A minha experiência do Concílio Vaticano lI

Cardeal D. José Saraiva Martins, prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos, Santa Sé

1. Há cinquenta anos começava o Concílio Vaticano II.

Cinquenta anos. Poderá parecer pouco! Ou será muito?

Certamente serão muitos, ou mesmo demasiados, na vida de uma pessoa; mas certamente pouquíssimos na história de uma comunidade e, sobretudo, de uma comunidade que conta séculos de existência como é a Igreja.

No coração e na alma guardo tantas recordações pessoais que se entrelaçam com as recordações eclesiais: lembro rostos e acontecimentos, mas também pontos de chegada pelos quais ansiava do mesmo modo que surpresas, momentos de expectativa como de esperança.

O Concílio Vaticano II, foi de facto, a celebração da esperança.

Os outros concílios, celebrados ao longo dos séculos, foram prevalentemente convocados para responder a questões precisas, a verdadeiras heresias ou presumíveis erros, assim como a questões disciplinares precisas. Pensemos, por exemplo, no Concílio de Niceia, em 325, que afrontou a questão central da divindade de Jesus Cristo; ou o de Calcedónia, em 451, que tinha como “ordem do dia” a relação entre a natureza divina e a humana na única pessoa de Jesus Cristo; ou ainda, no Concílio de Trento, que examinou a tensão com o mundo protestante.

O Concílio Vaticano II apresentou-se de modo original e diverso dos anteriores.

Com a sua abertura, a 11 de outubro de 1962, a Igreja decidiu refletir sobre si mesma no seu todo. Decidiu “ver-se ao espelho” para reafirmar, a si mesma e ao mundo, a sua verdadeira Identidade. De facto, este espelho não pode ser outro senão a Palavra de Deus, uma vez que a Igreja tem como paradigma esta Palavra, que lhe traça o seu próprio perfil. Não é o mundo o seu paradigma, mas a Igreja é obra da vontade do Senhor Jesus, seu fundador e único fundamento.

Um Concílio, como diz o próprio nome, é o modo pelo qual o colégio dos bispos exercita o seu papel de guia da comunidade cristã.

Como se poderá facilmente imaginar, o Vaticano II não apareceu do nada, mas era antes, e entre outros, o resultado do trabalho do Espírito em tantos movimentos teológicos, espirituais, pastorais e culturais. Gostaria de recordar, entre outros, o movimento litúrgico, o movimento bíblico, os estudos patrísticos, missionários e o movimento ecuménico: todos eles instâncias que, sobretudo ao longo do século XIX, perfilaram um caminho progressivo e apresentavam aos olhos da opinião pública questões problemáticas que exigiam respostas. Por seu lado, os bispos colocavam-se à escuta de tais questões e tentavam formular respostas que fossem adequadas ao tempo.

 

2. Nessa época, eu era um jovem sacerdote, professor de teologia na Pontifícia Universidade Urbaniana, na qual, algum tempo depois, fui Reitor.

Dizer “teologia” é um pouco genérico. Para ser mais preciso, ensinava “Eclesiologia”, isto é, a reflexão sobre o mistério da Igreja. Encontrava-me, pois, numa situação privilegiada de observação. De facto, o Concílio tinha colocado como eixo central da sua reflexão a questão eclesial. Por outro lado, a Universidade Urbaniana, por definição, é um polo de reflexão e de estudo de caráter acentuadamente internacional, com uma atenção especial para os países extraocidentais. Consequentemente, as várias etapas em que se desenvolvia a assembleia conciliar tinham uma ressonância especial no meu coração e na minha mente.

Conservo viva a recordação dos debates que da aula conciliar ressoavam na conversação entre amigos e colegas. Vários modelos e experiências de Igreja constituíam o horizonte do nosso pensamento e da nossa ação: várias conceções teológicas e práticas originavam novos projetos educativos e pastorais. Uma extraordinária multiplicidade de vozes, de situações, de perguntas confluíam nos debates romanos e faziam imaginar originais perspetivas. A descoberta da diversidade na Igreja e no mundo, assim como a valorização dos outros caminhos religiosos e humanos criavam um constante clima de estudos, de investigação e de diálogo.

Assistia-se também à mudança de tantas certezas. Umas vezes tratavam-se de verdadeiras e autênticas certezas, que sucessivamente se impuseram como algo a recuperar; outras vezes, eram ilusões, que felizmente ficaram pelo caminho (presas ao tempo e às circunstancias que as geraram).

Vislumbravam-se já os sinais de uma crise que, pouco tempo depois, se fez sentir e atravessou todo o Ocidente, na qual o desejo de mudança tomou formas contestatárias que encontraram no ano de 1968 a maior carga simbólica.

Recordo, com particular simpatia, que naquele clima não havia espaço para o “abster-se”. Uma Igreja renovada por uma sociedade nova: esta era a mensagem que alentava as nossas conversas, as nossas celebrações, os momentos de encontro, os debates organizados ou improvisados; um sentido de otimismo dava forma à construção possível de um mundo melhor para todos; o sentir-se pedra viva de uma construção viva e articulada; o sentir-se família, isto é não somente espetadores mas protagonistas num sentido coletivo e solidário nos processos de crescimento e maturação.

Tinha-se a consciência de estar a programar o futuro, com um claro apelo não somente à doutrina, mas também, e sobretudo, ao testemunho de vida.

Com um novo olhar para os valores humanos, com a inteligente abertura ecuménica e inter-religiosa, com a disponibilidade em colaborar com todos, a Igreja demonstrava, uma vez mais, a extraordinária capacidade de deixar de olhar somente para si própria, para abrir-se a formas novas de diálogo com o mundo – e todo o mundo! Assistíamos “em direto” a mudanças e transformações, que não é exagerado definir como “de época”.

Alguns poderão hoje acusar aquele período de superficial otimismo. Estou de acordo com o “otimismo”, mas não estou de acordo com o “superficial”. Na realidade era bem claro e constantemente presente o escândalo de uma humanidade dividida em três partes, isto é, uma sociedade Ocidental desenvolvida, o bloco soviético e o, ainda hoje infelizmente chamado Terceiro Mundo. Diante desta situação urgia uma reforma de mentalidade e de abordagem e a Igreja tornava-se intérprete e protagonista de uma tal reforma. Uma exigência de contínua renovação (é famosa a fórmula que ressoava naqueles anos: “Ecclesia semper reformanda est”, isto é, a Igreja deverá sempre renovar-se), era o mote acolhido não só pela opinião pública como também a nível institucional e programático-Iegislativo, como método de vida.

Delineavam-se no horizonte os novos desafios que a modernidade iria dirigir à Igreja. Sobretudo, interrogava-se sobre que tipo de Igreja começava a emergir!

Contudo, é claro que a única comunidade querida por Jesus Cristo ao longo dos séculos assumiu diversas formas históricas. Nas vésperas do Concílio estas “formas” vinham à ribalta, não só na consciência dos cristãos como também numa vasta opinião pública. As perguntas despontavam: Uma Igreja Individualista? Uma instituição baseada somente no tradição, que repete incansavelmente as coisas recebidas do passado? Uma comunidade “das obras”, preocupada em encher todos os espaços vitais dos seus aderentes? Uma Igreja litúrgica, centrada na celebração? Ou antes, uma Igreja missionária, que tem consciência de viver num mundo que já não é explicitamente cristão; uma Igreja “no mundo”, que caminha com o mundo e olha atentamente para as exigências da sociedade; uma comunidade de vida, que se esforça por conseguir relações interpessoais cada vez mais válidas e credíveis?

Qualquer que fosse o modelo prevalente, definia-se, com clareza absoluta, um princípio essencial: a Igreja do futuro seria a Igreja da “participação”. Isto é, pressupunha formação, quer dizer, um “dar forma” ao sonho, orientando-o para uma finalidade. E óbvio que a ideia mais válida e mais bela é absolutamente ineficaz se colocada na mão de alguém que não está preparado para o fazer, ou pior ainda, se é insensível ao fim desejado.

Em primeiro lugar e mais do que uma série de documentos, o Concílio foi um acontecimento que sacudiu as consciências e foi marco incontornável de “não retorno”.

Tenho, de modo especial, uma recordação que guardo com muita estima! Com a audácia (e a inconsciência!) que caracteriza a juventude, pedi ao secretário-geral do Concílio, Mons. Pericle Felici, para poder assistir à última reunião da grande assembleia. Pois bem, com muita admiração minha, o Mons. Felici comunicou-me que o meu desejo seria satisfeito e que poderia estar presente na Basílica Vaticana durante a última sessão do Concílio. Foi para mim uma emoção extraordinária: encontrar-me naquele momento, naquele lugar, com aqueles bispos que estavam a traçar o futuro percurso da barca de Pedro!

As recordações tornam-se para mim, e para todos, um empenho em acolher e fazer frutificar as extraordinárias perspetivas que naquele momento se abriam diante dos nossos olhos, e que constituíam também um estímulo permanente para construir o caminho eclesial, à luz daqueles valores e daquelas novas esperanças.

 

3. No que se refere, ao modo como participei na transformação sugerida pelos Padres Conciliares, limito-me a dizer que procurei, em primeiro lugar como professor na Universidade Urbaniana e depois como Secretario da Congregação para a Educação Católica, colocar de modo bem visível, quer fosse de viva voz, quer fosse pelas inúmeras publicações realizadas, alguns dos princípios mais importantes afirmados na grande Assembleia Conciliar; assim como a necessidade de vivê-los, com profundidade e verdade, no atual contexto da Igreja e da sociedade.

A minha atenção voltou-se, antes de mais, para a verdadeira natureza da Igreja, que, como sublinha o Concílio, não é uma simples estrutura, mas o próprio Cristo que, incarnado numa comunidade de fé, de esperança e de amor, continua, no tempo e na história, a sua missão de Salvação.

Em segundo lugar, para o papel da liturgia na vida da Igreja, colocando em relevo que não é um papel marginal, mas essencial, uma vez que é mediante esta, com a Eucaristia ao centro, que se realiza “a obra da nossa redenção” (cf. SC 2).

A dimensão fundamental de evangelização da Igreja de Cristo tocou-me também, enquanto esta vive no tempo, e por natureza é essencialmente missionária, pois é da missão do Filho e do Espírito Santo que ela, segundo os desígnios do Pai, encontra a sua origem.” (AG 2). A Igreja é, pois, a enviada de Cristo, como Cristo é o enviado do Pai, e os fiéis são os enviados de Cristo e da Igreja.

Finalmente, tive sempre presente, de modo especial, a missão da Igreja na sociedade moderna, pois esta engloba a promoção do homem e a defesa dos seus direitos fundamentais, naturais e, por isso “sacros”, isto é “não negociáveis”.

 

Cardeal D. José Saraiva Martins,
prefeito emérito da Congregação
para as Causas dos Santos, Santa Sé

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