Homilia do arcebispo de Braga na Missa da Ceia do Senhor

 

O 11.º Mandamento

Quem passeia no jardim das Tulherias, em Paris, depara-se com uma estátua célebre de François-Léon Sicard, que retrata a figura do bom-samaritano. Há muitas imagens do Bom Samaritano, esta tem um pormenor que nos prende: os pés do homem ferido. Suspensos no ar, repleto de feridas e calejados de caminhar no chão existencial.

Partindo desta imagem, direi que estes pés feridos são expressão da verdade da liturgia que hoje celebramos. A caminhada do homem moderno é feita por pés feridos, magoados e daí que seja dura e difícil.

A eucaristia nasce da categoria da memória, pois recorda liturgicamente os gestos e palavras de Jesus na Última Ceia (2.ª leitura). Mas ela vai além da liturgia e completa-se no gesto do lava-pés (Evangelho). Portanto, a eucaristia é esta unidade entre acelebração litúrgica e o quotidiano serviço aos irmãos (caridade).[1] Aliás, já a Beata Madre Teresa de Calcutá nos avisava: “Não podemos separar a nossa vida da Eucaristia. No momento em que o fizéssemos, quebrar-se-ia algo”.

Este gesto do lava-pés, como sabemos, não é uma invenção de Jesus, mas um aperfeiçoamento de um rito antigo. Antes e durante as refeições rituais, era costume os israelitas piedosos fazerem lavagens com água, cujas mãos do chefe da mesa eram lavadas por um servo ou pelo mais novo dos convidados.

Mas nesta Ceia algo inédito acontece! Jesus, o chefe da mesa, levanta-se, depõe as vestes, pega numa toalha e cinge-a à volta da cintura. Depois deita água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos, e a enxugá-los com a toalha de que Se tinha cingido. Tratou-se de algo tão surpreendente que todos ficaram atónitos.

Neste cenário, concretiza-se o Sermão da Montanha outrora proferido, de harmonia com o “como eu fiz, fazei vós também!” Passa-se assim da teoria à prática, do discurso à ação, da utopia à realidade, do sacramento ao exemplo,[2] da negação – um não que caracterizava –  os mandamentos à afirmação, uma sim paradigmático das bem-aventuranças, gerando-se um novo tipo de apostolado: os “apóstolos do sim”. Esta é a tarefa que a Quinta-feira Santa nos outorga: ser apóstolo do Sim.

Ser apóstolo do sim, não é aquele que apenas cumpre o mandamento do “não invocar o Santo Nome de Deus em vão”, mas um apóstolo que diz: sim à oração frequente, sim ao silêncio contemplativo, sim à alimentação quotidiana pela Palavra, sim à rejeição da bruxaria e feitiçaria (promovidos pelos mass media), e sim ao anúncio sem vergonha do Deus-Amor, sim à vida a produzir frutos evangélicos.

Ser apóstolo do sim, não é aquele que apenas cumpre o mandamento do “não matar”, mas um apóstolo que diz: sim à vida, sim à defesa dos valores humanos, sim à defesa das crianças que ainda estão no ventre de suas mães, sim à denúncia da violência entre casais, sim ao cumprimento das leis do código da estrada, sim ao amor desinteressado, e sim à família tradicional como célula da sociedade, sim ao compromisso solidário como entrega a causas que expressem o bem comum.

Ser apóstolo do sim, não é aquele que apenas cumpre o mandamento do “não roubar”, mas um apóstolo que diz: sim à justiça, sim à transparência nos negócios, sim ao pagamento de impostos, sim ao estudo sem fraude e sim à honestidade, sim ao trabalho interpretado como desenvolvimento pessoal para bem da sociedade, sim a uma economia social onde o lucro passa para a responsabilidade da partilha.

Ser apóstolo do sim, não é aquele que apenas cumpre o mandamento do “não levantar falsos testemunhos”, mas um apóstolo que diz: sim à verdade, sim à lealdade, sim à amizade, sim à defesa dos inocentes e sim aos compromissos assumidos.

Por último, ser apóstolo do sim, não é aquele que apenas cumpre o mandamento do “não cobiçar as coisas alheias”, mas um apóstolo que diz: sim à solidariedade, sim à sobriedade, sim à compaixão e, como referia na Mensagem para a Quaresma, um sim à partilha, que é a principal fonte de ajuda, que nós cristãos, poderemos oferecer, na austeridade pessoal, àqueles que vivem autênticos dramas na sua vida.

Com este novo tipo de apóstolos, promulga-se assim legalmente o 11.º mandamento da lei de Deus, ou se quisermos, o verdadeiro mandamento novo que, no tempo de Jesus, se diferenciava do legalismo e, hoje deve mostrar a verdadeira identidade do cristianismo e do cristão. “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei!”. Na encícliaDeus caritas est, Bento XVI refere: “O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à d’Ele une o intelecto, vontade e sentimento no ato globalizante do amor.”[3] E porquê?

“Porque a fé, sem amor, faz-te fanático. A inteligência, sem amor, faz-te cruel. A cultura, sem amor, faz-te distante. A justiça, sem amor, faz-te agressivo. A responsabilidade, sem amor, faz-te implacável. A amizade, sem amor, faz-te interesseiro. O apostolado, sem amor, faz-te estranho.”[4] A política, sem amor, torna-te partidário de interesses. A economia, sem amor, acumula desregradamente. E a profissão, sem amor, torna-te funcionário que só quer recolher.

Para terminar, o poeta Fernando Pessoa escreve: “a realidade é o gesto invisível das mãos invisíveis de Deus”. Por isso, Deus continua a precisar das nossas mãos para, à semelhança da célebre estátua no jardim das Tulherias em Paris, continuar a lavar os pés e a carregar o sofrimento dos pobres, desempregados, vítimas de violência doméstica, emigrantes, órfãos, divorciados e jovens que nos circundam. Trata-se, ao fim e ao cabo, dum novo paradigma social. Só vale a cultura do dar onde a juventude deveria crescer e não, como acontece, na concorrência e interesses egoístas.

Um gesto compassivo que, além de uma imposição legal deste novo mandamento, é uma atitude de ação de graças (eu-caristia: ação de graças) pela misericórdia de Deus. Se assim for, a caridade alheia poderá ser uma oportunidade para revelar a presença do Deus-Amor, de tal modo que todos afirmem como o salmista: “Como agradecerei ao Senhor tudo quanto Ele me deu?”

Neste momento, gostaria de fazer uma prece para que a nossa Arquidiocese, nas suas comunidades, fosse uma verdadeira experiência sacerdotal, onde leigos e sacerdotes não ofereçam somente realidades externas a si, mas se ofereçam por amor para semear esperança no coração de muitos, e fé num mundo novo que todos esperam e anseiam.

Catedral de Braga, 05 de abril de 2012

D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga


[1] José da Silva Lima, Teologia Prática Fundamental. Fazei vós também, 19-22.

[2] Bento XVI, Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, 62.

[3] Bento XVI, Deus caritas est, 17.

[4] cf. Pedro Muñoz Peñas, Orar com Deus, 154.

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