Padre Vitor Pereira, Diocese de Vila Real

Tenho acompanhado com alguma preocupação, como certamente muitos o farão, esta nefasta e mórbida cultura a que chamam cultura de cancelamento, que está a ser fortemente promovida na sociedade atual. Estamos a assistir a novos tempos de radicalismo, ira e de barrela cultural. É inaceitável que se ande por aí a esconder livros ou a rasurá-los porque chocam com as ideias luminosas atuais ou com a puritana sensibilidade atual, não se percebendo que cada texto tem o seu contexto, o seu ambiente e a sua história, que devemos respeitar (nós, Igreja, já fizemos coisas destas de que pouco nos orgulhamos). Penso que o dever de cada sociedade é saber acompanhar a evolução do pensamento e das ideias, o progresso humano e social dos tempos, sem cair na soberba de pensar que é dona da verdade e que tem o direito de amaldiçoar e higienizar tudo o que está para trás.
Precisamos de estar atentos e de combater a cultura de cancelamento que se impôs na sociedade atual, esta intolerância felina perante ideias e posicionamentos desalinhados com o ar do tempo ou com o pensamento da maioria ou da moda. Há uma pressa exagerada em julgar friamente os outros, os seus comportamentos e as suas ideias. Quase que se instituiu o direito em ostracizar e linchar de forma desumana quem pensa diferente, quem teve comportamentos reprováveis, ou quem não se acomoda aos padrões deste tempo. Não gosto de ouvir frases como “não passarão”. Posso compreender que, por vezes, estamos diante de ideias estapafúrdias e perigosas, que não têm qualquer sentido e não podem ter qualquer concretização social. Mas a frase sugere intolerância, pode incitar ao ódio e à segregação do outro. O melhor caminho é sempre continuar a dialogar, combater as ideias com ideias, desmantelar e combater as ideias pela força do pensamento e não pelo cancelamento ou silenciamento.
Mao Tsé-Tung dizia aos chineses em 1957: “O verdadeiro e o falso na arte e na ciência é uma questão que deve ser resolvida pela livre discussão nos meios artísticos e científicos, pela prática da arte e da ciência e não por métodos simplistas. Para determinar o que está certo e o que está errado, é muitas vezes necessário fazer a prova do tempo. É por isso, para determinar o que está certo e o que está errado na ciência e na arte, que é preciso adotar uma atitude prudente, encorajar a livre discussão e evitar tirar conclusões apressadas.” Sabemos que o ditador chinês pouco cumpriu o que afirmou, mas está bem dito. Na ciência e na arte e em todos os campos da vida, acrescentaria eu. Acima de tudo, penso que é fundamental a boa informação, ouvir pontos de vista, tentar perceber o pensamento dos outros, sem pressa em julgar ou insultar. Dá mais trabalho, é verdade, mas é a forma mais correta e humana de sabermos estar uns com os outros.
Uma pessoa humana madura aprende a acolher o outro na sua forma de ser e de pensar, diferente da minha possivelmente, e sabe conviver e relacionar-se com pessoas diferentes, faz um esforço por ouvir, aceitar e compreender os outros, sem pressas em descartar ninguém. Esta mesma cultura, infelizmente, está a infestar todos os âmbitos da vida social e até já anda por aí no espírito de muitos crentes. Apesar de tantas proclamações sobre tolerância e tanta arenga sobre democracia, sobre a riqueza do pluralismo e da diversidade, sobre a mais valia da fertilidade de ideias e propostas para a sociedade caminhar no progresso e no desenvolvimento, vemos prosperar a cultura de cancelamento e a polarização: estamos a deixar de saber conviver com quem pensa diferente de nós e queremos pôr de lado quem nos obriga a questionar o nosso pensamento e as nossas certezas e seguranças, muitas vezes alicerçadas em muita preguiça intelectual e em muita ignorância. Estamos a perder a capacidade de vermos o outro lado e outras perspetivas. É um claro empobrecimento para a nossa vida humana, para a nossa inteligência e para o saudável debate social que deve existir em democracia.
Afinal, quem pensa diferente de mim não é para ouvir e perceber um pouco na sua razão, é para cancelar ou atirar para o outro lado. Afinal, a diversidade é um mal e um estorvo, abaixo o pluralismo, só há uma ideia e uma perspetiva certa, a minha, os outros não têm direito a existir e a expressar-se, os “outros” não pensam bem e estão desalinhados, é para abater e calar.
O que nos fez prosperar como seres humanos foi a capacidade de ouvir os outros e conciliar pensamentos diferentes, na busca de um saudável debate e de soluções para os problemas humanos e sociais.
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