Homilia do Cardeal-patriarca de Lisboa na celebração da Paixão do Senhor

“A Cruz é o caminho dramático da redenção”

1. Nesta celebração da Paixão do Senhor, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo está no centro, sugerindo a dimensão dramática da nossa redenção e a sua centralidade na nossa fé e em toda a vida cristã, na Liturgia, na oração pessoal, na luta contra o pecado, na simbólica de uma vida nova de um povo peregrino da Casa do Pai. A morte de Cristo na Cruz encerra o segredo da própria encarnação do Verbo de Deus. A redenção da humanidade, que no pecado perdera a capacidade de ser um Povo do Senhor, na intimidade de uma Aliança, autêntica reviravolta criadora, tinha de ser feita a partir do homem. É este que precisa de mudança radical do coração, para voltar a ser o Povo do Senhor, na intimidade do Filho. É por isso que Deus Se faz Homem. Essa mudança radical só era possível com a força criadora de Deus, mas tinha de acontecer no homem, na sua liberdade. Na Cruz é a humanidade que muda radicalmente a sua atitude para com Deus, com a força do próprio Deus, feito Homem. Para São Paulo está aí o segredo da novidade cristã: “Deus fez o que era impossível à Lei (…). Ao enviar o Seu próprio Filho, em carne idêntica à do pecado e como sacrifício de expiação pelo pecado, condenou o pecado na carne, para que assim a justiça exigida pela Lei possa ser plenamente cumprida em nós, que já não procedemos de acordo com a carne, mas com o Espírito” (Rom. 8,3-4).

 

2. Na Cruz realiza-se a reviravolta da humanidade, ela é a fonte da graça da salvação. Escutávamos na Carta aos Hebreus: “Vamos, portanto, cheios de confiança, ao trono da graça, a fim de alcançarmos misericórdia” (Heb. 4,16). Continua a ser misteriosa a fecundidade da Cruz. Já o Profeta Isaías anunciava essa fecundidade do sacrifício do Servo: “Ele terá uma descendência duradoira, viverá longos dias e a obra do Senhor prosperará em suas mãos” (Is. 53,10). “Eu lhe darei as multidões como prémio” (Is. 52,12).

Esta fecundidade salvífica da Cruz é fonte contínua e actual da transformação do homem. Ela é a fonte de uma nova compreensão da vida, uma nova sabedoria, a que Paulo chama a sabedoria da Cruz (cf. 1Cor. 2,2). Jesus, “aprendeu a obediência no sofrimento” (Heb. 5,6), ensinando-nos a nova compreensão da vida: o sofrimento, a dureza da vida, a luta pela liberdade e pelo amor ganham, na Cruz de Cristo, uma força transformadora e redentora.

3. Esta força transformadora da Cruz de Cristo actua através de todo o poder sacramental da Igreja, com expressão perene e plena na Eucaristia, o sacrifício da nova Aliança. Não devemos separar a Eucaristia desta força redentora da Cruz de Cristo. É o que a Liturgia sublinha ao exigir que no altar da Eucaristia esteja sempre a Cruz, sublinhando a unidade do mesmo mistério. Aí, mais do que em qualquer outro momento, devemos contemplar a Cruz como a fonte da redenção.

A contemplação da Cruz do Senhor pode alimentar toda a nossa caminhada de conversão. O próprio Senhor o afirmou: “Eu, elevado da terra, atrairei todos os homens a Mim” (Jo. 12,32). Contemplando Jesus, na Sua Cruz, conhecê-lo-emos profundamente como Filho de Deus, nosso Redentor: “Quando elevardes o Filho do Homem, então sabereis que Eu Sou” (Jo. 8,28).

Jesus quer que O contemplemos na Sua Cruz, descobrindo n’Ele o sinal da nossa salvação: “Como Moisés elevou a serpente no deserto, assim é preciso que seja elevado o Filho do Homem, para que todo aquele que crê, tenha por Ele a vida eterna” (Jo. 3,14-15).

 

4. A contemplação da Cruz acompanha a vida dos cristãos, desde as orações litúrgicas, aos hábitos pessoais, dando origem a uma autêntica cultura.

 Hoje, ao adorar a Cruz do Senhor, somos chamados a reaviver o sentido de todas essas expressões de amor à Cruz e que, tantas vezes, podem cair na rotina. Cada uma dessas expressões da presença da Cruz no dia a dia da vida do cristão, podem transformar-se na contemplação do Crucificado, sentindo o amor infinito de Deus por nós e louvando a Deus pela nossa redenção. Lembremos algumas dessas expressões:

* A Cruz é sinal de bênção. Todas as bênçãos são feitas com o sinal da Cruz, desde a bênção do pão e do vinho na oferta eucarística, às bênçãos de pessoas, de instituições, de acção dos cristãos. Se consciencializarmos esses gestos, sentiremos que toda a bênção tem a sua fonte na Cruz do Senhor, sinal do seu amor infinito.

* A Cruz dá sentido à vida pessoal. Benzemo-nos, com o sinal da Cruz, quando começa e quando acaba o dia ou em momentos particularmente exigentes e significativos: quando iniciamos a oração, quando queremos entregar a Deus as acções que vamos fazer. Façamos o exercício de consciencializar quantas vezes, durante o dia, fazemos o sinal da Cruz.

* A Cruz é ornamento. Ainda hoje, muitas pessoas trazem ao peito a Cruz do Senhor, como se ela fosse o único ornamento digno do cristão. Aí a fé deu lugar à arte e à beleza, na medida em que essas cruzes são frequentemente trabalhadas artisticamente e feitas em material precioso. Uma cruz preciosa pode significar quão importante é, para nós, a fecundidade da Cruz.

* A Cruz pode ser expressão da alegria cristã. Uma bela expressão desta relação da Cruz com o júbilo da vida é a “cruz florida”, presente na nossa cultura e que nós comunicámos a outras culturas. A Cruz florida simboliza os frutos de vida nova que florescem da Cruz do Senhor, fazendo dela, verdadeiramente, a nova árvore da vida. Segundo o Apocalipse, da Cruz brota um rio de vida, límpido como cristal. Em cada margem desse rio há árvores de vida que dão frutos abundantes (cf. Apoc. 22,1-2).

Cantemos com fé e amor: “Adoramos, Senhor, a Vossa Cruz, louvamos e bendizemos a Vossa ressurreição gloriosa: pela Cruz veio a alegria ao mundo inteiro”.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top