A construção do bem comum, responsabilidade do Estado

«O bem que cada um obtém para si é suficiente para se satisfazer, mas o bem que um povo e os Estados obtêm e conservam é mais belo e mais próximo do que é divino.» Aristóteles (‘Ética a Nicómaco’)

 

Durante milénios o ser humano viveu sem Estado, leis, impostos e exércitos. Só com o surgimento de excedentes (agrícolas), evoluímos para sociedades lideradas por chefes, e mais tarde para estados e impérios.

Nas comunidades ancestrais, os proprietários dos excedentes, da riqueza, pelo poder simbólico e social que detinham, definiam as leis, espalhavam os seus genes e, em muitos casos, mediavam a relação com os deuses, subjugando geralmente os mais fracos. Nos primórdios do Estado, as desigualdades e a hierarquia eram tidas como legítimas e naturais.

Mais tarde, há cerca de cinco mil anos, o mundo de chefes de tribos deu lugar aos primeiros Estados de que há registo – na Suméria, no Egipto, na China.

Nos milénios seguintes surgiram vários tipos de Estados. Quando se chegou ao século V a.C., a maioria das formas de estado que hoje conhecemos já existiam. Despotismo, democracia, teocracia, e oligarquia eram já familiares, bem como tratados e assembleias, burocracia e legislação.

Havia estados quase totalitários (Esparta), governos democráticos e cosmopolitas (Atenas), repúblicas hostis à ideia de um rei (Roma), impérios que acreditavam que os seus imperadores eram deuses (Egipto) e repúblicas aristocráticas (no norte da índia, onde Buda nasceu no século VI a.C.), entre outros.

O Estado legitimava-se como garante de uma ordem (cósmica) contra o caos que o tinha precedido ou se verificava além fronteiras. Legitimava-o a crença generalizada de que sem Estado as pessoas viveriam na anarquia, reféns do mal e da violência, o mais forte prevalecendo sobre o mais fraco (ainda que, em muitos casos, os Estados produzissem tanta violência como a que evitavam). Essa legitimidade moral conferia a possibilidade de recorrer a meios coercivos. Ao longo da história, pouco se esperou dos Estados, para além de uma contribuição algo difusa para o bem comum.

Assim, facilmente se compreende que até ao século XVIII, muitos autores não faziam depender o progresso social do papel do Estado. Em 1776, escrevia Adam Smith: «Pouco mais é necessário para elevar um Estado da mais pura barbárie ao mais elevado nível de opulência do que paz, impostos baixos e uma boa administração da justiça; sendo o resto assegurado pelo curso natural das coisas.»

A imaginação política do século XVIII não poderia supor quão ubíquo, activo e mesmo competente o Estado se poderia vir a tornar. As ideias provenientes da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ampliadas pela maior capacidade técnica dos Estados modernos e pela riqueza proveniente da Revolução Industrial, moldaram os sistemas de governo até hoje.

A ‘igualdade’ deu origem aos regimes democráticos, a ‘liberdade’ ao predomínio da economia de mercado e a ‘fraternidade’ ao Estado-providência – substituindo-se este, em grande medida, ao papel desempenhado anteriormente pelas famílias e comunidades.

No início do século XIX, Hegel descrevia o estado como uma ‘obra de arte’, comparando-o às grandes conquistas civilizacionais nas artes, na filosofia e na poesia (e acreditava que ele tinha atingido a sua forma final na Prússia do início do século XIX).

Poucos esperavam que o estado, que havia sido tão adverso para os mais pobres, pudesse agora ser seu “amigo”. Em 1870, os estados europeus já absorviam 11 por cento do PIB (hoje, a sua despesa pública ascende a cerca de 50 por cento do PIB). O alargamento do papel do estado foi de tal ordem que, em 1890, o político inglês liberal Sir William Harcourt escrevia: «Somos todos socialistas agora.»

O advento da democracia e do Estado-providência parecia estar a concretizar o sonho de muitos visionários e revolucionários do passado: o de um final perfeito, de uma ordem estável benigna, uma utopia, onde a história chegaria ao fim e o ser humano regressaria a um estado primordial sem invejas nem divisões. A este propósito, Mark Twain haveria de escrever, mais tarde, que «a história não se repete mas rima», condenando ao fracasso este tipo de expectativas utópicas.

A legitimação moral que os estados se atribuem, desde os primórdios, nas diferentes civilizações, deve ser a bitola pela qual são julgados. Assim, para se avaliar um governo é necessário perceber quão bem promove a justiça, a protecção (da guerra, do crime, das ameaças ecológicas) e o bem-estar dos seus cidadãos (medido em felicidade, rendimento ou saúde) – tendo em consideração as circunstâncias que herdou e o desempenho de outros governos em circunstâncias semelhantes –, bem como se aumentou ou diminuiu o capital (financeiro, humano, social e natural) herdado.

Mas não basta. Para que as sociedades sejam bem governadas, não é suficiente assegurar a democracia e um bom desempenho do Estado. Há outros aspectos determinantes, nomeadamente a ética e o contributo da sociedade civil.

No que respeita à ética, na antiguidade assumia-se que as qualidades dos líderes eram tão importantes quanto as leis e as macroestruturas do estado. A ‘República’ de Platão ou os ‘Anacletos’ de Confúcio procuram sistematizar as qualidades necessárias a um bom líder.

Em ‘Verdade e Política’, Hannah Arendt começa por interrogar se «as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de político, mas também na de homem de Estado. Porque será assim? Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar?», mas conclui que «a verdade é o solo sobre o qual nos mantemos e o céu que se estende por cima de nós.»

A ideia popular de que o governo ideal é uma tecnocracia amoral é indesejável e incompatível com o papel que cabe aos Estados desempenhar. Aliás, o século XX expôs bem os perigos de Estados (totalitários) amorais ou imorais.

No que respeita ao papel da sociedade civil, se o melhor Estado é aquele que serve as pessoas, a melhor sociedade é aquela em que cada cidadão serve todos os outros. A cidadania é a única alternativa a uma democracia pacificada, composta por observadores passivos que se limitam a escolher entre elites concorrentes. Para Hannah Arendt, participar é «a alegria de nos inserirmos no mundo pela palavra e pela acção.» E é tão importante que Dante reservava os lugares mais sombrios no inferno para aqueles que se mantinham neutros em tempos de crise moral.

Ao longo da história, encontraram-se mecanismos de condicionamento dos Estados, que supriram a necessidade de revoltas violentas – desde logo, eleições, divisão do poder, primado da lei e livre acesso à informação. Mas o ‘bom poder’ só acontece quando estes mecanismos se encontram alinhados com elevados padrões éticos, da parte dos líderes e funcionários do Estado, e com uma sociedade civil empenhada e exigente.

Ainda que, na segunda metade do século XX, os Estados tenham alienado poder para níveis de governação transnacionais, bem como para o sector privado e para o terceiro sector, seja qual for o entendimento que se tenha sobre qual deve ser o seu papel na sociedade, estes são decisivos para a construção do bem comum. Sobre este aspecto, julgo que até Ronald Reagan (que costumava dizer: «The two funniest sentences in English are: ‘I’m from the government’ and ‘I can help’») estaria de acordo.

Na ‘Centesimus Annus’, João Paulo II alertava para que já na ‘Rerum Novarum’ Leão XIII não ignorava que uma sã teoria do Estado é necessária para assegurar o desenvolvimento normal das actividades humanas: tanto as espirituais, como as materiais. Na ‘Gaudium et Spes’, Paulo VI afirmava que o exercício da autoridade política – seja na comunidade, seja nos órgãos representativos do Estado – deve ser sempre realizado para procurar o bem comum. Finalmente, na ‘Ecclesia in America’, João Paulo II declarava que é condição necessária para estabelecer uma autêntica democracia a educação cívica. Ou seja, é necessário que a Igreja ponha grande atenção na formação das consciências, promova a educação cívica, a observância dos direitos humanos, e dedique maior esforço na formação ética da classe política.

Sempre, como recorda D. Manuel Clemente, reconhecendo a importância da secularidade, pois ela «tem o seu lugar próprio e irrecusável numa perspectiva cristã.» Aliás, «é mesmo nela que o homem se salva, pois aí realiza o seu destino concriador e solidário.» Mas «se é na secularidade que o homem se salva, não é menos verdade – sempre na perspectiva cristã – que a secularidade precisa de ser salva, isto é, consolidada e eventualmente corrigida no seu devir e finalizada no seu sentido.»

A construção do bem comum – responsabilidade do Estado, da Igreja, de todos nós – começa precisamente em assumirmos que o bem é o único brilho duradouro que está ao nosso alcance dar à história – e que só ele lhe confere sentido e plenitude.

João Wengorovius Meneses, Director da TESE

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