Homilia do arcebispo de Braga no dia de Natal

A Palavra das palavras

 

Celebramos o Natal como Igreja Arquidiocesana e queremos que ele, no meio deste supermercado de palavras que a sociedade nos oferece, nos aponte a proveniência da autêntica Palavra, que alterou por completo o rumo da história humana.

 

1. Se pela palavra Deus criou o mundo, se com a palavra guiou o povo de Israel pelo mundo e se da palavra anunciou a vinda de um Messias ao mundo (Tempo de Advento), agora Deus habita entre nós porque “a Palavra fez-se carne” (Evangelho).

Por isso, é nesta Palavra (Jesus) que reside a diferença do monoteísmo cristão. (1)

Se para outras religiões a revelação plena de Deus acontece mediante um anjo, um espírito, uma força energética, uma voz ou a simples inspiração textual, para o cristianismo ela opera-se na encarnação numa pessoa (carne) com uma descendência, uma naturalidade, uma família e um nome concreto: Jesus, o homem e o filho de Deus. (2)

Tudo isto, porém, não é obra do acaso, mas fruto do amor de Deus correspondido pelo Homem, que gerou este filho no seio da família de Nazaré. Daí que a minha reflexão se centralize no Natal como Festa da Família e da Palavra, oferecida em Cristo que pode dar um sentido festivo a todas as famílias.

 

2. A propósito da Família, recordo que de 30 de maio a 3 de junho de 2012 realiza-se em Milão o VII Encontro Mundial das Famílias, onde espero que alguns casais dos diferentes arciprestados participem. Ao convocar este encontro o Santo Padre propôs o tema: “A Família: o trabalho e a festa”.

Nascemos para uma vida que deveria ser festa como sinal de felicidade e realização humana plena. Mas onde podemos encontrar a felicidade?

Não é fácil usufruir dum estatuto de felicidade. Se cada um, pela reflexão e por condutas adequadas, vai construindo a sua vida em felicidade, sabemos que a incapacidade de o fazer sozinho é constitutivo da pessoa humana. A vida, enquanto festa feliz, só acontece na família!

Todavia, acontece que diariamente, somos inundados por notícias que parecem destituir o ideal familiar: as desavenças familiares, o divórcio, a negligência paternal e, sobretudo, a violência doméstica.

Perante tais dados, a Igreja, nas suas comunidades paroquiais, que favorecem o fator de proximidade, deve promover uma ação pastoral que torne as famílias mais consistentes.

E se a família é a célula da sociedade, então que o Estado (e a União Europeia) não se esqueça também de propor políticas familiares que respeitem e salvaguardem a integridade da mesma. (3)

São muitos os setores que as políticas devem abranger. Hoje, e na perspetiva das VII Jornadas Mundiais da Família, sublinho um: o trabalho, como direito e dever humano.

Na Encíclica Laborem Exercens, o Papa João Paulo II escreve: “O trabalho constitui o fundamento sobre o qual se edifica a vida familiar, que é um direito fundamental e uma vocação do Homem. (…) O trabalho é a condição que torna possível a fundação de uma família, uma vez que a família exige os meios de subsistência que o Homem obtém normalmente mediante o trabalho. (…) A família é uma comunidade tornada possível pelo trabalho.” (4)

Deste modo, a gravidade do desemprego, um cancro de extrema gravidade na nossa região que me preocupa profundamente, fruto duma crise provocada pela sociedade industrial e do comércio livre, priva as famílias dos meios necessários para um sustento vital e, naturalmente, para qualquer tipo de experiência de vida em festa.

Para viver é necessário trabalho, mas as condições com que é exercido devem proteger a dignidade da pessoa. A precariedade, a incerteza, a pouca estabilidade e a insegurança laboral não garantem a festa da vida em família.

Aliás, acrescento ainda outro pormenor. Até há pouco tempo, pensava-se que o progresso tecnológico aumentasse o tempo livre. Contudo, hoje verificamos que, por razões diversas, os ritmos do trabalho contemporâneo, impostos pela dita “necessidade de consumo”, limitam ou quase anulam o tempo para a família crescer na convivência e no diálogo, com desencontros frequentes ou ausências prolongadas.

Se pode ser importante garantir a produtividade para se poder subsistir, não podemos aceitar tudo, desequilibrando os tempos do trabalho com os da família, tempo vital para intensificar as relações familiares.

Na mensagem de Natal que preparei para este ano, propus a tenacidade em conciliar três atitudes: pobreza, alegria e esperança. É neste tríptico que a família cristã se distingue e deve crescer, apoiada nesta Palavra que agora habita entre nós, enquanto: família que vive com o essencial (pobreza), que partilha alegremente o que têm com outras famílias (alegria), que sente a corresponsabilidade cristã de animar a vida na esperança.

 

3. Na primeira leitura, o profeta Isaías proclamava como “são belos os pés que anunciam a boa-nova”. Hoje é dia de alegria, porque Deus mostrou-nos a sua beleza numa única Palavra: Jesus. Uma Palavra que é capaz de seduzir o Homem para um sentido, um compromisso, um gesto, um sentimento e um excesso de amor, que as outras palavras não conseguem produzir.

Por isso, Ele é a “Palavra das palavras”: primeiro, pois divide a história da humanidade em duas categorias de palavras, as palavras veterotestamentárias (lei) e as palavras neotestamentárias (amor); segundo, porque é o derradeiro código linguístico pelo qual comunicamos com Deus, como escutávamos na Carta aos Hebreus; e terceiro, porque esta Palavra retém em si a Verdade sobre o Homem e Deus, assim como sobre a Família.

Perante esta revelação, resta-nos anunciar a beleza desta Palavra: não para ganhar o mercado das palavras neste supermercado social, mas para ganhar (salvar) o Homem! (Salmo Responsorial)

Logo, neste Natal “uma palavra é melhor que um presente”! (D. António Couto)

Para terminar, que este não seja mais “outro Natal / outra comprida noite / De consoada, / Fria, / Vazia, / Bonita só de ser imaginada!”, como escreveu outrora o poeta Miguel Torga. (5)

Na verdade, a consoada mais saborosa está em alimentarmo-nos da Palavra de Deus! Quando assim acontece, Deus habita verdadeiramente no meio de nós, o rumo da história norteiam-se pelo genuíno critério da Verdade e o trabalho resplandece como um alicerce para a felicidade familiar!

Assim sendo, e porque o Natal é a Festa da Família, rezo para que todos os membros das nossas famílias, em idade laboral, disponham de trabalho digno e justo para que possam viver em festa a partir da sua família, à semelhança da família de Nazaré.

Solenidade do Natal do Senhor,

25 de dezembro de 2011, Catedral de Braga.

D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga

Notas:

1 – Cf. Bento XVI, Verbum Domini, 11-13.

2 – Cf. Michel Quesnel, Jesus, o homem e o filho de Deus, p. 129.

3 – Cf. Bento XVI, Caritas in veritatis, 44.

4 – João Paulo II, Laborem Exercens, 10.

5 – Miguel Torga, Antologia poética, 449. 

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