A dignidade de trabalhar em saúde – ameaçada

Daniel Serrão

1. Estou consciente das enormes dificuldades de financiamento que afetam o sistema de prestação de cuidados de saúde do qual se tornou responsável o Estado após a criação de Serviço Nacional de Saúde – SNS.

Sei que o Governo do País, confrontado com uma dívida gigantesca contraída por muitos anos de desgoverno financeiro, do qual o povo não é responsável, é um Governo pobre que não pode sustentar um Estado Social com custos desproporcionados em relação à riqueza criada pela atividade produtiva nacional que é onde se vão buscar os recursos, por meio da carga fiscal, para pagar esse Estado Social.

O SNS é parte das prestações sociais públicas e, em consequência, vai ter de diminuir as suas despesas. O que só se consegue reduzindo a oferta de serviços e controlando a procura pelos cidadãos.

Dito isto, para ser justo na minha análise, tenho agora de afirmar que degradar as condições de trabalho dos profissionais, médicos e enfermeiros, é a pior de todas as opções para reduzir custos.

 

2. Foi anunciado que os profissionais serão contratados à hora, preferindo-se os que trabalharem pelo preço mais baixo. E que esta solução é intermediada por organizações com uma carteira de profissionais que os vai oferecer onde houver necessidade, retirando destes contratos de trabalho dependente a sua percentagem de lucro.

Lendo estas notícias veio-me à memória o triste processo de levar para França os que iam para lá trabalhar na construção civil e que nem sabiam para onde iam, nem o que iam fazer, nem o que iriam receber

Trabalhar em saúde não é como trabalhar na construção civil com o devido respeito por esses sacrificados trabalhadores.

É exercer uma atividade dirigida a pessoas doentes, com competência profissional, claro, mas também com dedicação e carinho respeitoso.

Médicos e enfermeiros são profissionais com carreiras que os diferenciam e especializam, não são trabalhadores indiferenciados a trabalhar à hora, hoje aqui, amanhã acolá. Tanto nos hospitais como nos serviços de ambulatório eles dão a cara pelos doentes que os conhecem e os estimam e neles colocam a sua confiança.

 

3.O sistema de concursos e de contratação precária que se quer por em prática é a subversão completa da natureza específica destes profissionais. É anular o seu valor para a pessoa doente, é piorar a assistência no que ela tem de mais digno e peculiar – a relação humana e humanizada entre profissional e pessoa doente a precisar de cuidados.

Mas é, principalmente, destruir a estrutura das carreiras destes profissionais, com o seu responsável sistema de seleção para hierarquizar pela qualidade, o que é um benefício para a pessoa doente que sempre assim recebe os melhores cuidados.

Para exercerem a sua profissão com a qualidade que se deve esperar destes profissionais, os médicos e os enfermeiros terão de ter uma garantia mínima de trabalho continuado e organizado, de modo a poderem render o máximo. Porque é um trabalho que exige condições psicológicas de tranquilidade e segurança, não de incerteza e insegurança. Um profissional de saúde ansioso ou revoltado não será nunca capaz de evitar que a sua alteração psicológica se descarregue sobre o doente. Piorando a qualidade do seu trabalho de forma irremediável.

 

4. Espero bem que haja o bom senso de excluir da contratação de médicos e enfermeiros qual forma que acabe por os selecionar pelo preço que aceitem receber pelo seu trabalho. Mesmo que os Hospitais sejam, agora, não as instituições de grande dignidade que foram mas banais empresas de produção de serviços, cujo objetivo é o lucro e não a qualidade, elas terão de ponderar e eliminar esta forma de recrutar trabalhadores, quando os conflitos se agravarem entre os profissionais e os doentes, quando os resultados clínicos piorarem constantemente e quando só lhes restarem como clientes os que não consigam pagar noutra instituição, onde sejam atendidos por profissionais competentes, felizes com o trabalho que realizam e disponíveis para um relacionamento humanizado.

Daniel Serrão,

Prof. Convidado do Instituto de Bioética da UCP

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