A actualidade da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo

Homilia do Patriarca de Lisboa na celebração da Paixão do Senhor 1. Nesta Sexta-Feira Santa, em que todos os cristãos se reúnem, em silêncio recolhido, para meditar na Paixão do Senhor e adorar a Sua Cruz, uma pergunta inquieta o nosso coração: que sentido tem, hoje, a Cruz de Cristo? Ele voltaria a morrer pelo nosso mundo? Quantos, ao contemplarem a Cruz, têm consciência da actualidade do sacrifício de Cristo e da sua importância salvífica para os homens de todos os tempos? Nesta solene Liturgia, a Cruz ocupa o lugar mais nobre e verdadeiro que lhe pode ser reservado: a adoração. Mas para muitos, ela é ornamento, peça de museu, sinal religioso sem lugar numa sociedade marcada pelo laicismo. Há um ano, o Papa João Paulo II, a viver corajosamente o sacrifício da própria vida, deixou-nos uma imagem indelével, grito silencioso da actualidade da Cruz, que aperta contra o seu coração, pondo nela toda a esperança da sua vitória sobre o sofrimento, oferecido, como o de Cristo, pela salvação do nosso mundo. Naquele gesto com que abraça a Cruz do Senhor o Papa resume todo o seu incansável ministério, ao serviço da Igreja e da humanidade. É do coração dos crentes que abraçam a Cruz do Senhor, que brota a mais forte afirmação da actualidade da Cruz. O seu significado profundo está no facto de ela se poder tornar, para cada um de nós, uma experiência decisiva em que se decide o sentido da nossa vida. Durante as últimas semanas, os jornais de todo o mundo deram relevo à notícia de um afegão que se converteu ao cristianismo. Segundo a Lei Islâmica, essa conversão é considerada apostasia, punível com a pena de morte. Ao ser-lhe dito que poderia evitar essa sentença, abandonando a sua nova fé, declarou corajosamente que preferia morrer na fé cristã. Que grande afirmação da actualidade da Cruz de Cristo. Ele tornou-se, talvez sem pensar nisso, na expressão de todos aqueles e aquelas que são violentados na sua consciência e na sua dignidade e que são fiéis a Cristo, abraçando a Sua Cruz no dom da própria vida. O seu gesto, que incomodou Governos e moveu diplomacias, tornou-se o grito de denúncia de todas as violações da dignidade humana e da liberdade de consciência, apontou o dedo a credos religiosos, a sistemas culturais e regimes políticos que não respeitam essa liberdade, e interpela todos os tíbios, mesmo cristãos, que recusam aceitar a exigência e o sofrimento, a serem fiéis ao mais profundo de si mesmos. A morte de Cristo foi um grito de liberdade que continua a interpelar a humanidade, sugerindo-lhe caminhos de coragem e de profundidade. 2. Algumas passagens da narração de São João, afirmam a actualidade do drama do Calvário. Jesus foi executado em conjunto com outros dois condenados: “Ali O crucificaram e com Ele mais dois: um de cada lado e Jesus no meio” (Jo. 19,18). Segundo a narração de São Lucas, estes dois eram malfeitores, cumprindo o que tinha sido anunciado pelo Profeta Isaías: “Foi-lhe dada sepultura entre os ímpios e um túmulo no meio de malfeitores” (Is. 53,9). Este facto faz ressaltar o sacrifício do Justo inocente, que sublinha a fecundidade misteriosa da Sua vida, oferecida para redenção dos pecadores. A reacção daqueles dois malfeitores condenados, exprime o drama de todos os tempos. Perante a morte de Cristo, o que é irremediavelmente grave não é o pecado praticado, mas a impenitênca e a revolta perante o sofrimento. Um representa a multidão daqueles e daquelas que são capazes de partir do seu pecado para um caminho novo de conversão e de esperança. “Jesus lembra-te de mim quando estiveres no Teu Reino”; e a resposta não se fez esperar: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc. 23,42). O outro representa todos os pecadores endurecidos no mal, revoltados com o sofrimento, incapazes da humildade da esperança: “Se és o Messias, salva-Te a Ti mesmo e a nós” (Lc. 23,29). Perante os males do mundo contemporâneo, injustiças, violências, mentira e ganância, o que é dramática é a incapacidade de pessoas e grupos reconhecerem as suas acções erradas, aceitarem a hipótese de mudar e encetar corajosamente o caminho da conversão. E o sofrimento não oferecido, que provoca revolta e desespero, e não encontra sentido na humildade e na generosa coragem de o oferecer? O Padre Teillard de Chardin escrevia no fim da sua vida, impressionado pela dimensão dramática da nossa civilização: se esta mole imensa de sofrimento humano fosse oferecida, o mundo daria um salto para a frente, em direcção ao ponto Ómega, que é a libertação. Só Deus conhece a força redentora do sofrimento oferecido, em união aos sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. 3. Noutro momento do processo de Jesus, segundo a narração de São João, Pilatos, esforçando-se ainda por libertá-l’O, pergunta aos chefes do Povo, que pediam a Sua condenação: “Hei-de crucificar o vosso Rei?”. E eles responderam: “Não temos outro rei senão César” (Jo. 19,15-16). É hipocrisia requintada. Nem Pilatos tomara a sério a declaração de Jesus que nascera para ser Rei, nem os responsáveis do Povo tinham essa fidelidade ao Imperador Romano. Sabe-se bem como sentiam como humilhação intolerável a dominação romana. A hipocrisia é a mentira usada para conseguir atingir os fins que se pretendem. É a mentira usada como verdade circunstancial e pragmática. A mentira mina a sociedade, impedindo-a de caminhar para a justiça e para a verdadeira liberdade. Nunca haverá justiça e harmonia na sociedade, sem verdade nas afirmações, nas opções, nas relações inter-pessoais e internacionais. A morte de Cristo significa a reposição da justiça, porque é o mais radical testemunho à verdade. A fidelidade de Jesus Cristo é uma exigência da verdade, do desígnio de Deus, Seu Pai, da Sua consciência messiânica, da missão que voluntariamente assumira. Todas as formas de mentira, em todos os tempos, serão sempre denunciadas pela verdade da Paixão de Jesus Cristo. Ele que nos dá o Seu Espírito Santo para iluminar, com a luz da verdade, o nosso coração, sofre particularmente, naquele momento, com a mentira no íntimo das consciências, adulterando gravemente aquela que é a luz perene, em cada homem, de discernimento dos caminhos do bem. Atraiçoar a consciência com a mentira é, realmente, um pecado contra o Espírito Santo. 4. Quando o Sumo Sacerdote interroga Jesus acerca da Sua doutrina e dos Seus discípulos, Ele responde-lhe: “Falei abertamente ao mundo. Sempre ensinei na Sinagoga e no Templo, onde todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. Porque Me interrogas? Pergunta aos que Me ouviram o que lhes disse: eles bem sabem aquilo de que lhes falei” (Jo. 18,19-21). Esta resposta de Jesus enuncia a actualidade e a responsabilidade da Igreja. Somos nós, os cristãos, os Seus discípulos, que temos de responder ao mundo sobre Jesus Cristo e a Sua doutrina. Se sublinha a autoridade do Magistério, Jesus espera também o testemunho pessoal de cada discípulo que O ouviu, O conhece, O ama, e se identifica com Ele e com a Sua proposta de salvação. Se não O ouvimos para saber tudo o que Ele disse, dificilmente poderemos falar, por Ele, ao mundo que nos interpela. Temos um dever de verdade e de honestidade para com Jesus Cristo, não respondendo às questões cruciais e tantas vezes angustiadas, à nossa maneira, mas com a mensagem de Jesus. Quantos gostariam de ver a Igreja mudar a sua doutrina e adaptar as suas respostas, fiquem sabendo que não o podemos fazer, porque as respostas da Igreja são a expressão da sua fidelidade ao Seu Senhor. 5. Pilatos perguntou-lhe: “Tu és o Rei dos Judeus?”. Jesus respondeu-lhe: “O Meu Reino não é deste mundo (…) o Meu Reino não é daqui” (Jo. 18,33-36). O Império Romano não tinha nada a temer. A realeza de Jesus não significa a revolta messiânica, acalentada por tantos em Israel. A Paixão de Cristo inaugura um outro tipo de triunfo, o da liberdade, da conversão do coração, do amor fraterno, da obediência ao insondável desígnio de Deus. Jesus afirma que a dimensão mais profunda da humanidade se exprime na sua vocação de eternidade. Ainda hoje há quem tenha dificuldade em perceber que o poder da Igreja, que pode transformar o mundo, não é realmente deste mundo. 6. A maternidade de Maria é das mais comoventes expressões da actualidade da Cruz de Cristo. São João, protagonista privilegiado deste mistério, narra-nos a cena: “Estavam junto á Cruz de Jesus Sua Mãe, a irmã de Sua Mãe, Maria Mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Ao ver Sua Mãe e o discípulo predilecto, Jesus disse a Sua Mãe: «Mulher, eis o teu filho”. (Jo. 19,25-26). Jesus confia a Sua Mãe aqueles que mais ama, todos nós, representados pelo discípulo amado. É o dinamismo da Encarnação levado às últimas consequências. Como Verbo eterno de Deus, Jesus envolve sempre todos os seus irmãos, no mistério do Seu amor a Deus Pai, no Espírito Santo. Mas como Homem, a intensidade desse amor exprime-se, em grau sublime, no amor que o une a Sua Mãe, que naquele momento faz seu o amor redentor do Filho. A mesma vontade de Deus os guia. Como Filho de Deus, Jesus reza ao Pai: “Como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que eles sejam um só em Nós… É preciso que o mundo saiba que Eu os amei como Tu Me amaste” (Jo. 17,21-23). É o mesmo desejo de amor e de comunhão trinitária que Jesus exprime, confiando-nos a Maria, Sua Mãe, nos caminhos exigentes da Encarnação, a serem percorridos pela Igreja até ao fim. Nesta última travessia do deserto, o amor maternal de Maria por nós, conduz-nos sempre ao seio do amor de Deus e ensina-nos, pela sua experiência, a fazer das nossas dores e dos nossos sofrimentos, um triunfo pascal. Não é por acaso que a “Pietá”, imagem de Maria acolhendo no seu regaço o Filho morto, ganhou tanto relevo na iconografia cristã. Há dias pude contemplar, mais uma vez, a “Pietá” de Miguel Ângelo, na Basílica de São Pedro. Expressão mesma da serenidade na dor, Jesus morto refugia-Se, confiante, no regaço de Sua Mãe. Oxalá pudéssemos viver a nossa própria morte como quem reclina a cabeça no regaço de Sua Mãe. Pedimos-lhe isso, tantas vezes, todos os dias: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte”. Nesse momento a morte de Jesus terá, para nós, uma actualidade decisiva. Vivê-la-emos, como nunca, como a experiência da nossa salvação.

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