Mossul: Depois da libertação da cidade, a libertação das pessoas
Esquecer os dias negros
O ano passado ficou marcado pela libertação da cidade de Mossul, onde, em Junho de 2014, al-Baghdadi proclamou, perante a incredulidade do mundo, a instauração de um ‘califado’ no país. Agora, com a derrota militar dos jihadistas, é preciso dar início a um tempo novo. A começar nas pessoas, nas crianças, libertando-as do pesadelo que foram forçadas a viver…
Foi a 29 de Junho de 2014, que o mundo assistiu, entre o atónito e a indiferença, à proclamação do califado na Síria e no Iraque. Durante três anos reinou o terror sobre esta cidade, assim como em vastas regiões controladas pelos terroristas. O mundo testemunhou, desde então, execuções públicas de pessoas, destruição de igrejas e perseguição aos cristãos e yazidis. Desde esse dia, em que foi proclamado o ‘califado’, o mundo voltou a ouvir falar em populações subjugadas, na venda de mulheres e crianças em mercados de escravos, na crueldade mais ignóbil. Desde esse dia, o mundo recuperou a palavra ‘genocídio’. 10 de Julho de 2017. O primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, anuncia a vitória “sobre a brutalidade e o terrorismo” dos jihadistas, com a libertação total da cidade de Mossul. Dezembro de 2017. Igreja de São Paulo. Neste Natal, o templo voltou a encher-se de fiéis, numa celebração emotiva que parecia impossível há apenas meia dúzia de meses. Lençóis brancos e vermelhos foram usados para ocultar as marcas da guerra, as paredes feridas pelas balas, o ódio estampado nas imagens mutiladas, nos vidros quebrados, nas expressões escritas nas paredes. A Igreja Católica tem procurado ajudar a restabelecer a normalidade da vida nas comunidades cristãs. Onde quer que elas se encontrem. A começar nas crianças. É preciso voltar à escola, é necessário estabelecer laços de vizinhança. É urgente recuperar o tempo perdido. Ahmed Mahmud tem apenas 12 anos. A sua escola, na cidade de Mossul, ficou muito danificada com a guerra, mas as aulas já recomeçaram. No entanto, para Mahmud, este tem sido um recomeço muito difícil. “Estou esgotado”, diz, usando uma palavra improvável numa criança. “Estou esgotado e sei que tudo isto não terminou”, acrescenta, referindo-se à guerra, à violência que está presente nos escombros dos prédios, nos buracos das balas, nos rostos enlutados de tanta gente. “Isto ainda não terminou. Quando entro na sala de aulas, não tenho a minha cabeça livre para estudar.” Osama é um dos seus colegas. Melhor: devia ser um dos colegas de Ahmed, mas o seu lugar na sala de aulas continua vazio.
Em silêncio
Desde que as explosões se começaram a escutar na cidade, desde que o céu se encheu de assobios de bombas que explodiam em sangue e morte, desde então, Osama deixou de falar. Osama deixou de falar no dia em que quase todos os edifícios da rua desabaram sobre os vizinhos, sobre as casas onde Osama tinha amigos, crianças da sua idade… A mãe conta o que se passou. “Durante semanas, ele não disse uma única palavra. Às vezes sai de casa sem nos avisar e caminha horas sem rumo…”. Osama não voltou à escola. Está triste, tão profundamente triste que perdeu as palavras. A lembrança dos amigos que perdeu e com quem brincava deixou-o perdido. Tal como Mahmud, Osama está triste. Há meses, numa reportagem da Sky News, um iraquiano descreveu como via crianças a brincar em Mossul nos anos em que a cidade esteve sequestrada pelos jihadistas. “Vi algumas crianças, com 6 ou 7 anos, a brincar às decapitações com um boneco. Um deles tinha uma faca e começou a cortar-lhe a cabeça enquanto gritava ‘Allahu Akhbar’”. Os jihadistas foram expulsos de Mossul e de praticamente todo o Iraque. Mas falta ainda muito para que os iraquianos se libertem da memória dos dias de negro. Para isso, eles precisam muito de nós. A começar pelas nossas orações.
Paulo Aido | www.fundacao-ais.pt