Serra Leoa: A batalha diária da Igreja com os jovens das ruas.
Os órfãos de Freetown
As ruas de Freetown estão sempre acordadas. Mesmo de noite, mesmo quando as luzes já não estão acesas, há sempre alguém aconchegado a uma sombra, numa esquina. Ou a lutar pela vida. As ruas da capital da Serra Leoa não dão tréguas a ninguém. Nem aos jovens. Nem às crianças. A Igreja tem procurado resgatar centenas de rapazes e raparigas que a vida acabou por depositar ali, nas ruas…
Ninguém sabe ao certo quantas crianças e adolescentes vivem nas ruas de Freetown, a capital da Serra Leoa. Seguramente serão mais de dois mil. Vivem, trabalham e dormem nessas ruas que são um território especial dominado por gangues, habituado à violência, à pobreza. Ninguém sabe ao certo e parece que ninguém, na verdade, se importa. Para os padres salesianos, resgatar estes jovens de uma vida de miséria e violência é o trabalho de todos os dias. O padre Jorge Crisafulli já conhece todos os caminhos até ao hospital. É raro o dia em que não é chamado à urgência por causa de algum jovem que lá foi parar. A vida nas ruas é dura e as crianças, os jovens são forçados a lutar pela própria sobrevivência. Como se não bastasse o legado da guerra civil, entre 1991 e 2002, que causou a morte a mais de 50 mil pessoas, a Serra leoa foi palco de um gravíssimo e mortal surto de Ébola nos últimos anos. Esta doença, diz o padre Jorge, “criou uma nova geração de órfãos”. Crianças que não têm outra opção a não ser ir para as ruas. Há palavras que se gritam como se fossem pedras. Um destes dias, o padre Jorge foi chamado à urgência do hospital de Freetown por causa de um jovem ferido num assalto. A enfermeira, quando voltou a vê-lo por ali, não se conteve: “Você, outra vez! Esqueça estes rapazes… está a desperdiçar o seu tempo. Deixe-os morrer na rua, como merecem.” O padre Jorge ficou perplexo perante tanto desinteresse na vida daqueles jovens. Que fazer? Tratar-lhes das feridas e depositá-los de novo nas ruas? Que fazer? Joe Conteh, por exemplo, seria apenas mais um jovem abandonado nas ruas de Freetown se não tivesse sido resgatado pelos padres de Dom Bosco. Hoje, é o coordenador do programa de reabilitação. “É maravilhoso – diz o padre Jorge – porque é alguém que veio das ruas. Ele pode entender melhor os rapazes, tem a capacidade de conduzir estas crianças para fora do inferno e transformar as suas vidas, porque ele próprio já passou por isso.”
Cheirar a pobreza
Joe Conteh tem a autoridade de quem conhece as ruas e os becos todos de Freetown como a palma das suas mãos. E todos o conhecem, também. E respeitam. “Chamam-me Tio Joe.”O trabalho desta comunidade religiosa é essencial para que a Serra Leoa possa virar a página da sua própria história. É um trabalho incessante, muitas vezes inglório e que passa despercebido à maior parte da população. “Nós não ficamos à espera que eles cá cheguem – explica o padre Jorge Crisafulli. Vamos para as ruas, regularmente, às vezes todas as noites do mês. Vamos para as ruas e tentamos ver onde vivem, trabalham e dormem. Vamos lá e cheiramos a pobreza. Vemos o lixo nas ruas, os ratos, os mesmos que mordem os pés das crianças enquanto elas dormem na zona do mercado. E isto mexe com o nosso coração. Não podemos ficar indiferentes…” Na Serra Leoa, um país africano encravado entre a Guiné-Conacri, a Libéria e o Oceano Atlântico, o futuro é um lugar distante. A memória dos tempos da guerra civil, que causou mais de 2 milhões de deslocados, ainda causa arrepios. A Serra Leoa é um país rico de diamantes mas um dos mais pobres do mundo. A Fundação AIS está profundamente empenhada no apoio à Igreja na Serra Leoa. Como sublinha o padre Jorge, “as ruas de Freetown são um lugar teológico”. E lembra as palavras proféticas do Santo Padre. “Compreendo o Papa Francisco quando diz: ‘não façam projectos pastorais sentados à secretária. Façam projectos nas periferias. Vão, fiquem com os pobres, vivam com os pobres…’ Nós fazemos isso aqui na Serra Leoa.”
Paulo Aido | www.fundacao-ais.pt