Homilia do bispo do Porto na celebração do Corpo de Deus

– Seja esta a graça da celebração de hoje, seja este o encargo que ninguém dispense!  

“Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos seus discípulos e disse: «Tomai: isto é o meu corpo.»”

 

Amados irmãos,

1. Há dois milénios que repetimos estas palavras e o gesto, assim haja sacerdote para o fazer, enquanto sacramento de Cristo sacerdote da Nova Aliança, no meio do seu povo sacerdotal.

Para tantos e tantos, ao longo dos séculos e nas mais diversas circunstâncias – dos mártires antigos e modernos, à habitualidade de tempos mais pacíficos -, esse é o momento central das suas vidas, onde se unem a Cristo no sinal definitivo do que Ele é, como permanente oferta ao Pai, e do que nos dá, como total oferta a todos e por todos. E é no Amor mútuo e transbordante entre Cristo e o Pai que também nós nos vamos apercebendo do que realmente acontece em cada Eucaristia e nos vamos incluindo na Eucaristia absoluta que o Ressuscitado nos proporciona.

Gostaria hoje de meditar brevemente convosco nalgumas passagens da exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, que o Papa Bento XVI nos dirigiu há cinco anos, “sobre a Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja”. Passagens de particular relevância e oportunidade nos tempos que correm, especialmente no que toca à vida comum e até à sobrevivência de quem menos ou nada pode.

2. Tempos que correm, “entre alegrias e esperanças”, mas com muitas “tristezas e angústias” à mistura (cf. Gaudium et Spes, 1). Luzes tremulantes e ainda ao fundo dum túnel em que nos deixámos andar, apesar dos avisos, ou de que tantos nunca puderam realmente sair… Esperanças algumas, alimentadas por previsões relativamente consistentes, ainda que seja preciso chegar ao prometido e sem deixar ninguém de fora ou para trás. Esperanças reforçadas pela disponibilidade solidária que pessoas, famílias e instituições têm admiravelmente demonstrado, bem assinalada nestes últimos tempos por campanhas ocasionais ou iniciativas continuadas.

Tristezas e angústias, infelizmente não faltam, particularmente em quem não sabe como sustentar-se a si e aos seus, nem vê ou não distingue como poderá fazê-lo a curto prazo. Não pomos em causa a boa vontade do poder democrático e reconhecemos o esforço pessoal e político dos que se dedicam à causa pública, num contexto tão difícil e em parte dependente de realidades e decisões externas.

Mas é inegável a perplexidade de muitos e muitíssimos sobre o dia de amanhã, ou mesmo o de hoje, bem como a urgência de alargar a solidariedade a todos os níveis; também de alguma subsidiariedade descendente e colateral, traduzida tanto no apoio das instâncias superiores aos corpos intermédios, para  incentivar cada um a fazer aquilo que poderá fazer por si, desde que disponha de meios, como na estimulação mútua que prestarmos uns aos outros, para nos resolvermos criativamente como sociedade capaz. E, reagindo assim à “crise”, a própria ação criará mais ação e o trabalho conjunto dissipará fantasmas e nos fará renascer.

3. É a este propósito que os referidos trechos da Sacramentum Caritatis nos trarão luz e força certas.

Quando o Papa escreve, por exemplo, a propósito da oração eucarística, em que são consagrados o pão e o vinho: “É extremamente necessária, para a vida espiritual dos fiéis, uma consciência mais clara da riqueza da anáfora: esta, juntamente com as palavras pronunciadas por Cristo na Última Ceia, contém a epiclese, que é a invocação ao Pai para que faça descer o dom do Espírito a fim de o pão e o vinho se tornarem o corpo e o sangue de Jesus Cristo, e para que a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo” (Sacramentum Caritatis, nº 13).

Da primeira parte – que o Espírito faz do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo – está bem convicto o cristão católico, como o de outras Igrejas irmãs. Mas importa que semelhante convicção se dirija à segunda parte do trecho: o dom do Espírito faz da comunidade “corpo de Cristo” também.

É por isso que ninguém deve comungar se não estiver em comunhão, básica e crescentemente em comunhão de convicções e práticas, pessoais, familiares e sociais que sejam. Lembramos as advertências de Cristo sobre a necessidade de estarmos bem com os outros para estarmos realmente bem com Deus; lembramos as exortações de Paulo aos coríntios e a outros cristãos das origens sobre a mútua e necessária vinculação, já que o mesmo Cristo faz de nós um só corpo – com Ele de quem nos nutrimos.

Tão forte era – como deve ser – tal convicção que, lembra o Papa, “a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo” (Sacramentum Caritatis, nº 15). O corpo eclesial de Cristo, ou seja, nós próprios que n’Ele havemos de ser um só, para o Pai e para o mundo, onde a vida de Cristo plenamente transpareça nos seus, propriamente seus.

4. Na verdade, a comunhão eucarística representa e exige muito mais do que os nossos contactos habituais proporcionam, nas comuns relações. E digo “relações”, presumindo que disso se trata, com verdadeiro respeito, continuidade e serviço.

Mas, com Cristo, é muito mais: a iniciativa é d’Ele e do Pai que O envia, no amor do Espírito. Trata-se dum dom divino e gratuito, que nunca agradeceremos completamente, por isso mesmo exigindo uma retribuição eterna. E, sendo divina a iniciativa, não somos nós que assimilamos a Cristo, é Ele que nos assimila a nós, incluindo-nos na vida que nos traz do Pai: é o mar que recolhe o rio, não o impossível contrário.

O Papa refere-o, citando Santo Agostinho: “O grande santo de Hipona põe em evidência como o próprio Cristo nos assimila a Si mesmo: «O pão que vedes sobre o altar, santificado com a palavra de Deus, é o corpo de Cristo. O cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado com as palavras de Deus, é sangue de Cristo. Com estes [sinais], Cristo Senhor quis confiar-nos o seu corpo e o seu sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados. Se os recebestes bem, vós mesmos sois Aquele que recebestes». Assim, «tornamo-nos não apenas cristãos, mas o próprio Cristo»” (Sacramentum Caritatis, nº36; cf. nº 70)).

5. Daqui saem imediatamente duas conclusões, A primeira refere-se à indispensável integração comunitária, pois, tratando-se do “corpo eclesial de Cristo”, é na comunidade cristã que podemos sentir-nos realmente incorporados n’Ele.

Esta será mesmo, nas circunstâncias atuais, tão dispersivas, a grande tarefa da Nova Evangelização. Podemos chamar-lhe a reconfiguração comunitária da vida cristã. Na sua exortação, Bento XVI escreveu o seguinte: “A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária. Através da diocese e das paróquias, enquanto estruturas basilares da Igreja num território particular, cada fiel pode fazer experiência concreta da sua pertença ao corpo de Cristo” (nº 76).

6. A segunda conclusão é necessariamente missionária. Em Cristo, Deus ganha no mundo a proximidade absoluta e concreta com toda a pessoa e lugar. Aproximação generosa, que é a própria substância da missão.

Quem recebe a Cristo, é assimilado à sua vida e atividade, tornando-se necessariamente missionário (= enviado por Deus Pai): “Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que atualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da existência cristã” (Sacramentum Caritatis, nº 84).

Tempos houve em que “missão” quase significava partir para longes terras. Assim continua a significar também, pois muitos nunca ouviram falar de Cristo, propriamente dito, nem têm oportunidade de se “incorporar” n’Ele, através duma comunidade cristã estabelecida.

Mas concordaremos facilmente em que tal “tensão missionária” nos toca geralmente aos batizados, para que, na nossa cidade e nos vários meios e ambientes dela, o Evangelho seja oferecido como “pão da vida”, que a todos alimente, no corpo e no espírito.

– Seja esta a graça da celebração de hoje, seja este o encargo que ninguém dispense!

 

Porto, Igreja da Trindade, 7 de Junho de 2012

+ Manuel Clemente

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