VP – O Sr. Prof. faz história e fica para a História através da sua estrita e admirável relação com a nossa História. Onde reside a sua extrema paixão e enamoramento pelo passado, presente e futuro de Portugal? José Hermano Saraiva (JHS) – Bem, compreende que são coisas que vêm de muito longe. O meu pai era historiador, autor dos famosos painéis do Ano Santo, que deu lugar a um livro publicado em 1925. Ora, em 1925 eu tinha 5 anos e recordo-me da paixão que lá em casa se discutiam todos os problemas relacionados com a iconografia dos painéis, com a pintura medieval, com a possibilidade de autoria portuguesa. Enfim, eu fui criado no meio de viva investigação histórica na casa dos meus pais, que estava completamente cheia: cheia de 6 filhos e por mais 6.000 livros. Portanto, nós fomos embalados nos livros. VP – É caso para afirmar que «filho de peixe sabe nadar»… JHS – Claro que a junção e a vivência vem daí. Depois tirei a Licenciatura em Filosofia e em História e fui professor de ambas as áreas. Evidentemente que isso marca. Quer se queira, quer não, eu consagrei a melhor parte da minha vida à investigação histórica. Portanto, mau seria se isso não deixasse uma marca profunda nas minhas preocupações mentais e na minha actividade, já quase instintiva. VP – Estamos perante um historiador com distinção e com qualidades notáveis, mesmo no campo da comunicação, o que causa uma certa inveja a muitos outros bem menos reconhecidos. Inclusive, foi já agraciado com o título de “Personalidade do Ano” em Portugal. De que forma lida com estas realidades? JHS – Não penso que as distinções possam empobrecer ou enriquecer as pessoas. Aliás, é visível. Normalmente as pessoas que coleccionam condecorações fazem-no por falta de outras qualidades. As grandes personalidades portuguesas estão recamadas de distinções e de títulos. As pessoas que, depois do cartão de visita, depois do seu nome próprio, põem as 3 ou 4 funções daquilo que são ou que foram, ou as Academias a que pertencem, considero-o negativo. Olhamos para aquilo e sorrimos, pode ser com simpatia, pode ser com miseração. A mim, de facto, não me alteram nada e aquelas que recebi atribuo-as mais à amizade e simpatia das pessoas que mas concederam, do que aos meus próprios merecimentos. Portanto, este é um ponto que nada me diz. VP – Os historiadores portugueses, bem como arqueólogos, têm tido ultimamente um papel fundamental na descoberta de novos fósseis, ruínas e objectos elementares do Património Cultural. Esta escola de historiadores está bem implantada e dinamizada ou vê os seus doutos pilares por vias de extinção? JHS – Tem-se feito muito, sobretudo os arqueólogos. Têm escavado, têm feito investigação. Embora, eu lhe diga, que o livro mais importante, mais conjuntivo e mais explicativo da Arqueologia Portuguesa já tem cerca de 100 anos. É “As Regiões da Lusitânia”, do Dr. Leite Vasconcelos, e é um livro que, por enquanto, não foi ultrapassado. Também isto é desolador: então 100 anos depois e ainda não se deu um passo em frente? VP – Mas acha que há alguém capaz que possa vir a alterar esta situação eficazmente? JHS – Não sei quem possa vir (risos)… Ora que, por agora, o panorama não é animador e há uma falta de coordenação. Cada investigador tem a sua área e conhece a verdade dada pela sua escavação, não há interdisciplinaridade indispensável para haver progresso no campo da História. VP – Concorda que nós hoje somos aquilo que somos graças ao nosso passado, à História, ou adulteramos a riqueza cultural, os costumes e tradições dos nossos antepassados? JHS – É evidente que a História nos modelou muito. Nós hoje existimos como nação independente em virtude de uma cadeia de acções que começam no séc. XII. E, realmente, face à Expansão e aos Descobrimentos, permite que o português seja uma língua falada numa grande parte do mundo, ao que se não fosse isso nós éramos um Estado que teria uma importância inferior à Albânia. A Albânia ainda fica na Europa central e nós ficamos no calcanhar ocidental da Europa. Seríamos um país sem importância nenhuma… E assim somos um país cuja referência e presença não se pode descrever a História da cultura europeia. Evidentemente que a colonização portuguesa, a presença portuguesa na América do Sul, na Índia e na China, e em toda a área do Pacífico, são capítulos indeléveis na História Universal. E deixaram marcas na nossa própria maneira de ser. Por exemplo, quase toda a cidade do Porto está ligada à emigração para o Brasil. Portanto, o presente, numa grande parte, é uma herança e um produto das acções passadas durante mais de 800 anos. VP – Falemos agora mais a fundo da História de Portugal: o que considera como incontornável nela? Quais os factos e episódios mais salientes? JHS – É difícil de responder porque, como lhe digo, a História é um elo. Imagine-se uma cadeia que tem muitos metros. Agora faz-me a pergunta: qual destes elos é o mais importante? Repare, se algum alargar parte a cadeia: são todos igualmente importantes. VP – Há alguma situação, dinastia ou acontecimento que facilmente se possa e/ou se deva apagar da memória? JHS – Nada se pode apagar da memória sob pena de criar uma desolução de continuidade. Os momentos históricos mais ilustres ou os grandes séculos, como o séc. XVI, ou os séculos com sombras, como o séc. XVII, fazem parte de uma mesma História, que é contínua. O passado é uma coisa que não podemos renunciar em parte nenhuma. É uma cadeia dos dias e das noites. VP – O que é que no entender do Sr. Prof. falhou e/ou foi mais forte para que reinasse a nova República e findasse assim o governo monástico? Ganhámos e continuamos a ganhar com esta mudança? JHS – Não ganhámos nada nem nunca ninguém disse que se iria ganhar alguma coisa. Infelizmente, esta mudança foi introduzida por um crime sangrento que nos envergonhou face a toda a Europa. A chacina do Paço, em 1908, é uma das grandes vergonhas da História Portuguesa. E a reabilitação saiu muito cara! Foi para nós voltarmos a alinhar no quadro dos países, enfim, com crédito, que entrámos na Grande Guerra. E isso custou-nos 10.000 mortos. A República não trouxe absolutamente nada que não tivéssemos, pelo contrário, abre um período terrível de lutas internas de camarilhas e partidos. Revoluções constantes que deram milhares de mortos. Isto é uma tragédia! Ninguém pode ter dúvidas. VP – A História de Portugal continua, não se preenche apenas de reis e castelos, certo? Como analisa os sinais dos tempos que esta História permite-nos viver e faz-nos contar? JHS – Bom, a História continua. Eu não sou futurólogo, mas penso que nesta altura há sinais preocupantes. Portugal não está a produzir o suficiente para a sua independência. Está a depender quase inteiramente do que lhe vem do exterior e a actividade interna não gera riqueza suficiente para pagar, isso é que cria este clima deficitário em que estamos a viver e que, como sabemos, está a dominar a política portuguesa, mesmo no Governo. Esse défice não é porque gastamos muitos, mas porque produzimos pouco, porque trabalhamos pouco. Há hoje muitos mais portugueses que não fazem nada, do que portugueses que estão a fazer alguma coisa. Isto é profundamente preocupante. Não vejo que se estejam a tomar posições para corrigir esse desvio. Vejo Universidades que continuam a deitar cá para fora licenciados sem perspectiva de emprego; vejo que as tecnológicas do progresso estão a produzir cada vez menos, ao passo que os bacharéis em coisas cientificamente muito interessantes, mas que não solucionadas no nosso mercado de trabalho e que não podem ter efeito nenhum no aumento da nossa produção interna, estão a aumentar. O resultado é milhares e milhares de diplomados sem emprego. Podemos dizer que, por este caminho, temos uma Universidade a fabricar os desempregados. Isso é não preparar o futuro. VP – Trazendo agora um panorama mais optimista, neste livro da vida, que capítulo da nossa História gostaria de ver, no presente ou num futuro próximo, bem retratado e vincado com triunfo e sucesso? JHS – Para mim, sem dúvida, não falo de História de Portugal mas de História Universal. Penso que é uma aspiração de todos os homens de boa vontade do mundo – refiro de boa vontade, porque neste mundo há muitos homens que não são de boa vontade – é a conquista da paz. Assim como o séc. XIX conseguiu erradicar completamente o fantasma da escravatura; assim como o séc. XX conseguiu erradicar o fantasma da peste e da tuberculose; eu espero que no séc. XXI se consiga finalmente acabar com esse flagelo ominoso que é a guerra entre os homens. Há homens que, há nações que, o seu principal esforço é fazer armas para matar outros homens, seus irmãos. Isto é uma ofensa à própria ideia de progresso e civilização. Creio que todos estamos unidos no desejo que se ultrapasse essa fase de homicídio colectivo e que se entre numa paz em que os homens sejam realmente todos irmãos entre si. VP – Como encara a nossa presença, actividade, desenvolvimento e evolução na U.E.? A nossa personalidade e feitos gloriosos demarcam-se e destacam-se entre os outros povos, nações e culturas? JHS – Somos um parceiro da União Europeia coordenador e obediente. Enfim, a direcção da nossa economia e do nosso território não nos permitem ter uma adesão de liderança. Bem, mas também não fazemos má figura. Enfim, somos do pacto um dos mais antigos, não digo dos primeiros, mas dos seguintes. É racional que hoje o Presidente seja um português: significa que Portugal tem uma posição, como é justo que tenha, proporcional à sua própria dimensão económica e histórica. TRÍMERO TEMÁTICO: VP – Barragem no rio Sabor: polémica precoce e/ou solução desenvencilhada… JHS – Não conheço o problema em pormenor e, portanto, não me pronuncio. VP – Faro: capital da Cultura em 2005. Promoção cultural ou promoção turística?… JHS – Promoção inteiramente turística, mas não acho mal. Tudo o que seja chamar atenção para o Algarve é importante. O Algarve é uma parcela privilegiada da Europa e que nem todos os europeus conhecem. Portanto, acho oportuno esse projecto. Evidente que, na raiz disso, está o turismo, está a cultura. VP – Barco do Aborto vs Aborto desembargado… JHS – Isso é um problema de civilização. Na nossa cultura ocidental o valor capital é o valor da vida. E, portanto, a legislação portuguesa impede que se ponha termo à vida. Há pessoas, sobretudo senhoras, que acham muito mal isso. Bom, eu penso que, qualquer país civilizado respeita a vida, como valor fundamental. É em nome do respeito à vida que a gente se opõe à droga, se opõe ao suicídio e se opõe à guerra. Só a pessoas com um horizonte problemático, de curto prazo, é que podem estar com essa guerra vergonhosa. Essa visita do navio é uma provocação, uma provocação à legislação e à soberania portuguesa. E acho que tem havido muita paciência a esses elementos provocadores. ASPECTOS DE ELEIÇÃO VP – Um Rei de Portugal… JHS – O maior foi, de facto, o primeiro, D. Afonso Henriques. Teve um longo reinado, o que foi muito importante para nós; era um habilíssimo político, com uma competitividade e energia. Depois dele há um outro grande rei, a quem devemos a reconciliação da Família Portuguesa, D. Manuel I, o Venturoso. Restabeleceu a paz. VP – Um Cognome de Rei… JHS – É, com certeza, o do primeiro: o Fundador. Fundou Portugal. VP – Uma Rainha de Portugal… JHS – Bom, já é mais difícil. Embora a mais célebre, por muitas razões, é a Rainha Santa Isabel, da nobreza e da Coroa de Aragão. Teve um papel muito importante na defesa da paz interna e da paz ibérica. Mas há muitos nomes de mulheres ilustres que passaram pelo trono português. Nós tivemos muita sorte com as Rainhas, que prestigiaram o país. VP – Um Castelo de Portugal… JHS – É muito difícil de responder. Repare, se me pergunta o castelo mais ilustre claro que é o de Guimarães; se me vai perguntar o meu mais querido é o de Leiria, onde eu passei uma parte da minha infância; se me vai perguntar o castelo mais poético, naturalmente que o dos Templários, na ilha de Almorol, no meio do Tejo. E há um extremamente interessante e espantoso: o de Palmela, pois em dias bem claros consegue avistar-se bem ao longe Setúbal, Lisboa e uma grande parte da Estremadura. Portanto, todos eles são bonitos. E sem perguntar-me qual é a mulher mais bonita do mundo, são todas bonitas! Entrevista de ANDRÉ RUBIM RANGEL rangel@aeiou.pt In Voz Portucalense