Fragilidade como construção da Esperança

A ECCLESIA entra no Hospital de Santa Maria, pela mão do sacerdote António Pedro Monteiro, que integra a equipa do Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Centro Hospitalar de Lisboa Norte

A Igreja Católica assinala o tempo de Advento. Este é, para os cristãos, um caminho de esperança porque esperam o nascimento de Jesus. A ECCLESIA entra no Hospital de Santa Maria, pela mão do sacerdote António Pedro Monteiro, que integra a equipa do Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa (SAER) do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, que compreende ainda o Hospital Pulido Valente, para encontrar a esperança. Sacerdote há três anos, está no SAER há um ano, a aprender a ser padre, entre as palavras e os silêncios. De bata branca vestida, guarda os rostos com quem partilhou lágrimas e sorrisos porque este é um lugar onde Deus nasce mas também onde se vivem inesperadas sextas-feiras santas.

 

Agência ECCLESIA (AE) – Humanamente falando, que lugar é o Hospital de Santa Maria?

Padre António Pedro Monteiro (APM) – Dizer lugar já diz muito. Os teóricos gostam de distinguir entre «espaço» e «lugar» na medida em que «espaço» é o que eu tenho de cruzar e «lugar» é onde habito e construo a minha biografia.

É bom pensar que o Hospital pode passar de um «espaço» a um «lugar». De facto é um espaço na medida em que eu ali recorro quando tenho um problema e tenho de inevitavelmente passar umas horas ou uns dias. Mas se eu nesse espaço puder repensar a minha vida, aprender com o facto de ser frágil, avaliar o que coloco no centro e mudar as prioridades da vida, esse espaço pode ser um lugar de construção do que sou.

Nesse sentido, o Hospital é um espaço privilegiado. Não preciso necessariamente do espaço hospitalar para construir a minha vida mas, na inevitabilidade de ter de o habitar, podemos aprender muito.

 

AE – Lugar também porque habitado por pessoas?

APM – Lugar habitado por pessoas sempre e quanto mais humanizado, mais divino: algumas pessoas porque vêm buscar o sustento do dia, outras a saúde que falta. Percebemos que há inúmeras motivações para habitar este espaço, mas queremo-lo o mais humanizado possível.

Essa é talvez a missão principal de quem está na Capelania – contribuir para que seja um espaço humanizado, agradável para se viver e não um espaço inevitável de passagem.

 

AE – O «humano» é parte do tratamento?

APM – Quem o diz é a Organização Mundial de Saúde. Se saúde é esse completo bem-estar físico, social, psíquico e não só a ausência de doença, tudo o que contribuir para esse bem-estar holístico é processo terapêutico.

Habituamo-nos a que o corpo hospitalar trate apenas do bem-estar físico mas percebemos que quando não há possibilidade de uma cura física, o que verdadeiramente importa é, pelo menos, a devolução da autonomia, da liberdade, do nome e não ser apenas «o senhor da cama 38». É dignamente um que é semelhante e não é menos por estar privado de bem-estar. E nesse sentido, o que é humano é tratamento de cura.

 

AE – Quando é que, na sua vida, percebeu que o Hospital é esse lugar de possibilidades?

APM – Quando passamos por uma experiência de fragilidade onde se sente a limitação ou perda do poder de decisão, eventualmente, até perda do nome, percebemo-nos que uma série de palavras que dizemos a quem está pior deixa de fazer sentido.

Quando, mais novo estive internado, a pessoa, no quarto, ao meu lado acabou por falecer. Não se sabe se a pessoa vai ficar melhor, não adianta prometer aquilo que não sabemos; dizer «as melhoras» diz pouco; «está quase a sair daqui», é pouco; dizer: «não digas isso» ou «não sintas isso», também não diz nada.

Há tantas frases que não têm sentido e que não confortam e não trazem saúde.

 

[[a,d,4324,Emissão 01-12-2013]]AE – O que é que se diz? Se é que se diz alguma coisa…

APM – Uma das coisas que se aprende e se ensina a quem integra a pastoral da saúde é a calar. Quando alguém que diz que está revoltado com Deus, que sente o abandono de Deus, não temos palavra para responder perante a verdade que é sentir isso.

Sabemos, pela vida inteira, que Deus é um amante ausente e, possivelmente, numa altura de sofrimento experimenta-se isso de sobremaneira. Ele não vem aliviar o sofrimento e é uma verdade quando se diz que se sente abandonado como tantas vezes se diz neste hospital. Se vamos bater nas costas e dizer «não digas isso, porque ele ama-te», estamos a tapar a boca do doente e ainda acrescentamos um problema porque o paciente sente que não é compreendido. 

Fazemos com que se fale. Se o silêncio ajudar a que se fale então eu calo-me. Se tiver de repetir que sente que Deus o abandonou, se isso for bom para que a pessoa continue a falar… Percebemos que só falando é que se liberta, só falando é que se percebe que pode não ser assim, só falando é que se revê o que se diz, e, muitas vezes, não há nada a dizer.

 

AE – Deus está entre a palavra e o silêncio?

APM – Deus está no silêncio e na palavra e habita a relação. Se a vida é relação, se o que esperamos na vida inteira, e enquanto cristãos é rumar a uma relação plena no encontro com Deus, não se pode pensar em Deus sem relação. Tudo o que acontece neste hospital é em ordem à relação. Não pode ser um parêntesis na vida onde a relação não é precisa. Quer-se relação, o mais humana possível, e quanto mais humana para habitada por Deus.  

 

AE – Quando é que Deus nasce no hospital?

APM – Ele está sempre a nascer e sempre vivo. Mas como um bom presente de Natal tem de ser embrulhado. A alegria do nascimento de Jesus, que celebramos diariamente no hospital, vem embrulhada nesse fator surpresa que tantas vezes é despoletado por um toque, uma palavra, um processo de descoberta de sentido no meio da doença ou do trabalho, pensando nos profissionais.

Somos surpreendidos com um pequeno gesto, com proximidade, acolhimento, que revela um Deus que nasce, uma alegria que renasce, porque se vê melhor. Se assim for, Deus nasce todos os dias.

 

AE – Há rostos que ajudam a alimentar essa esperança?

APM – Claro que sim. É fácil sorrir e pensar que é uma vitória, não minha mas da pessoa que ao hospital veio encontrar saúde e sentido.

Ao fim de meses de internamento sentir que se esteve perto de uma pessoa que trazia um «Deus domesticado» mas que em determinada altura tudo se desconstrói, a agressividade e a revolta vêm à flor da pele, porque um Deus que se pensava de determina forma se revela de outra…

É gratificante, e para mim muito pedagógico, olhar para quem fez um caminho, que entrou com Deus pela mão domesticado à sua maneira, revoltou-se e avaliou, e foi construindo outra imagem de Deus, a seu lado a sofrer consigo.

Casos que acompanhei e que me marcaram muito, alguns onde encontrei a morte reconciliada. É complicado ser bem entendido, mas sentir alguém a morrer feliz, sentindo que viver vale a pena, são os episódios mais fascinantes e reconfortantes.

 

AE – Percorrendo os corredores do Hospital de Santa Maria, onde 17 mil pessoas se cruzam diariamente, onde se encontra a esperança?

APM – O Hospital é uma caixa de surpresas. Quando se fala em esperança e associamos a serviços de pediatria, a criança é o protótipo da esperança da Humanidade e vendo um filho em perigo de vida, questionamos se vale a pena acreditar num Deus que mata gente, que chama a si gente amada.

Nesse sentido o hospital é uma caixinha de surpresa porque em qualquer serviço e corredor se encontram pessoas a repensar prioridades, a rever a imagem de Deus e do sentido da sua vida.

 

AE – Que palavra, que silêncio ou que gesto tem o assistente espiritual quando essa criança, esperança da humanidade, se encontra em situação de fragilidade?

APM – Para não dar respostas abstratas relembro o que aconteceu comigo. Dei por mim, há dias com um rapaz internado em pediatria, com várias doenças muito graves, revoltado com o Deus que aos maus parece facilitar a vida, e ele, com 18 anos não conhece o que é ter saúde. Eu, calado, mão na mão, dei por mim a chorar com ele.

Não significa que o padre está aqui para chorar. Mas catecismos e frases feitas caem por terra quando nos é tirado o tapete; caem quando é verdade o que alguém sente por Deus não estar.

Não vale a pena contra-argumentar, fazer catequese. Nessa altura quando mais humanizarmos mais evangelizamos. Chorar com os que choram também é evangélico.

 

AE – Como é que o padre cultiva a esperança para a dar aos outros?

APM – Se isso for entendido como uma arte, é algo que se aprende fazendo. Um colega quando soube que eu ficaria a trabalhar num Hospital disse-me «isso deve ser muito duro» – como se houvesse vidas moles. «Isso deve ser preciso rezar muito». Se eu acho que o evangelista Mateus (capitulo 24, ndr) tem razão quando nos diz que «quando estive doente foi a mim que visitaste», se eu esqueço isso, é claro que vou precisar de muita oração. Se eu esqueço que a oração se dá no encontro com Deus e, esse encontro se dá com a pessoa que está na horizontal, fragilizada, que quer a minha presença e não quer que eu diga nada, e se eu não entendo isso como oração e como encontro com Deus, se calhar “estou a jogar no campeonato ao lado”.

A oração é fundamental, o tempo pessoal de gestão dos sentimentos e histórias, muitas delas duras, acredito que seja importante – e para mim tem sido – mas se não nos lembrarmos que vamos visitar Deus e, por isso, se o vamos visitar não precisamos de ter Deus na boca a toda a hora porque não vamos falar de Deus a Deus, mas sim escutá-lo – se não me lembrar disto – perco o que é o trabalho de uma Capelania, de um padre.

 

AE – Trata-se de um «vela comigo», «está comigo»?

APM – É verdade, mais do que «diz-me coisas». É o estar, mesmo calado. Há pacientes que, a pretexto de comungarem, a primeira coisa que pedem é que a família saia e que o padre espere um pouco. Estão fartos de ser bombardeados de frases, discursos e ruído. E esperamos. Quando a pessoa faz sinal, conversamos e o sacramento acontece.

No Hospital não sei se interessa tanto ser ou não crente, ter a caderneta dos sacramentos e da catequese em dia. Aqui conseguimos experimentar que quanto mais humano, mais divino. Quanto mais humanizarmos, mais a presença de Deus acontece.

Nesse sentido a linguagem é comum, há poucas fronteiras e descobre-se Deus uns nos outros, na medida em que nos tratamos com a dignidade de sermos o melhor produto da Criação.

 

AE – Uma das leituras, que marca o Advento, relata a Anunciação, pelo Anjo Gabriel, a que Maria responde «Faça-se em mim segundo a tua palavra». Isso é possível no Hospital?

APM – Já vi doentes a morrer, a sorrir e a dizerem isso. Há processos dolorosos que permitem chegar à conclusão «aconteça», «eu entrego». A verdadeira paz acontece quando, sendo frágil, aposto a minha vida desta forma e sei que vou chegar ao fim, morrendo em paz.

Pode parecer chocante mas não somos educados para pensar assim. Pelo contrário. Aprendemos muita coisa que sem precisamos – aprendo a cozinhar porque nunca se sabe, a conduzir porque pode dar jeito. Apostamos o conhecimento em eventualidades e não somos educados para a única certeza que temos – vamos morrer. A morte chega como uma inevitabilidade.

Se eu puder lidar com essa certeza, vivendo até ao fim, e sabendo que a vida, tendo um fim tem uma finalidade, a vontade seria viver até ao fim, com sentido. Então, sim, «faça-se a tua vontade», «eu ofereço a minha vida, até ao fim».

 

AE – A esperança está nesse aceitar, no «faça-se a tua vontade»?

APM – Julgo que sim. Esperança é um conceito complicado de articular a vida inteira e, talvez no Hospital, mais ainda.

Relembro a história da Pandora, que tinha a caixa de onde tudo saiu e a ela, à pressa, fecha o jarro onde guardava o alimento, a bios, e fica a elpis, a esperança. Por isso dizemos que a «esperança é a última a morrer» e «enquanto houver vida há esperança».

O que percebemos é que a esperança acaba por ser alimento, alimentamo-nos de esperança e também é o que resta, o que fica no jarro.

Nós, cristãos, não estamos habituados a falar de esperança e não revemos o conceito. A esperança pode ser o que eu coloco no centro. O Hospital é uma boa escola porque, no sofrimento – que era bom que não existisse mas de onde podemos tirar lições – repensamos o que está no centro da minha vida, para onde e para que é que corro.

A esperança cristã, eu não consigo perceber isso nos Evangelhos, não é um rebuçado dado aos mais bem comportados no final, não é uma recompensa – até porque parece que Jesus dá os melhores rebuçados aos piores.

A esperança cristã será a antecipação do que eu espero. Se o que eu espero é o encontro pleno com Deus, a esperança cristã vai ser a antecipação desse encontro, nos irmãos, na relação.

Por isso o Hospital é e será um lugar de esperança na medida em que eu perceber o que coloco no centro da minha vida.

 

AE – O Evangelho do I domingo do Advento, de São Mateus, diz «Vigiai porque não sabeis em que dia virá o Senhor». A vinda do Senhor pode ser a vinda de sexta-feira santa, ou de uma Páscoa.

APM – Vigiai porque a vida é uma surpresa, abri os olhos porque se fechamos os olhos, ou os óculos estão sujos, não percebemos metade da beleza que a vida pode ter.

Sextas-feiras Santas, em percentagem é o que mais há; momento de sofrimento e de morte, o Hospital conhece bem. Mas também diria que, apesar das histórias fantásticas de diagnósticos que afinal mostram estar errados porque afinal há, inexplicavelmente, uma cura, mais do que pensar em efeitos especiais ou milagres, o mistério pascal é um mistério de sentido.

É possível e eu sei, com casos concretos de rostos e nomes, e daqui para a frente sei que vai continuar a ser assim – esses momentos pascais acabam por ser, em momentos de paixão, de dor e de morte, um encontrar de sentido.

Inevitavelmente a fragilidade tem a sentença final. Mas eu não quero entendê-la como sentença, antes como sentido até ao fim e como busca de sentido.

A surpresa de Deus, a Páscoa, relaciona-se com encontrar sentido e com o «valeu a pena viver até ao último instante».

 

AE – Esse é o desafio a viver no Advento?

APM – Habituamo-nos a classificar os sítios onde Deus tem de estar, domesticamos a sua presença de na capela, nos sorrisos e nas alegrias. Mas ele aparece em tantos lugares que o vigiai, próprio do tempo do Advento, é um convite a abrir os olhos para a lucidez, para a surpresa de Deus. Esse é o «prato do dia» no Hospital. Em tempo de Advento faz ainda mais sentido.

LS

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