Homilia do cardeal-patriarca na noite de Natal

 “O nascimento de Cristo é uma alvorada de luz”

1. Os textos da Sagrada Escritura proclamados nesta celebração apresentam o nascimento de Jesus como uma alvorada de luz: “O Povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam nas sombras da morte, uma luz começou a brilhar” (Is. 9,2). O nascimento de Jesus é apresentado aos pastores como o triunfo da luz: “O Anjo do Senhor aproximou-se deles e a glória do Senhor cercou-os de luz” (Lc. 2,9). Que Cristo é luz e iluminou a nossa vida, faz parte da fé da Igreja. Na Liturgia pascal havemos de aclamar solenemente a “luz de Cristo”. E o Concílio Vaticano II, cujo quinquagésimo aniversário da abertura nos preparamos para celebrar, começa a Constituição Lumen Gentium proclamando que Cristo é a luz que se reflete no rosto da Igreja e que ela deve anunciar, para a fazer brilhar: “Cristo é a luz dos povos. Reunido no Espírito Santo, o Sagrado Concílio deseja ardentemente, anunciando a todas as criaturas a boa nova do Evangelho, espalhar sobre todos os homens a claridade de Cristo que resplandece sobre o rosto da Igreja” (LG. nº1).

Para Lucas o nascimento de Jesus é saudado como o eclodir da luz: “Ele vem iluminar aqueles que jaziam nas trevas e nas sombrias regiões da morte” (Lc. 1,79); Ele “é luz que ilumina as nações e glória do teu povo Israel” (Lc. 2,32); e a ressurreição de Cristo é apresentada como “o anúncio da luz ao Povo e às nações pagãs” (Act. 26,23). No Evangelho de São João, o próprio Jesus se anuncia como luz: “enquanto Eu estiver no mundo, Eu sou a luz do mundo” (Jo. 9,5). “Quem Me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo. 8,12). A luz de que fala é a luz da fé: “Eu, a luz, vim ao mundo para que todo aquele que acredita em Mim não caminhe nas trevas” (Jo. 12,46).

A luz de Cristo é a luz de Deus que pode brilhar no coração do homem revelando-lhe a verdadeira vida. São João proclama: “Ele era a vida de todos os seres e a vida era a luz dos homens, e a luz brilhou nas trevas” (Jo. 1,3-4).

 

2. A luz brilhou nas trevas. Estas trevas são a situação da humanidade que se esqueceu de Deus e deixou de perceber na Sua luz o sentido e a grandeza da vida. Cristo é luz porque é o Salvador, Aquele que restitui aos homens a capacidade de perceberem a vida e todas as realidades que a tecem, à luz de Deus. É luz porque revela o sentido, ilumina o caminho, anuncia a plenitude da vida e, por isso, é fonte de alegria.

A tradição cristã viu claramente que esta luz é a luz da fé. Não anula a inteligência como fonte de luz, nem a compreensão que brota da experiência humana. Mas a fé corrige e plenifica essas fontes humanas de luz. A fé é fonte de discernimento que, ao iluminar a realidade do homem, o seu presente e o seu futuro, indica caminhos de verdade, de amor, de contemplação.

 

3. Cristo é luz em Si mesmo. Todo o seu ser irradia luz, é luz. Quem se abrir ao contacto com Ele, escutando a sua Palavra, amando-O e adorando-O, é inundado pela luz que Ele é, e torna-se “filho da luz”. O contacto com Cristo surpreende-nos como epifania de luz. Isso aconteceu aos Apóstolos no Monte Tabor: “as suas vestes eram brilhantes como a luz”, e levou-os a declarar: queremos ficar aqui (cf. Mt. 17,2ss). A Saulo, na Estrada de Damasco, Cristo envolveu-o numa luz brilhante (cf. Act. 9,3). Paulo aprofundará esta experiência ao longo da vida, percebendo que a luz que resplandece no rosto de Cristo é a luz da glória de Deus (cf. 2Co. 4,6). A luz de Cristo revela-nos um pouco da essência divina (cf. 1Tim. 6,16), porque Deus é luz e n’Ele não há trevas (cf. 1Jo. 1,5).

 

4. A interpelação que o Natal nos faz é esta: a luz de Cristo ilumina, hoje, a nossa vida? Não esqueçamos que essa luz, esplendor da glória divina, se reflete em nós através da luz da fé, que anuncia a esplendorosa claridade da bem-aventurança eterna.

Como chega ao nosso íntimo o esplendor dessa luz de Cristo? Antes de mais, escutando a sua Palavra. Cristo é luz e fonte de luz. Na sua humanidade, sobretudo nas expressões do seu ministério, a sua Palavra, os acontecimentos que realiza, irradiam para os que O seguem, a luz de Deus. Como diz São João, “Ele próprio é luz, e n’Ele não há trevas” (1Jo. 1,5). São Mateus, ao narrar o início da pregação de Jesus vê na sua Palavra a realização da profecia de Isaías: foi a luz que começou a brilhar, vencendo as trevas (cf. Mt. 4,15-16).

Cada Palavra de Cristo é raio de luz, que nos comunica o amoroso desígnio de Deus, e no qual o próprio Cristo se comunica a Si mesmo, na intimidade luminosa com Deus Pai. A sua Palavra é perene, permanece para sempre, ou seja, mantém a força para iluminar aqueles que a escutam. Quem acolhe, com fé, a Palavra de Cristo, acolhe o próprio Cristo. Aí a fé desabrocha em relação de amor, que nos envolve na luz que brilha em todo o seu ser de ressuscitado.

A escuta da Palavra põe-nos a rezar e ajuda-nos a descobrir a oração como o momento privilegiado para acolher a luz de Cristo. A oração é a experiência em que Cristo nos envolve na sua luz. De modo particular, a oração sacramental, onde a escuta da Palavra nos faz encontrar Cristo. No Batismo, é a atração da luz que nos leva a comprometer a vida com Cristo; na Confirmação brilha sobre nós a luz do Espírito Santo. Na Eucaristia, unidos a Cristo na oferta do sacrifício redentor, deixamo-nos inundar pela luz do Corpo glorioso do Senhor. Aí a luz é luminosidade do amor. Na Penitência, a luz de Cristo faz-nos conhecer o nosso pecado e trilhar os caminhos que ela nos indica; no Matrimónio, os esposos percebem, nessa luz, a beleza de uma vocação de comunhão; na Unção dos Doentes, a luz de Cristo ajuda-nos a oferecer o nosso sofrimento unidos ao seu sacrifício.

Se a oração sacramental continuar na adoração pessoal, aí a luz gloriosa de Cristo pode iluminar toda a nossa vida, ser experiência de encantamento, de alegria e de êxtase.

 

5. A luz de Cristo, acolhida na humildade da luz da fé, é essencial para o discernimento dos caminhos da fidelidade e da santidade. Tem de estar presente em todo o discernimento da realidade, pessoal e social. É ela que revela o pecado, as “trevas” que nos envolvem, ilumina o caminho e nos faz conhecer o convite de Deus para vivermos já com o desejo da vida eterna. É essa a mensagem de Paulo a Tito: “Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todo o homem. Ela nos ensina a renunciar à impiedade e aos desejos mundanos, para vivermos, no tempo presente, com temperança, justiça e piedade, aguardando a ditosa esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e salvador, Jesus Cristo” (Tit. 2,11-12).

A mensagem do Profeta Isaías anuncia-nos a luz de Cristo, “para aqueles que habitavam nas sombras da morte uma luz começou a brilhar” (Is. 9,2-7). Desejo-vos a todos que este Natal seja a festa da Luz de Cristo a iluminar os caminhos da nossa vida.

Sé Patriarcal, 24 de dezembro de 2011

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top