João Aguiar Campos, Secretariado Nacional das Comunicações Sociais
A senhora tinha um ar dorido e as mãos enrolavam-se enquanto ouvia, naquela sala de espera do consultório médico, a paciente sentada a seu lado. Esta desfiava desventuras – dores de alma e dores do corpo – umas atrás das outras, não se percebendo bem qual delas a tinha levado até ali.
A senhora do ar dorido intervinha na conversa apenas com monossilábicas exclamações, ao mesmo tempo que erguia os olhos para o relógio onde o tempo de espera avançava na parede. Quando a interlocutora fez uma pausa maior, estendeu o seu comentário, sentenciando: «Olhe, minha senhora, a vida é mesmo assim… Todos temos as nossas cruzes!”
O comentário soou-me a ponto final. E o mesmo deve ter sentido a queixosa, pois ficou em silêncio, abanando a cabeça e fechando os olhos, como se procurasse lá dentro o seu calvário privativo.
Instintivamente fiz o mesmo, ouvindo, íntima, a pergunta que me coloquei: quais são, João, as tuas cruzes?
Pensei nelas então e repenso-as agora que as confesso. Não as enumero todas, mas apenas as que mais me têm doído…
Têm-me doído a cruz da renúncia. Dói-me cada vez que não a vejo como oferta generosa e alegre daquilo ou daqueles que tenho de deixar. Sim; quando deixo sem dar, sofro o despojamento, a expropriação e não a alegria da prenda desprendida, amiga e amorosa.
Tem-me doído a cruz da própria dor. A dor esmaga-me cada vez que a vejo como limite e não a compreendo como sinal; cada vez que exclamo que está a dar cabo de mim, sem a perceber como recomeço, aviso, momento de alicerce, ocasião para relativizar e, paradoxalmente, valorizar a fugacidade dos instantes.
Tem-me doído a cruz do orgulho. Sinto-a quando me dou por ofendido, ou quando não me perdoo nem me deixo perdoar. É, então, uma dor inventada, que nunca existiria se a não criasse na proveta da minha vaidade ou do meu amor-próprio.
Tem-me doído a cruz da incompreensão. E esta abarca tanto a mágoa de não ser compreendido como a incapacidade de compreender que há obstáculos no caminho e dias em que o sol, mesmo nascendo, não se mostra.
Tem-me doído a cruz da superficialidade. Nasce do vazio que fica no fim de cada pressa, de cada avareza que faz mesquinhos os gestos e pensa que é possível ser santos de serviços mínimos.
Tem-me doído – coisa estranha? – a cruz dos dias em que nada me dói. Porque descubro depois que fui eu a não querer ver, a não querer sentir, a não querer saber que há choros na TV apagada, no rádio desligado, ou na rua que escondi nas persianas corridas e silenciei nos vidros duplos.
Sim; tenho muitas outras dores que ainda hei-de reconhecer, para as ver remidas.
João Aguiar Campos