Cinema: Shun Li e o Poeta

Shun Li, uma jovem mãe de origem chinesa a viver em Itália, é informada pelo patrão da fábrica onde trabalha de que será transferida para o café de uma pequena vila piscatória próxima de Veneza. Aí continuará a descontar o necessário para pagar as suas despesas e a viagem do filho, que deixou na China e anseia trazer para junto de si.

 Já em Chioggia, Shun Li esforça-se por aprender o vocabulário local e atender da melhor forma os clientes, na maioria velhos pescadores, vencendo com otimismo a alguma ignorância e desconfiança que existe em relação a si e à sua cultura. De entre os clientes, destaca-se Bepi, um eslavo imigrado há trinta anos, conhecido entre os amigos como O Poeta, que desde o primeiro momento se mostra particularmente afável, disponível para conhecer Li e ajudá-la a conhecer os costumes locais.

As diferenças entre ambos são grandes: Li é jovem, de aparência fina e a sua presença leve e discreta, enquanto Bepi é um velho pescador, de forte estatura e postura assertiva, viúvo e de feições marcadas pelo tempo e pela vida. No entanto, alguns laços os unem: a ligação ao mar, o facto de ambos serem estrangeiros… e a poesia.

Num mundo separado por culturas tão distintas, haverá lugar para Li e Bepi?…

Primeira longa metragem de ficção do realizador italiano Andrea Segre, ‘Shun Li e o Poeta’ é mais uma clara prova de que há um público cansado do ruído da indústria cinematográfica e ávido de um cinema que lhe toque genuinamente a alma – levantando questões próximas da sua realidade, que interpelem de forma profunda ora o que somos, ora o que queremos ser em nós mesmos e para os outros. Imigrantes incluídos. A prova está na receptividade que o filme tem tido em já mais de quarenta países, contrariando a renitência inicial de uma ou outra produtora a quem o projeto foi inicialmente apresentado e, nas palavras de Segre, não vislumbrou grande interesse na história de uma relação improvável ambientada numa recôndita vila italiana.

Acontece, porém, que desde o argumento o projeto tem sólidas bases para interessar, pelo menos (e não seria tão pouco assim…) a um público do sul da europa que pouco acesso tem tido a abordagens cinematográficas que explorem, neste registo estreito, sólido e relacional, o encontro entre duas culturas que, afinal, se cruzam diariamente nas ruas de qualquer das suas cidades de há uns anos a esta parte.

Mas o alcance do filme vai mais longe: o encontro de culturas é incarnado por duas pessoas que constróem uma relação sustentada pela beleza da poesia, pela esperança, pela aceitação das dádivas de cada dia, fortalecendo a capacidade de transcender as diferenças que os separam, a ausência dos que mais amam, as adversidades do quotidiano. Questões pertinentes e próximas de todos nós, num mundo atual entrecruzado por movimentos migratórios, encontros e choques de culturas e marcado por adversidades para as quais urge o desejo de as transcender.

A poesia não se basta nas referências a um dos mais celebrados poetas chineses, Qu Yuan, pilar da narrativa, nem nos versos de Bepi, mas povoa o filme no seu estilo visual, despojado, natural e belíssimo, tirando o melhor partido da região onde o filme é ambientado e revelando, também nos interiores, a grande sensibilidade fotográfica de Luca Bigazzi (‘Este É o Meu Lugar’, ‘Pão e Túlipas’). À sensibilidade na direção fotográfica junta-se uma igualmente bela, justa e bem coordenada banda sonora que valeu a François Coutourier a nomeação para os Prémios de Cinema Europeus.

Marcado pela naturalidade dos desempenhos do elenco, com aplauso particular para os atores Tao Zhao e Rade Serbedzija, ‘Shun Li e o Poeta’, visto em sala cheia de uma Cinemateca a braços com a dotação orçamental, numa noite que pouco ou nada rende aos multiplex, tem  além do mais algo a dizer sobre o cinema que o público realmente quer e precisa nos tempos que correm.

Margarida Ataíde

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