Homilia do bispo do Porto no dia de Natal

Natal de Cristo, Natal da Igreja, Natal do Mundo…

Amados irmãos, neste Natal de agora:

1. De Deus e dos homens sempre se falou e muito, como continua a falar. É uma espontaneidade inevitável, pois em torno de tais palavras se joga o que vivemos e esperamos, sofremos e novamente esperamos… Não é por acaso que, mesmo na linguagem corrente, a palavra “Deus” escapa tantas vezes dos lábios de quem crê e mesmo de quem diz não crer. Na generalidade das línguas, o vocábulo “Deus” – ou equivalentes – teima em exprimir o inexprimível, desfazendo prevenções ou sufocos, mesmo os “politicamente corretos”. Séculos de maus exemplos totalitários e laicistas já nos deviam ter convencido a todos de que a expressão religiosa é indissociável da esperança e de que, coibi-la, é um grave e inútil atentado à liberdade humana, que precisamente na sociedade se deve realizar, pessoal e comunitariamente, no mútuo respeito das convicções coexistentes.

O sentimento religioso, universalmente expandido – e até nalgumas contrafações dele -, busca etimologicamente algo ou alguém a que nos liguemos ou “religuemos”, e isto desde as primeiras manifestações da humanidade que integramos. Sendo irrecusável como sentimento, é diversamente apreciável como concretização. Na verdade, em seu nome se têm alcançado altos níveis de humanidade, mas também – ilegitimamente embora – se tem roçado o contrário. Assim no passado e assim ainda no presente, na sobrevivência ou ressurgência de fanatismos vários.

Como a própria palavra indica, o “fanatismo”, próximo do fantasmagórico, toma o imaginário pelo real e as fantasias pela verdade. É um despiste grave do sentimento religioso e uma projeção indevida das nossas repetidas quimeras. Por isso mesmo, fere a verdade de cada um, dos outros e do próprio Deus, todas reduzidas a devaneios. Desconhecendo a quase tudo, facilmente oprime a quase todos, senão a todos mesmo.

Daí que a religiosidade autêntica se encontre melhor quer com a abstração filosófica, como a herdámos dos antigos gregos, por exemplo, quer e ainda mais com a simplicidade crente, como a ganhámos da tradição bíblica. Como no júbilo de Cristo: “Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10, 21).

A primeira, de consequência em consequência ou de causa em causa, desceu ou remontou do ou ao princípio de tudo; a segunda deixou-se surpreender por um apelo que evoluiu em promessa e se concluiu em encontro. Ouvimo-lo magnificamente há pouco e devíamos sabê-lo de cor, quase como Credo resumido: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo” (Hb 1, 1-2).

 

2. Nós, cristãos, sabemos – por nós e para os outros – que estamos finalmente aqui, na incarnação do Verbo e a partir dela. Como o ouvimos também: “E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. Nos vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito, cheio de graça e de verdade”. Sendo indispensável isto mesmo – que o próprio Deus se dissesse e “fizesse” neste mundo -, para contrariar de vez qualquer ilusão ou despiste da nossa parte.

Deus disse-se na “carne”, ou seja, na humanidade que quis compartilhar connosco, ganha no seio virginal de Maria, que só para tal fora criada. E tudo muito concretamente, no menino que nasceu, cresceu, trabalhou, sofreu e morreu. A realidade humana – esta mesma que é a nossa e de todos, particularmente dos mais pobres e frágeis, como Ele quis ser deveras. Uma antiga meditação via na cruz do Gólgota a mesma madeira do Presépio, muito acertando nesse ponto…

Por mais que levantássemos “palácios” para Deus, o seu leito seria sempre o de Belém e o seu trono o que Lhe deram na cruz. O lugar de Deus é irrecusavelmente o da humanidade, como ela foi e continua ser, também nos dias difíceis que vivemos. Como lugar de compaixão, da sua parte, pois faz sua a nossa fraqueza; como, lugar de esperança, da parte nossa, pois aí mesmo O podemos encontrar e à sua glória. São Paulo tinha na cruz de Cristo “toda a sua glória” e, já no século II, Santo Ireneu pôde resumir tudo assim: “A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus”.

Irmãos e irmãs: Olhai de novo agora, e só a esta luz, o presépio que tendes em casa, ou que ainda ireis a tempo de montar. Acorrei-lhe como os pastores e os magos, ouvi o cântico dos anjos: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados”. Ficai aí por momentos; depois partireis diferentes. Dai uma oportunidade ao Céu, como este se oferece na Terra.

Deus disse-Se desse modo. Baldados os nossos esforços de O forjar, foi a vez do próprio Deus se revelar, na promessa finalmente cumprida. Em luminoso passo duma exortação apostólica, Bento XVI comenta assim, aludindo ao prólogo evangélico que há pouco ouvimos: “O evangelista João contempla o Verbo desde o seu estar junto de Deus, passando pelo fazer-se carne, até ao regresso ao seio do Pai, levando consigo a nossa própria humanidade, que assumiu para sempre. Neste sair do Pai e voltar ao Pai, Ele apresenta-se-nos como o ‘Narrador’ de Deus. De facto, o Filho – afirma Santo Ireneu de Lião – ‘é o Revelador do Pai’. Jesus de Nazaré é, por assim dizer, o ‘exegeta’ de Deus…” (Verbum Domini, nº 90).

 

3. E aqui encontramos a Igreja, carne e corpo que Cristo ressuscitado continua a ter no mundo, para concretizar em cada tempo e espaço a compaixão divina por toda e qualquer pessoa. Noutra exortação apostólica pós-sinodal, Bento XVI lembrara, a propósito, que já “a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras – corpus Christi – o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo” (Sacramentum Caritatis, nº 15).

E hoje como sempre, mas particularmente nas atuais circunstâncias, só assim se “legitima” uma Igreja que o queira realmente ser, como corpo de Cristo no mundo e para o mundo. Lembremos o que foi dito, como nossa única qualificação possível: “Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). E sem medo nem demoras em alargar o presépio, porque de alargar se trata, como o mesmo Jesus adianta, versículos depois e com toda a solenidade: “Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim fará também as obras que eu realizo; e fará obras maiores do que estas, porque eu vou para o Pai, e o que pedirdes em meu nome eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória do Pai” (Jo 14, 12-13).

Peçamos então, amados irmãos, peçamos intensamente ao Pai, que a obra de Cristo continue em nós e se desdobre em mil e uma atitudes de solidariedade, justiça e paz junto de quem mais sofra no corpo ou na alma as presentes vicissitudes. A fé com que celebramos esta grande solenidade manifesta-se necessariamente numa caridade ainda maior. Como já o escreveu um dos primeiros discípulos de Cristo, quase em desafio que perdura, face a qualquer espiritualismo ocioso e desincarnado: “mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé” (Tg 2, 18).

– Graças a Deus e muitas, pois em tantas comunidades e pessoas se manifestam a glória de Deus e a caridade de Cristo, que o Espírito derrama nos corações e através deles (cf. Rm 5, 5)! Amados irmãos, é em vós que rebrilha hoje a luz de Belém, nos presépios vivos em que vos ofereceis aos pobres, aos doentes, aos sós e a todas as fragilidades do mundo. Por vezes, tão ou mais frágeis do que esses mesmos a quem socorreis; mas assim aconteceu com o próprio Deus, que, contrariamente a todas as previsões, quis nascer menino e pobre, para nos engrandecer e enriquecer a todos (cf. 2 Co 8, 9)!

E, se ainda se pede que “seja Natal todos os dias”, estejamos certíssimos de que isso mesmo deseja Deus, só dependendo de nós que aconteça de facto, continuando a incarnação do seu Verbo. Valha como prova esta exclamação claríssima do Apóstolo: “Completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 28); e, através da Igreja, pelo mundo inteiro, certamente, a cuja salvação ela se destina.

– Maria, Mãe de Cristo do presépio à cruz, nos ensine estas coisas, como sucederam nela e com ela. José, que as adotou de coração inteiro, nos ensine a guardá-las também. E, como os pastores da altura, partamos, glorificando e louvando a Deus por tudo o que vimos e ouvimos (cf. Lc 2, 20). Perto ou mais longe, estão muitos à nossa espera!

D. Manuel Clemente, bispo do Porto

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