Homilia do arcebispo de Bragança-Miranda na Missa da Ceia do Senhor

Servir, a única autoridade

1. Serviço humilde

A narração da última ceia ligada ao lava-pés encontra-se apenas no evangelho de João. Todavia, o contexto da última ceia e o sublinhar do exemplo de humildade e de amor serviçal dado por Jesus reenvia-nos ao evangelho de Lucas e à exortação do próprio Jesus acerca do poder e do serviço: «24Levantou-se entre eles uma discussão sobre qual deles devia ser considerado o maior. 25Jesus disse-lhes: «Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores. 26Convosco, não deve ser assim; o que fôr maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. 27Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve» (Lc 22, 24-27).

João atribui expressamente ao lava-pés realizado por Jesus o significado da humildade a imitar pelos discípulos (cf. vv 12 e 13) (Cf. P.F. BEATRICE, La lavanda dei piedi. Contributo alla storia dele antiche liturgie cristiane, Edizioni Liturgiche, Roma 1983, 11). Mas o fundamento de tudo é o amor: «Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo» e ainda mais claramente a seguir Jesus deixa o mandamento novo: «é este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15,12).

Jesus é mestre no servir e interpela-nos a fazer o mesmo.

Bento XVI, ao comentar este texto, escreve: «com a última ceia, chegou a “hora” de Jesus, para a qual se orientava a sua actividade desde o princípio (cf. Jo 2,4). O essencial desta hora é delineado por João com duas palavras fundamentais: é a “hora da passagem” (metabaínein – metábasis); é a hora do amor (agápe) “até ao fim”» e acrescenta: «a “hora” de Jesus é a hora da grande “passagem para mais além”, da transformação, e esta metaformose do ser realiza-se através da agápe. É uma agápe “até ao fim” – expressão esta com que João, neste ponto, remete de antemão para a última palavra do Crucificado: “Tudo está consumado – tetélestai (Jo 19,30). Este fim (télos), esta totalidade da doação, da metamorfose de todo o ser é precisamente o dar-se a si mesmo até à morte» (J. RATZINGER-BENTO XVI, Jesus de Nazaré, vol. 2, Principia, Lisboa 2011, 54-55). O lava-pés não é, com efeito, «um sacramento particular, mas significa a totalidade do serviço salvífico de Jesus: o sacramentum do seu amor, no qual Ele nos imerge na fé e que é o verdadeiro lavacro de purificação do homem» (J. RATZINGER-BENTO XVI, Jesus de Nazaré, vol. 2, Principia, Lisboa 2011, 68).

2. Deus ajoelha-se aos homens. Deus ajoelha-se aos nossos pés. Diante de tamanho amor, às vezes, como Pedro, defendemo-nos do amor que Deus nos tem. Jesus educa-nos ao receber, porque o amor começa pelo receber. Efetivamente, não damos nada, que primeiro não tenhamos já recebido. Mesmo reconhecendo-nos frágeis, amemos. A fragilidade não é um obstáculo, a fragilidade é o caminho.

O Ir. Marista Henri Vergès, assassinado com a Ir. Paul-Hélène em Argel em 1994, escreveu: «ser transparência ao Evangelho, transparência do Evangelho. Ser um grão escondido na terra dos homens, onde possa manifestar-se o fermento do Evangelho. Deixar-me transformar cada dia um pouco mais pala Palavra viva do Evangelho: não deixar que o seu gume enfraqueça na rotina, na distracção e na instalação do conforto. Que ela possa, sem cessar, fazer surgir em mim o homem novo. Ser sempre mais palavra do Evangelho» (Ir. Henri Vergès (1930-1994). A mesma profundidade de entrega e confiança é dada pela Ir. Esther, Missionária Agostiniana, assassinada com a Ir. Caridad a caminho da Eucaristia: «ninguém pode tirar-nos a vida, porque já a entregamos. Nada nos pode acontecer, visto estarmos nas mãos de Deus. E se alguma coisa nos acontecer, estamos ainda nas mãos de Deus» Ir. Esther Paniagua Alonso (1949-1994).

S. Paulo ousa dizer: «se eu anuncio o Evangelho, não é para mim motivo de glória, é antes uma obrigação que me foi imposta: ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16). A Bíblia é um livro de esperança e lê-lo, anunciá-lo e testemunhá-lo «dá como resultado a esperança» (CHRISTIAN DE CHERGÉ E ALTRI MONACI DI TIBHIRINE, Più forti dell’odio, Edizioni Qiqajon, Comunità di Bose, 2010, 173).

3. Na abertura da celebração anual do Tríduo pascal, justamente na Missa da ceia do Senhor «faz-se, portanto, memória: da instituição da Eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor, na qual se perpetua no meio de nós, através dos sinais sacramentais, o sacrifício da nova lei; da instituição do sacerdócio, pelo qual se perpetua no mundo a missão e o sacrifício de Cristo; e também da caridade com que o Senhor nos amou até à morte. Tudo isto procure o Bispo propô-lo de forma adequada aos fiéis mediante o ministério da palavra, para que eles possam penetrar mais profunda e piedosamente em tão sublimes mistérios e vivê-los mais intensamente na prática da sua vida» (Cerimonial dos Bispos 297).

«Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13, 15).

«Quem é posto à frente do povo deve ser o primeiro a dar-se conta de que é servo de todos. E não desdenhe de o ser, repito, não desdenhe de ser servo de todos, pois não desdenhou de se tornar nosso servo aquele que é o Senhor dos senhores» (S. AGOSTINHO, Sermo 32.). Paulo VI testemunhou: «pode-se exercer um encargo de alto grau por habilidade, por autoridade, ou por humildade, fazendo discretamente o dever, o melhor que se pode, sem ter conta dos resultados e confiando em Deus. Eu escolho este caminho» (PAULO VI, 1965).

«Nossa vida é rápida e breve, mas Deus, imutável e eterno: por isso sempre há instantes quando as coisas não parecem se conciliar, e não devemos mesmo saber como se conciliam: porém, só nos mantermos ali de coração aberto ao mistério, a fim de que a magnitude tenha espaço na pequenez: na intensidade de nossa existência possa se poetizar um instante perpétuo, convergindo com a infinda eternidade divina» (R. RILKE, Cartas natalinas à mãe, Editora Globo, S. Paulo 2007, 54).

A escola do serviço não conhece férias, é uma entrega total, nupcial com a Igreja esposa de Cristo, da qual Ele é cabeça, pastor, esposo e servo.

 

+ José Cordeiro

 

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