A Bíblia, «Grande Código» da cultura ocidental

Conferência de D. Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, na Universidade Católica Portuguesa Revisitaremos apenas dois aspectos de um tema que justamente se arrisca a ser considerado inesgotável. Primeiro, o tópico da qualidade «estética» da Bíblia, visto ela ser também um texto literário. A palavra desempenha uma função capital: a Palavra divina está, de facto, na raiz da representação bíblica da criação e da própria História da Salvação (pense-se tanto no fenómeno do profetismo, como na proclamação do prólogo de João sobre o Logos, a Palavra divina que é Cristo). Esta Palavra encarna-se e exprime-se em palavras humanas que têm no símbolo a sua vida privilegiada. Abordaremos, em seguida, um outro aspecto talvez mais explícito quanto ao tema proposto, e que é aquele da presença da Bíblia na cultura ocidental, como componente estrutural do domínio artístico, ético e social. «As Sagradas Escrituras são o universo sobre o qual a literatura e a arte ocidentais operaram até ao século XVIII e, em grande medida, ainda operam». Esta afirmação do conhecido ensaio O grande código de Northrop Frye (1981), sobre a relação entre a Bíblia e a Literatura, assenta num facto facilmente comprovável para quem perscrute a história cultural do Ocidente: durante séculos, a Bíblia tem sido uma imensa gramática ou um repertório iconográfico, ideológico e literário ao qual ela se atém constantemente, quer a nível da alta cultura, quer a nível daquela popular. Até Nietzsche, que se tinha por filósofo “anticristão”, confessa, na sua obra Aurora (1881), que «para nós Abraão é mais significativo que qualquer outro personagem da história grega ou alemã. Entre o que sentimos lendo os Salmos e o que experimentamos com a leitura de Píndaro e de Petrarca vai a mesma distância que separa a pátria de qualquer terra estrangeira». Procurar delimitar esta presença, na multiplicidade das suas formas, ora idealizadas ora manipuladas, é uma tarefa ciclópica para não dizer desesperada, de tal maneira interminável e provisória permanece qualquer catalogação. Permanecendo numa trajectória puramente exemplificativa, indicaremos apenas alguns modelos que possam emblematicamente representar este imenso influxo. 1. Um primeiro modelo poderia ser definido como reinterpretativo ou actualizador: assume-se o texto ou o símbolo bíblico que é relido no interior de coordenadas historico-culturais novas e diversas. Pensemos na figura de Job que, depois de se ter tornado para a Arte Sacra uma imagem do Cristo paciente, transforma-se no paradigma da condição humana em Kierkegaard: no destino de Job ele lê a sua experiência incompleta de amor e a tentativa de recuperá-lo do passado por obra de Deus. Escrevia o filósofo dinamarquês: «Eu não leio Job com os olhos como se lê um outro livro qualquer, mas coloco-o sobre o coração… Cada palavra é alimento, agasalho e bálsamo para a miséria da minha alma». Continuando ainda com este filósofo, pensemos no sacrifício de Isaac (Gen 22), tal como nos aparece revisto em Temor e Tremor: o terrível e silencioso caminho de três dias percorrido por Abraaão até ao monte da grande prova torna-se retrato de todo o itinerário de fé, mistério de luz e de sombra, no qual o crente deve chegar a desprender-se de todos os apoios humanos, inclusive afectos e relações fundamentais. O exegeta Gerhard von Rad, num volume intitulad O sacrifício di Isaac, recolherá em torno a este texto bíblico, além do comentário de Kierkegaard, as reinterpretações actualizadas de Lutero, Rembrandt e Kołakowski, sabendo que já a tradição judaica na ‘aqedah, isto é no «atamento» sacrificial de Isaac sobre o altar do monte Moriá, vira o mistério do sofrimento do povo hebraico e se interrogou sobre o silêncio de Deus (sobretudo em conexão com o trágico acontecimento da shoah desencadeada pela perseguição nazi). 2. Há um outro modelo a individuar: esse elabora os dados bíblicos de maneira desconcertante e que podemos definir como degenerativa. Na própria história da teologia e da exegese verificaram-se frequentemente desvios e deformações hermenêuticas. O Texto sagrado transforma-se em pretexto para falar de outra coisa («alegoria») ou até para rebater o seu sentido original. Assim acontece também na história da cultura. Tomemos ainda como protótipo o livro de Job. A tradição, ignorando, de facto, o superlativo poema que constitui a substância da obra, fixou-se quase exclusivamente sobre o prólogo e o epílogo. Aqui Job aparece apenas como o homem paciente que supera a prova e é, por fim, recompensado por Deus. O corpo central da obra apresenta, porém, o drama de uma fé colocada diante do mistério de Deus e do enigma do mal. O culminar de uma procura dilacerada e exigentíssima está naquela profissão de fé que sigila realmente o inteiro escrito: «Eu já te conhecia por ouvir falar de ti; mas agora são os meus olhos que te vêem» (42,5). É verdade que a arte cristã, no sulco de uma interpretação parcelar já presente no Novo Testamento (Tg 5,11) e nos Padres da Igreja, contentar-se-á em ilustrar um Job colocado sobre as cinzas da penitência, disposto a suportar os sofrimentos mais atrozes, a ironia da mulher e a contestação dos amigos, à espera da libertação final. Mas a “degeneração” do significado autêntico do livro bíblico pode ser ulteriormente ilustrada na infinda retoma literária que a história de Job conheceu (de Goethe a Dostojevskij, de Roth a Singer, de Bloch a Camus, de Morselli a Pomilio etc.). Exemplar neste sentido é a Resposta a Job de Carl G. Jung (1952), na qual o célebre sofredor bíblico se ergue como símbolo da moralidade e da responsabilidade diante de um Deus indiferente a qualquer ética, na sua omnipotência e omnisciência. Cristo será aquele que, proveniente de Deus e assumindo a humanidade, conseguirá aprender a lição moral de Job, o que o levará a erguer-se contra a dureza “imoral” e a insondabilidade do Pai celeste. Como é evidente, o texto bíblico corre assim o risco de redução a um fundo ténue sobre o qual se tecem novas tramas e novos significados, fenómeno que ocorre com muitas outras figuras bíblicas. 3. Há que reconhecer, contudo, que, se é sinal de fecundidade e de força plástica do original bíblico esta literatura assim “em desvio”, maior testemunho de força espiritual e cultural a Bíblia oferece quando consegue transparecer em toda a sua riqueza simbólica e teológica. É por isso que queremos ainda falar de um terceiro modelo, o transfigurativo. A arte consegue frequentemente tornar visíveis ressonâncias secretas do texto sagrado, transcrevendo-o em toda a sua pureza, fazendo germinar potencialidades que a exegese científica só com muita fadiga conquista ou, então, ignora de todo. Gaston Bachelard dizia , por exemplo, do famoso pintor Marc Chagall que nos seus quadros «ele lê a Bíblia e imediatamente os passos bíblicos tornam-se luz». Nesta linha emerge como particularmente sugestiva a grande música que, no período histórico que vai de ‘600 aos inícios de ‘800, superou muitas vezes as artes figurativas como intérprete da Bíblia (Carissimi, Monteverdi, Schütz, Pachelbel, Bach, Vivaldi, Buxtehude, Telemann, Couperin, Charpentier, Haendel, Haydn, Mozart, Bruckner etc.). Imagine-se só o que pode significar uma oratória como Jefté de Carissimi ou Vésperas da Bem-Aventurada Virgem de Monteverdi ou uma Paixão segundo Mateus de Bach ou ainda, olhando para os nossos dias, a Paixão segundo São Lucas de Penderecki ou os Chichester Psalms de Bernstein. Para estudar um caso, específico e existencial, bastaria seguir a suprema releitura que Mozart faz de um salmo literariamente modesto, o brevíssimo 117 (116), caro contudo a Israel porque proclama as duas virtudes fundamentais da aliança que liga Deus ao seu povo, isto é veritas et misericordia, como diz a versão latina da Vulgata utilizada pelo músico, ou o «amor e a fidelidade», numa tradução mais próxima do original hebraico. E claro, o Laudate Dominum em Fá menor das Vésperas solenes de um Confessor (K 339) de Mozart consegue recriar toda a carga teológica e espiritual, hebraica e cristã do salmo, como não o saberia fazer nenhuma exegese textual directa. Em conclusão: deve-se entender que a Bíblia é um dos pontos de referência capitais não só para a fé, mas também para a nossa própria civilização. Não por acaso Goethe dizia que o cristianismo é «a língua materna da Europa». GIANFRANCO RAVASI

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