Alentejo, Património do Tempo

José António Falcão, Diretor do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja

São conhecidas as circunstâncias, não muito fáceis, em que o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja [DPHA] iniciou a sua atividade, na primavera de 1984, por iniciativa do bispo D. Manuel Franco Falcão. Da inventariação dos monumentos e obras de arte – então apontada como a linha de trabalho prioritária – à dinamização de iniciativas culturais, como o Festival Terras sem Sombra de Música Sacra, fundado em 2003, há todo um devir que fala por si. No entanto, importa salientar que o projeto inicial do Departamento se mantém o mesmo: fazer do património uma alavanca para a valorização, no sentido mais pleno, da “memoria ecclesiæ” do Alentejo, o que pressupõe, naturalmente, a capacidade de promover, com largueza de vistas, a própria região. Esta fidelidade às raízes, à terra-mãe, representa, aliás, uma característica maior dos alentejanos. Algo só tangível quando se é constante. Porém, tal como em muitos outros aspetos da vida da nossa sociedade, a evolução impõe-se.

Se a ação do DPHA ficou centrada, primordialmente, na esfera da Diocese, em inícios da década de 1990 tornou-se claro que só através da colaboração intensa com as demais instituições presentes no terreno se poderia cimentar uma verdadeira estratégia de salvaguarda. Surgiram, assim, os protocolos para a conservação e restauro dos principais edifícios religiosos – e dos seus acervos. Consolidado este trabalho (um trabalho nunca terminado), logo emergiu a necessidade de partilhar os seus resultados mediante iniciativas de divulgação e sensibilização devidamente fundamentadas em termos científicos e técnicos. Entretanto, o progressivo declínio do mundo rural viria a ganhar foros de verdadeira tragédia em praticamente todos os concelhos do território diocesano, somando-se-lhe, no meio urbano, a decadência dos centros históricos. Sem pessoas, sem vida económica e social digna desse nome, que destino esperarão muitos dos nossos monumentos, além do abandono?

A consciência de tão duras realidades levou o Departamento a pisar um caminho que visa a requalificação do património religioso – o primeiro recurso, em termos histórico-culturais, do Alentejo –, não como um fim em si mesmo, mas como uma alavanca para o desenvolvimento regional. Isto pressupõe, além de um acréscimo dos valores da identidade e da autoestima, por parte das comunidades locais, um contributo que pode ser deveras significativo, à escala da região, do ponto de vista da manutenção das culturas tradicionais, do incremento de um turismo adequado às realidades da nossa área, do emprego, da coesão social… Trata-se, em suma, de conseguir que parte substancial da nossa memória coletiva, além de poder ser partilhada, com tudo o que isso tem de profundamente enriquecedor, por nós mesmos e por quem nos visita, deixe de constituir um ónus e passe a atuar como uma mais-valia.

Da observação atenta do universo patrimonial português coligiu o DPHA quatro linhas de atuação muito concretas nestes domínios. A primeira visa a prossecução dos mecanismos de abertura regular das igrejas, principalmente através da cooperação com as autarquias e os serviços de turismo. Algo complexo, em tempos de crise, mas que deve continuar a ser, a par das tarefas de conservação e restauro, a prioridade das prioridades. Se este mecanismo não funcionar, as hipóteses de criação de itinerários culturais, ossatura fundamental para a dinamização do touring patrimonial e ambiental, caem por terra.

Outro aspeto decisivo reside na constituição de uma rede de museus, pois sem uma oferta museológica à altura das expectativas, inúmeros bens culturais – entre eles algumas das mais belas obras de arte da região – continuarão arredados dos olhares do público e terão a sobrevivência comprometida. Fundada em 2001, a Rede de Museus da Diocese de Beja conta, até à data, com oito unidades de pequena e média dimensão, que formam um museu de território, um “museu sem fronteiras”. Isto permite conservar o património “in situ” e promover a visitação de espaços diversificados. As novas tecnologias assumem aqui particular relevância, designadamente no que toca à interpretação, mas o acolhimento continua a ser a pedra de toque.

“Ler” uma região pressupõe a existência de vias, de sendas que contem histórias e façam sonhar. Eis um fio condutor verdadeiramente indispensável para que os visitantes desfrutem do melhor que a região tem para oferecer e encontrem os esteios informativos necessários a uma fruição plena. Em Beja têm-se valorizado os velhos trilhos utilizados pelos peregrinos, nomeadamente os que fazem parte do Caminho de Santiago, o que permitiu reconhecer uma faceta assaz esquecida de um património comum a toda a Europa. Mas há outros itinerários a tornar acessíveis, numa lógica de complementaridade e “descoberta”.

A dinamização assume peso crescente, ajudando a trazer nova vida a inúmeros monumentos esquecidos. É este o fio condutor do Festival Terras sem Sombra, projeto de caráter itinerante, que percorre as principais igrejas históricas da região, apresentando uma “pequena história da Música Sacra”, dos primórdios à vanguarda da criação contemporânea, e pondo em diálogo as grandes páginas do passado com o que de mais recente se faz neste domínio. Diálogo ecuménico, capaz de rasgar janelas onde se fecharam antes portas, à luz de uma nova evangelização que encontra na abertura cultural o seu grande móbil. Como pano de fundo, a projeção internacional do Alentejo.

Esta abertura à contemporaneidade reflete-se em diversas áreas da intervenção do DPHA, sem esquecer a encomenda artística a jovens criadores, pois ninguém pode colher sem antes semear. Não nos faltam campos férteis, mas os semeadores são poucos. Pela mão dos artistas, verdadeiros demiurgos, chegou-se a uma outra esfera de ação fundamental do património religioso na sua vinculação à sociedade que serve: a salvaguarda da biodiversidade. De resto, muitas igrejas alentejanas constituem autênticos santuários da vida selvagem, deixando um rasto luminoso na paisagem. Enriquecer esta dimensão é também um desafio pastoral.

Sendo o Alentejo uma das regiões mais preservadas da Europa, faz todo o sentido incentivar o conhecimento dos seus recursos naturais e promover a conservação da natureza em diversas frentes onde se verificam problemas, incluindo o risco de extinção de espécies ameaçadas. É por isso que músicos e espectadores do Festival se unem às comunidades locais para levar a cabo ações de defesa dos recursos biodiversos.

Da limpeza de plantas invasoras nas dunas costeiras à identificação do saramugo, pequeno peixe da bacia do Guadiana, mais raro do que o lince ou do que o panda, mas de que ninguém fala, o Terras sem Sombra revela-se um viveiro de ideias com repercussão na opinião pública. Música, património e biodiversidade ensaiam, assim, o advento de uma nova sensibilidade para as relações entre o homem, a natureza e o Sagrado.


José António Falcão
Diretor do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja


O maestro Marcello Panni e intervenientes no Festival Terras sem Sombra ajudam a proteger espécies vegetais em risco na Reserva dos Colmeais, em Beringel, Beja, pertencente à Quercus (foto: Festival Terras sem Sombra/Alfredo Rocha)

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