Pobreza, castidade e obediência são pilares a propor hoje à sociedade que, quando conhece, valoriza o exemplo e o acompanhamento dos religiosos
A ECCLESIA conversa com Margarida Cordo sobre o contexto familiar e as congregações que favorecem o amadurecimento vocacional. Psicóloga e psicoterapeuta há mais de 20 anos, vai estar presente no encontro sobre «Espiritualidade e afeto na proposta vocacional», promovido pela pastoral vocacional dos Institutos da Vida Consagrada.
AE – Que papel tem a vida religiosa hoje? Conseguimos perceber que os votos de castidade, obediência e pobreza continuam a ser pilares importantes a propor à sociedade?
MC – Creio que sim. Tenho um grande respeito pela vocação consagrada. Exige maturidade, uma grande capacidade de entrega e de fé, uma grande confiança em Deus e de abandono. Isto não tem momento nem tempo de vida. É sempre atual.
Sei que, para as pessoas que não se inserem na Igreja, é difícil de conceber, porque, em geral, olha-se para o que uma vocação consagrada representa apenas na perspetiva do que a pessoa tem a perder, ou seja, quais são as coisas da vida que ela não pode viver.
Eu diria de outra forma: o sentido dos pilares que a vida consagrada propõe, predispõe a um melhor posicionamento na ajuda, na entrega ao outro, no acolhimento ao outro na sua condição total. O desprendimento pelas coisas mais visíveis, mais materiais ou físicas, e uma entrega, em fé, onde as pessoas podem transcender-se e, com isso, estar disponíveis para quem as rodeia de uma forma única.
AE – Sendo um sinal contracorrente, são sinais positivamente acolhidos pela sociedade?
MC – Não sei se positivamente acolhidos por toda a sociedade. Mas tenho a convicção que, quem procura e encontra o sentido na vida consagrada – e não me refiro apenas aos religiosos, mas incluo quem os procura – valoriza muito.
Talvez eu esteja num meio onde esta dimensão de vida seja mais valorizada, mas tenho a noção clara de que é respeitada e valorizada, e não está fora de moda.
Outra parte da sociedade, por falta de informação, acesso ou por falta de determinado tipo de vivência – isto sem culpar ninguém – não têm noção desta riqueza que advém destes pilares da vida consagrada. Vivida com toda a verdade é uma riqueza.
AE – Olhando para a sociedade, e para as pessoas que acompanha, como é que a vida religiosa deve ser proposta?
MC – Eu diria através do conhecimento – e nisto refiro-me a saber, o contactar, a perspetivar e a conceber o que pode ser uma relação com Deus – que é algo vago para quem não tem um caminho neste âmbito.
Acima de tudo pela coerência e exemplo. Quem tem responsabilidade ou representa determinado papel não se pode compactuar com a incoerência. A incoerência entre o agir e o dizer é um perigo. É a forma de não propor.
Mas é uma pergunta difícil porque penso que a vocação não se propõe mas ajuda-se o outro a descobrir.
AE – As famílias têm sido esse lugar e demonstram essa competência para acompanhar a descoberta vocacional, seja ela qual for?
MC – Há um conceito, no qual vou refletindo, que aponta para o facto de tantas vezes pensarmos em famílias disfuncionais onde isto não acontece. Quando se fala em «famílias disfuncionais» colam-se padrões clássicos que arranjamos: o divórcio, o segundo casamento, a monoparentalidade, famílias constituídas entre casais do mesmo sexo. Rotulamos que a disfuncionalidade advém daqui.
O meu conceito aponta para outra forma de disfuncionalidade, até porque conheço famílias monoparentais que são lugares de afeto e amor. Eu conheço mulheres que adotaram crianças, claramente, como fruto de abundância e do amor que têm e não para receber ou colmatar lacunas afetivas.
Acho que temos de ter muito cuidado quando rotulamos. As famílias aparentemente funcionais são também uma forma de famílias disfuncionais. As famílias onde tudo se faz como parece bem, tudo se faz para que outros validem como sendo bem feito. Essas não são as famílias onde se ajuda a construir e a aderir à vocação. Não é neste ambiente que se abre um caminho de Igreja e rumo à relação com Deus.
Numa família onde os valores e os princípios não são apregoados mas vividos, não são rótulos de prestígio para os outros mas vivências dentro do núcleo e exemplo exterior quando é necessário, onde as pessoas não vivem para se confirmar narcisicamente – nestas famílias, claramente, há lugar para ajudar a despertar para a vocação. Seja ela qual for.
AE – Essa caraterização pode ser aplicada às congregações religiosas? São lugares de família, não de sangue, mas onde a vocação deve ser confirmada?
MC – Com a experiência que tenho de proximidade a algumas congregações religiosas, e sublinhando o devido valor que a minha opinião tem, diria que claro, as congregações religiosas e as comunidades devem ser lugares de acolhimento do outro. Por vezes, há riscos, porque não são famílias naturais. São pessoas que não se conheceram, não viveram ao longo da vida uma série de experiências e se juntam para integrar uma comunidade.
Entendo que deve ser um lugar de acolhimento mas, se podemos apontar pelo menos uma coisa – nas várias que deveriam ser apontadas – há uma que a mim me parece muito importante: para que o espaço seja de maturidade e que todos possam ir crescendo e dando o melhor de si ao serviço, a ambição de poder e protagonismo não devem ter lugar nas congregações religiosas.
AE – No encontro da pastoral vocacional dos institutos da vida consagrada, vai aludir às “Dores e alegrias dos afetos na construção de uma história vocacional». Pergunto-lhe como é que o percurso pessoal de um religioso se enquadra para haver essa disponibilidade de abertura e acolhimento ao outro?
MC – Nós, porque somos humanos e temos um corpo, condição essencial dessa humanidade, temos coisas que resultam do próprio corpo. Experimentamos impulsos. Ou seja, não é pelo facto de se estar uma comunidade religiosa que uma pessoa deixa de ser integrado, numa perspetiva psicanalítica, por id, ego e super ego, sendo que o id corresponde à impulsividade e mais primária do eu.
Diria ainda que, se nas famílias temos o desafio de crescer e ser afetivamente maduros, não temer esse crescimento e essa maturidade progressiva, claramente na vida consagrada, o trabalho e o caminho a fazer na perspetiva da afetividade não é negá-la ou inibi-la, porque isso é parte integrante do homem. Da mesma forma que não é inibir ou negar o que está relacionado com a sexualidade, porque isso advém do facto de termos um corpo.
É com certeza a fazer um caminho de progressiva maturidade no domínio da vertente afetiva. Todos temos cognição, afetos e ação. E a afetividade tem claramente um papel primordial. Por isso, o caminho da maturidade afetiva tem vários estádios, mas tem o objetivo de poder promover o equilíbrio psicológico. Este processo implica alcançar um estado de bem-estar consigo, com os outros e com a vida.
AE – É nessa perspetiva que a obediência, a castidade e a pobreza devem ser entendidos?
MC – Quando se tem de abdicar de coisas fundamentais, claramente estes pilares são um enorme desafio no processo de maturidade afetiva, neste enquadramento, porque se sabe para que é que este processo é feito e por que se abdica.
Atenção que o abdicar não é perder; eu perco quando deixo de ter ausência de vontade e abdico quando, conscientemente, para atingir algo, abro mão de outra coisa e trata-se de abdicar com sentido, não com sofrimento.
LS