Cinema: Sr. Ninguém

Em 2092, Nemo Nobody é o último mortal num mundo totalmente assético que descobriu e adotou a infinita multiplicação das células mas perdeu a capacidade de se entregar, correndo riscos, ao amor e à beleza da vida.

No ano em que está prestes a celebrar o seu 118º aniversário, embora creia ter ainda 34 anos e viver em 2009, o “Sr. Ninguém”, estrela do reality show do momento, procura incessantemente recuperar a sua identidade humana.

Começa assim uma viagem alucinante a momentos dispersos do passado, entre os quais Nemo tenta discernir sobre as escolhas que foi ou não capaz de fazer, e ao seu fundamento, procurando redescobrir o impacto de cada uma das hipóteses nos caminhos que se lhe afiguraram.

Evocando temas anteriormente tratados no cinema, como em “Donnie Darko”, “Memento”, “O Despertar da Mente” ou mesmo ainda “A Vida em Direto”, o realizador belga Jaco Van Dormael (“Maedeli La Brèche”, “Totó, o Herói, “O Oitavo Dia”) redigiu o argumento de “Mr. Nobody” sete anos antes de começar a rodá-lo. Premiado, desde a primeira curta metragem, pelo mérito das suas abordagens cinematográficas, Van Dormael tem recorrentemente questionado o limiar do ser humano, no contexto da amizade, da (in)sanidade, da magia e do imaginário. Um interesse que, segundo o próprio, advém de uma experiência precoce de doença que o conduziu ao estado de quase incapacitação mental.

“Sr. Ninguém” parece ter colhido de Van Dormael o fortíssimo investimento próprio de um realizador que assume ter há muito passado a experimentação. Não só conta com meios de produção avultados, como envolve no seu argumento uma intrincada teia de dimensões existenciais exigindo-lhe extraordinária habilidade na criação de uma narrativa simultaneamente viva, profunda e compreensível.

O resultado, que não teria necessariamente que ser concordante, podendo advir das contradições próprias da vida, arrisca no entanto o desigual, o confuso e o superficial, suportando-se muito mais numa estética visual e sonora que vive de momentos do que na construção de um mosaico apreensível e significativo na sua globalidade. Talvez o excesso de carga autobiográfica tenha diminuído em Van Dormael a capacidade de mediação com o espetador…

Margarida Ataíde

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