Os valores do desporto em tempo de crise

Padre Rui Valério, monfortino, pároco no Patriarcado de Lisboa

O campeonato europeu de futebol já está a ser pretexto para o constante ribombar do tema nos media, e não só. Ainda no domingo, enquanto tomava o pequeno-almoço na esplanada dum café, fui testemunha duma evasiva ressaca do 1-3 contra a Turquia: um grupo de adeptos que no sábado tinha estado na Luz juntava a cada nome de jogador da “nossa seleção” epítetos que eu pensava serem reservados exclusivamente aos adversários; e não adversários de última hora, de série “c”, acabados de chegar. Não. Mas adversários de topo, daqueles que só nomeá-los já nos põe a dizer coisas feias. E assim vai ser pelas próximas semanas.
Ora se o futebol é o prato forte do repasto, ele não irá ser servido sozinho, mas vai acompanhado dum vinho fora do vulgar… amargo, já azedo… que é a crise. A crise do deficit, do desemprego, da inflação… Continuaremos a receber notícias que tão depressa dão um ar de sua graça, encorajador, como novamente nos mergulham no já habitual desânimo (para não dizer apatia).

E, como já diziam os antigos na sua reconhecida sabedoria, “uma desgraça nunca vem só”, acresce que também o futebol vai dando provas de estar perfeitamente enquadrado no tipo de sociedade que produz os seus problemas económicos, sociais e humanos a partir de problemas graves existentes no âmbito da ética, da moral, da justiça e do direito. Problemas que estão relacionados com uma gama de contravalores, como os egoísmos exacerbados, o culto do lucro fácil, etc. (Veja-se o último escândalo de combinação de resultados ocorrido em Itália). Tudo isto nos remete para uma questão decisiva: que possui o futebol (e o desporto em geral) para continuar a arrastar multidões (não obstante os “casos” que vão sendo conhecidos)? Será que a retórica das emoções explica tudo?

Pessoalmente, sou da opinião de que uma pista onde se corre, ou uma estrada onde se pedala, ou um campo onde se joga são – continuam a ser – lugares da verdade e da justiça. Da verdade, porque ali vem sempre ao de cima o que um atleta é e vale. Certo, pode sempre dar-se o caso de haver recurso e uso às substâncias farmacológicas. Sim, pode acontecer! No entanto, a verdade de que falamos, a que é verdade profunda, pode nem vir expressa nos resultados, ou nem sequer se mostrar na história do jogo, ou da prova. No entanto, ela continua a estar presente. E mesmo quando não se revela nos resultados, acaba por se revelar na consciência de quem assiste ou participa. É este dado que continua a mover o fascínio pelo desporto, mesmo em tempo de “crise”: o evento desportivo liberta o sentido da verdade e da justiça, presentes nos campos da consciência individual e coletiva. Repito, falamos da verdade e da justiça que está inscrita na consciência de cada um e, mesmo quando não se compatibiliza com as pseudoverdades e pseudojustiças das provas, não demove o cidadão de acreditar na força da verdade e da justiça gravadas dentro de si. É por isso que, nesta nossa época em que a crise de valores suscitou a crise económica, humana, social e também desportiva, os cidadãos continuam a acreditar no desporto. Esta crença não é ingenuidade, é sim o sinal de como a pessoa é – continua a ser – a pátria da verdade e da justiça. Mesmo quando essa verdade e justiça já tiverem desertado dos campos de futebol, ou das pistas e das estradas de provas desportivas.

Padre Rui Valério, monfortino, pároco da Póvoa de Santo Adrião

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Agência ECCLESIA

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