Projecto Querença

Samuel Mendonça, Jornalista

Todos nós concordamos que o melhor do mundo são as pessoas, e em particular, as relações entre elas. E todos cremos haver anomalias que parecem colocar, cada vez mais, em causa esta verdade da Vida. Todos acreditamos que só somos pessoas porque o somos em relação uns com os outros e que só a existência dos outros é que nos faz sermos pessoas. Somos gente que sabe não haver autorrealização.

Todos nos incomodamos com o crescimento de casos de idosos abandonados em hospitais ou casas particulares, sem acompanhamento e apoio na doença e na morte tantas vezes descobertas apenas depois do arrombar de portas que deixámos que se fechassem.

Todos nos interrogamos perante a realidade crescente dos divórcios de famílias que vivem escravizadas em torno de uma situação financeira e laboral tão cada vez mais exigente como estranguladora. Casais que veem a sua relação amorosa, pressionada a ser preterida em favor de outras prioridades do mundo.

Muitos concordamos estar a dar cabo da infância das crianças devido ao paradigma educacional que escolhemos, mas continuamos a exigir aos nossos filhos que sejam iguais a nós, pondo o trabalho das 8h às 20h à frente de tudo o resto, e a lastimar que eles tenham défices de atenção que tentamos comprar por via material. Lamentamos o modelo tecnocrático em que organizámos o ensino, reconhecendo que mais escola não significa melhor escola e desconfiamos do sentido do furor da formação técnica e científica que quer enganar inexperientes em princípio de vida fazendo-lhes crer que alcançaram o patamar que jamais alguém alcança durante toda a existência: ser mestre.

Interrogamo-nos até que ponto é que o crescimento do conhecimento e da tecnologia é proporcional ao da humanidade e do seu bem-estar mas continuamos a insistir numa ideia absurda de desenvolvimento, subjugada à vertigem do económico e à voragem dos interesses financeiros de grupos que concentram a riqueza no mundo, os mesmos que fazem com que já não seja a necessidade a fazer a tecnologia, mas o contrário.

São cada vez mais os que acreditam que o atual modelo económico não serve e também os que defendem que a sociedade precisa de um novo arquétipo de organização. No entanto, os dias correm, uns atrás dos outros, sem que ninguém ouse pensar a mudança de uma realidade inaceitável, nem acreditar que é possível um mundo melhor, uma economia que sirva o homem e não o inverso.

A Europa não está a aprender nada com a crise e fazem-nos crer que, para sair dela, é preciso colocar a economia a crescer, aumentando o consumo (sempre o consumo) para gerar emprego, insistindo no erro que nos conduziu até aqui.

O futuro tem que voltar a ser as pessoas e precisamos de ideias novas que nos voltem a dar o horizonte desse futuro. Precisamos de alternativas e há sempre alternativas. Temos de resgatar a liberdade de viver para voltar a viver em liberdade. É preciso o regresso às coisas básicas e simples, as mais importantes da Vida, o regresso a uma Vida de harmonia com a natureza, com o Planeta como nossa casa, connosco próprios, uma Vida com respeito pela cultura e pelo património.

Precisamos urgentemente que os modelos carismáticos de uma Vida verdadeira acordem para o testemunho que nos levará a sermos o «fermento» que pode «levedar a massa». Chegou a hora! Uma hora que tem de ser a da juventude! E pode ser a da juventude cristã! Precisamos de gente com coragem para romper ceticismos. Precisamos de audazes que rasguem a estúpida cultura do individualismo para ousar viver a comunhão e a partilha de vida. Precisamos de gente que rejeite viver em função do dinheiro e do lucro e lhes atribua a insignificante importância que têm. Gente que sabe que somos administradores temporários e nunca proprietários de nada. Gente que abomine o poder, o sucesso e a fama e que viva a Vida rejeitando a mentira da máscara, da aparência, do efeito, da impressão e da sensação. Gente com tempo para ser gente, pessoas com tempo para se relacionarem, cativarem e cuidarem, gente que sabe que sem famílias não haverá sociedade, humanos com tempo para pensar. Gente que se atreva a dar uma «pedrada no charco» e a fazer do amor ao próximo o critério de Vida. Chegou o tempo de passar da perfusão de teorias à ação, a única capaz de influenciar vidas e transformar comportamentos.

E é precisamente este o lema do «Projecto Querença», uma iniciativa de 9 jovens licenciados da Universidade do Algarve que se mudaram para aquela aldeia desertificada e envelhecida entre a serra e o barrocal algarvio para tentar revitalizá-la em colaboração com a população local. À jovem equipa foi atribuído o desafio de conhecer os recursos locais (naturais, rurais, culturais, sociais), estudá-los, testá-los e trabalhá-los numa perspetiva de valorização e rentabilização sustentável. Um projeto que está a marcar o Algarve e o país, como a tal «pedrada» dada no «charco», que busca soluções sustentáveis de dinamização dos recursos endógenos e a criação de oportunidades de emprego e que tem mostrado que a vida simples é sempre sustentável, no interior como no litoral. Uma iniciativa a fazer lembrar as Férias Missionárias, promovidas pela Pastoral Juvenil da Igreja algarvia, por terem sido pioneiras na década de 90 em aliar a (re)descoberta da cultura local à valorização dos afetos para contrariar a tendência de desertificação do interior.

Portugal (e o mundo) precisa de mais projetos destes, traçados por gente que arrisque um amanhã de esperança, gente que sabe que estamos destinados ao infinito. Não, não temos de mudar o mundo. Basta que comecemos por nos mudar a nós próprios.

Samuel Mendonça
Jornalista

 

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