sistemas e das representações. As pessoas vivas são diversas umas das outras, mas os esqueletos se assemelham todos. Uma vez reduzido a esqueleto, isolado da vida que produziu, isto é, da Igreja e dos santos, a mensagem cristã corre o risco de sempre se confundir com outras propostas religiosas, enquanto isso é «inconfundível». João não nos deixou um conjunto de doutrinas religiosas antigas, mas um potente kerygma. Aprendeu a língua dos homens de seu tempo, para gritar nela, com todas suas forças, a única verdade que salva, a Palavra por excelência, «o Verbo». Uma empreitada como esta não se realiza no escritório. A síntese joanina da fé em Cristo é colocada “no foco”, sob o influxo daquela unção do Espírito Santo que ensina toda coisa», da qual ele mesmo, certamente por experiência pessoal, fala na Primeira Carta (cf. 1 Jo 2, 20.27). Justamente por causa desta sua origem, o Evangelho de João, também hoje, não se compreende estudando em um escritório, com quatro ou cinco dicionários abertos em frente para consultar. Só uma certeza revelada, que tem dentro de si a autoridade e a própria força de Deus, pode desdobrar-se em um livro com tal insistência e coerência, chegando, de milhares de pontos diversos, sempre à mesma conclusão: Jesus de Nazaré é o Filho de Deus e o salvador do mundo. 3. «Bem-aventurado quem não se escandaliza de mim» A divindade de Cristo é o pico mais alto, o Everest, da fé. Muito mais difícil que crer simplesmente em Deus. Esta dificuldade está ligada à possibilidade e, assim, à inevitabilidade do «escândalo»: «Bem-aventurado – disse Jesus – quem não se escandaliza de mim!» (Mt 11, 6). O escândalo depende do fato que o que se proclama «Deus» é um homem do qual se sabe tudo: «Este sabemos de onde é», dizem os fariseus (Jo 7, 27). A possibilidade do escândalo deve ser especialmente forte para um jovem judeu como o autor do IV Evangelho, habituado a pensar em Deus como o três vezes Santo, aquele que não se pode ver e tocar com vida. Mas o contraste entre a universalidade do Logos e a contingência do homem Jesus de Nazaré parecia sumamente estridente também para a mentalidade filosófica do tempo. «Filho de Deus – exclamava Celso – um homem que viveu poucos anos atrás? Um de ontem ou anteontem?», um homem «nascido em um vilarejo da Judéia, de uma pobre fiandeira?»2. Esta reacção escandalizada é a prova mais evidente que a fé na divindade de Cristo não é fruto da helenização do cristianismo, mas, em todo caso, da cristianização do helenismo. Também com este propósito se lêem observações iluminadoras na Introdução ao cristianismo do atual Sumo Pontífice: «Com o segundo artigo do “Credo” estamos diante de um autêntico escândalo do cristianismo. Ele é constituído pela confissão de que o homem-Jesus, um indivíduo injustiçado por volta do ano 30 na Palestina, seja o “Cristo” (o ungido, o eleito) de Deus, nada menos que o próprio Filho de Deus, portanto, centro focal, o fulcro determinante de toda história humana… É-nos verdadeiramente lícito abraçar o frágil acontecimento de um simples evento histórico? Podemos correr o risco de confiar toda nossa existência, ou seja, toda história, a este fio de palha de um acontecimento qualquer, flutuante no infinito oceano da vicissitude cósmica?»3. Sabe-se quanto esta ideia, já por si inaceitável ao pensamento antigo e ao asiático, encontra resistência no contexto actual do diálogo inter-religioso. «Um evento particular – faz-se observar –, limitado no tempo e no espaço, como é a pessoa histórica de Cristo, não pode exaurir a infinita potencialidade de salvação de Deus e de seu Verbo». Deve-se por isso admitir caminhos diversos de salvação, independente do Cristo histórico, Ainda que não do Verbo eterno de Deus. A razão pode nos ajudar a dar uma primeira resposta a esta objecção. Se é verdade de fato que nenhum evento particular possa exaurir, por si só, a infinita potencialidade de salvação de Deus e de seu Verbo eterno, é também verdade que esse possa realizar, com tal potencialidade, quanto basta para a salvação do mundo, sendo também ele finito! Mas, em última análise, o escândalo se supera só com a fé. Não basta eliminar as provas históricas da divindade de Cristo e do cristianismo. Não se pode crer verdadeiramente – escreveu Kierkegaard – senão em situação de contemporaneidade, fazendo-se, isto é, contemporâneo de Cristo e dos apóstolos. Mas a história, o passado, não nos ajuda a crer? Não fazem agora dois mil anos que Cristo viveu? Seu nome não é anunciado e acreditado no mundo inteiro? A sua doutrina não mudou a face do mundo, não penetrou vitoriosamente em todo ambiente? E a história não estabeleceu de maneira mais que suficiente que ele era Deus? Não, responde o mesmo filósofo, a história isto não pode fazer em toda a eternidade! Não é possível, dos resultados de uma existência humana, como foi aquela de Jesus, concluir dizendo: Portanto, este homem era Deus! Uma pegada no caminho é uma consequência do fato que alguém tenha passado por ali. Eu posso enganar-me, crendo, por exemplo, que se trate de um pássaro. Examinando melhor, poderei concluir que não se trata de um pássaro, mas de um outro animal. Mas não posso, por mais que continue a examinar melhor, chegar a conclusão de que não se trata nem de um pássaro nem de outro animal, mas de um espírito, porque um espírito, por sua natureza, não pode deixar rastros sobre a estrada. Analogamente, não podemos chegar à consequência de que Cristo é Deus, simplesmente examinando aquilo que conhecemos dele e da sua vida, isto é, mediante a observação directa. Quem quer crer em Cristo é obrigado a fazer-se seu contemporâneo na descida, escutando o «testemunho interno» que por si nos dá o Espírito Santo. Como católicos temos algumas reservas de fazer desta forma o enfrentar o problema da divindade de Cristo. Falta o devido relevo à ressurreição de Cristo, outro a seu descimento, e não se tem muito em conta o testemunho externo dos apóstolos, ou ainda o «testemunho interno do Espírito Santo». Mas há nisso um importante elemento de verdade do qual devemos ter em conta para tornar nossa fé sempre mais autêntica e pessoal. São Paulo diz que «com o coração se crê para obter a justiça e com a boca se faz a profissão de fé para ter a salvação» (Rm 10, 10). O segundo momento, a profissão de fé, é importante, mas se não é acompanhado do primeiro momento que se desenvolve nas profundezas ocultas do coração esse é vão e vazio. «É das raízes do coração que sai a fé», exclama Santo Agostinho4, parafraseando o paulino corde creditur, com o coração se crê. A dimensão social e comunitária é certamente essencial à fé cristã, mas essa deve ser o resultado de tantos atos de fé pessoais, se não quer ser uma fé puramente convencional e fictícia. 4. «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» Esta fé «do coração» é fruto de uma especial unção do Espírito. Quando se está sob esta unção a fé cria uma espécie de conhecimento, de visão, de iluminação interior: «Nós cremos e conhecemos» (Jo 6, 69); «Contemplamos o Verbo da vida» (cf. 1 Jo 1, 1). Ouça Jesus afirmar: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai se não por mim» (Jo 14, 6) e ouça dentro de você, com todo o seu ser, que aquilo que escuta é verdadeiro. Conheci recentemente um caso impressionante desta iluminação de fé ocorrida justamente graças a esta palavra de Jesus transmitida por João. Conheci em Milão um artista suíço que teve amizade com as personalidades filosóficas e artísticas mais conhecidas de seu tempo e organizou mostras pessoais de pintura em várias partes do mundo. (Um quadro seu foi exposto e adquirido pelo Vaticano por ocasião do octogésimo aniversário de Paulo VI). Sua apaixonada pesquisa religiosa o tinha levado a aderir ao budismo e ao hinduísmo. Depois de longas estadas no Tibet, Índia, Japão, tornou-se um mestre em tais disciplinas. Em Milão, tinha todo um grupo de profissionais e homens de cultura que recorriam à sua orientação espiritual e praticavam com ele meditações transcendentais e yoga. Seu retorno à fé em Cristo me pareceu imediatamente um testemunho extraordinariamente actual e insisti muito para que colocasse por escrito. Chegou-me justamente neste dia seu manuscrito e quero ler um pequeno trecho. Ajuda, entre outras coisas, a entender o que Saulo viveu no caminho de Damasco, diante da luz que destruía em um instante todo o seu mundo interior e o substituía com outro: «Encontrava-me só, em um bosque espesso, quando veio aquela revolução interior que mudou toda a estrutura pensante da minha mente. Conhecia as palavras de Cristo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém chega ao Pai senão por mim”. Mas, no passado, achava um tanto presunçosas. Agora estas palavras golpeavam o centro de meu ser. Depois de trinta e cinco anos de budismo, hinduísmo e taoísmo, eu era atraído por «aquele Deus». Contudo havia em mim a presença de uma profunda rejeição por tudo o que se refere ao cristianismo. Lentamente, senti invadir-me uma estranha sensação inteiramente nova, como jamais tinha experimentado. Percebi a presença de Alguém que emanava uma extraordinária força». «Aquelas palavras de Cristo me obcecavam, tornando-se um pesadelo. Resisti, mas o som interior se ampliava e retornava como um eco em minha consciência. Cheguei perto do pânico, perdi o controle sobre minha mente e isto depois de trinta anos de meditação profunda era para mim inconcebível. “Sim, é verdade, tem razão, gritava, é verdade, é verdade, mas cesse, peço-te, peço-te”. Pensei em morrer pela impossibilidade de sair daquela tremenda situação. Não via mais as árvores, não sentia mais os pássaros, era só a voz interior daquelas palavras que se estamparam no meu ser». «Caí por terra e perdi a consciência. Mas antes que acontecesse, senti-me envolvido por um amor sem limite. Senti liquefazer-se a estrutura que leva meu pensamento, como uma grande explosão da minha consciência. Morri para um passado no qual era profundamente condicionado, toda verdade se desintegrava. Não sei por quanto tempo permaneci lá, mas quando tomei consciência era como renascido. O céu da minha mente era limpo e lágrimas sem fim escorriam e me banhavam o rosto e pescoço. Sentia-me o ser mais ingrato que existe sobre toda a terra. Sim, a grande vida existe e não pertence a este mundo. Pela primeira vez descobri o que entendem os cristãos por “graça”». Há vinte e cinco anos este homem, conhecido como Master Bee, junto com a mulher, uma artista também, leva uma vida semi-heremítica no mundo e aos antigos discípulos que vão consultá-lo ensina a oração do coração e a oração do rosário. Não tem sentido a necessidade de renegar suas experiências religiosas passadas que prepararam o encontro com Cristo e lhe permitem agora estimar plenamente a novidade. Continua, por outro lado, a ter por essas profundo respeito, mostrando, com os fatos como é possível conjugar hoje a mais total adesão a Cristo com uma abertura enorme aos valores de outras religiões. A história secreta das almas, fora dos reflectores dos «Mass media», está cheia destes encontros com Cristo que mudam a vida e é uma pena que a discussão sobre ele, inclusive entre teólogos, prescinda completamente daqueles. Estes demonstram que Jesus é verdadeiramente «o mesmo, ontem, hoje e sempre», capaz de prender o coração dos homens de hoje com não menor força que quando «prendeu» João e Paulo. 5. O discípulo que Jesus amava (e que amava Jesus!) Voltamos, para concluir, ao discípulo que Jesus amava. João oferece-nos um fortíssimo incentivo para redescobrir a pessoa de Jesus e para renovar nosso ato de fé nele. É um testemunho extraordinário do poder que Jesus pode chegar a ter sobre o coração de um homem. Mostra-nos como é possível construir em torno a Cristo todo o próprio universo. Consegue fazer perceber «a plenitude única, a maravilha inimaginável que é a pessoa de Jesus» [5]. Há mais. Os santos, não podendo levar consigo a fé ao céu, onde esta já não faz falta, são felizes de deixá-la como herança aos irmãos que necessitam dela na terra, como Elias deixou seu manto a Eliseu, subindo ao céu. Toca-nos recolhê-lo. Podemos não só contemplar a fé ardente de João, mas torná-la nossa. O dogma da comunhão dos santos assegura-nos que é possível, e orando se faz a experiência disso. Alguém disse que o maior desafio para a evangelização, no início do terceiro milénio, será a emergência de um novo tipo de homem e de cultura, o homem cosmopolita que, de Hong Kong a Nova York, e de Roma a Estocolmo, mova-se já em um sistema planetário de intercâmbios e de informações que anula as distâncias e faz passar a um segundo plano as tradicionais distinções de cultura e de religião. Agora, João viveu em um contexto cultural que tinha qualquer coisa em comum com este. O mundo então experimentava, pela primeira vez, um certo cosmopolitismo. O próprio termo kosmopolites, cosmopolita, cidadão do mundo, nasce e se afirma precisamente neste momento. Nas grandes cidades helenísticas, como Alexandria no Egipto, respirava-se um ar de universalismo e de tolerância religiosa. Pois bem, como se comportou, em uma situação assim, o autor do quarto Evangelho? Buscou talvez adaptar Jesus a este clima no qual todas as religiões e os cultos eram acolhidos, de tal forma que aceitassem ser partes de um todo maior? Nada disto! Não polemizou contra ninguém, mais contra os maus cristãos e os heréticos dentro da Igreja; não se lançou contra outras religiões e cultos do tempo (senão, no Apocalipse, contra aquele indevido do imperador); simplesmente anunciou Cristo como supremo dom do Pai ao mundo, deixando cada um livre para acolher-lo ou não. Polemizou, é verdade, com o judaísmo, mas isto não era para ele uma «outra religião», era a sua religião! Como chegou, João, a uma admiração assim total e a uma ideia assim absoluta da pessoa de Jesus? Como se explica que, com o passar dos anos, seu amor por ele, ao invés de debilitar-se, foi aumentando cada vez mais? Creio que, depois do Espírito Santo, isso se deve ao fato de que tinha junto a si a Mãe de Jesus, vivia com ela, orava com ela, falava com ela de Jesus. Produz certa impressão pensar em que quando concebeu a frase: «E o Verbo se fez carne», o evangelista tinha a seu lado, sob o mesmo teto, aquela em cujo seio este mistério se havia realizado. Orígenes escreveu: «A flor dos quatro evangelhos é o Evangelho de João, cujo sentido profundo, contudo, não pode compreender quem não tenha apoiado a cabeça no peito de Jesus e não tenha recebido dele a Maria como sua própria mãe»6. Jesus nasceu «por obra do Espírito Santo de Maria Virgem». O Espírito Santo e Maria, a título diferente, são os dois aliados melhores em nosso esforço de aproximarmos de Jesus, de fazê-lo nascer, por fé, em nossa vida neste Natal. 1. S. Agostinho, In Ioh. 38, 10 (PL 35, 1680). 2. Orígenes, Contra Celso, I, 26.28 (SCh 147, pp. 202 ss.). 3. J. Ratzinger, Introdução ao cristanismo, cit., p. 149. 4. S. Agostinho, In Ioh, 26, 2(PL 35, 1607). 5. J. Guillet, Jesus, em «Dictionnaire de spiritualité», 8, col. 1098. 6. Orígenes, Comentário a João, I, 6, 23 (SCH 120, pp. 70 s). [Tradução do original italiano realizada por Zenit]

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