Lembrar os mártires de Guiúa a propósito da visita do Papa a Moçambique
Fama de santidade
A guerra civil estava quase a chegar ao fim. O acordo de paz seria assinado dali a menos de sete meses, mas a 22 de Março de 1992 haveria de ocorrer o massacre de 23 cristãos. Foram mortos nessa noite e logo nasceu uma fama de santidade que tem crescido, imparável, ao longo do tempo…
Para Paulo Cunhana aquela não era uma viagem qualquer. Precisava de sobreviver à armadilha da própria memória. Paulo sabia que tinha de regressar a Guiúa. Tinha de regressar ao local onde viu matar alguns dos seus amigos, alguns dos seus companheiros. Paulo escapou da morte por um mero acaso. Foi em 1992 quando a guerra civil estava a chegar ao fim. Desde a independência, em 1975, Moçambique vivia debaixo de um regime comunista. A Frelimo assumiu o poder e teve uma atitude muito agressiva em relação à Igreja Católica que passou por tempos complicados. Foi uma época de perseguição e violência. D. Diamantino Antunes, Bispo de Tete, recordou esses anos numa iniciativa recente da Fundação AIS em Leiria. “Isso traduziu-se em acções práticas como a nacionalização das missões, expulsão de missionários, encerramento de seminários, de modo a impedir a formação de sacerdotes locais, e também perseguição. Houve sacerdotes, mas sobretudo catequistas, que foram discriminados, perseguidos, colocados na prisão, e alguns deram a própria vida por fidelidade à Igreja.” Paulo Saela Cunhana era um desses catequistas que o regime perseguia. Estava em Guiúa, na Diocese de Inhambane, no sul do país, em 22 de Março de 1992. O Bispo de Tete conhece a história do massacre como poucos. Missionário da Consolata, foi postulador da causa da beatificação dos catequistas mártires de Guiúa. No encontro em Leiria recordou o ataque. “Era de noite. Os catequistas foram apanhados em suas casas. Uns conseguiram fugir no meio da confusão, outros não. Foram sequestrados… A quatro quilómetros do centro catequético foram interrogados. Quem os matou sabia quem eles eram. Sabia que eram da Igreja, que eram catequistas.” Apesar disso, foram mortos. Mataram-nos como quem quer extirpar um mal, cortá-lo pela raiz. Mas a verdade é que nasceu logo nessa noite de 22 de Março de 1992 uma fama de santidade que nunca mais haveria de se extinguir em relação aos catequistas mártires de Guiúa.
O regresso
Vinte e um anos depois, Paulo Saela Cunhana regressou ao local onde tudo aconteceu acompanhando uma equipa de filmagem da Fundação AIS. “É a primeira vez que aqui volto”, disse na ocasião. “Mal cheguei, comecei a ver tudo como naquele dia… Até consigo ver onde estava sentado, como fugi…” Paulo sobreviveu porque conseguiu fugir. Escapou ao massacre. Vinte e três pessoas foram brutalmente assassinadas com catanas. Entre elas, nove mulheres e nove crianças. A mulher de Paulo foi uma dessas vítimas. O massacre dos catequistas de Guiúa ganhou eco até no estrangeiro. A assinatura do acordo de paz que poria fim à guerra civil aconteceu pouco depois, a 4 de Outubro desse ano de 1992. Guiúa ficou para a História como um exemplo da crueldade humana. Há três anos, a Igreja local decidiu abrir a causa de canonização dos que morreram neste episódio final da guerra de Moçambique. No passado dia 23 de Março foi encerrada a fase diocesana com mais de uma centena de testemunhos, entre os quais o de Paulo Cunhana. Os 23 mortos de Guiúa representam todos os que pagaram com a vida a fidelidade à Igreja nos tempos conturbados desta guerra que custou a vida a mais de 1 milhão de pessoas. O país ficou quase destruído. Ainda hoje Moçambique tem cicatrizes desses 17 de guerra civil. O dia 22 de Março de 1992 ficaria para a história por causa do massacre de 23 catequistas e suas famílias. De 23 cristãos. A reconciliação é sempre caminho para a verdadeira paz. Um caminho que em Moçambique passa, inevitavelmente, por Guiúa, hoje transformado em local de oração e de peregrinação.
Paulo Aido