Alfredo Bruto da Costa, estudioso na área da pobreza e presidente da Comissão de Justiça e Paz, considera que a discussão sobre o Orçamento de Estado para 2012, em Portugal, deve ter em conta as pessoas e definir prioridades para as servir
Agência Ecclesia (AE) – Este é um Orçamento, como já se disse, feito apenas numa folha de Excel?
Alfredo Bruto da Costa (ABC) – À primeira vista, parece, porque tudo é visto em função de resultados aritméticos do défice e da dívida. O objetivo deste Orçamento, isso não é segredo, é conseguir 5,9% de défice e reduzir a dívida para um determinado limite.
AE – Esse objetivo não é obrigatório?
ABC – É obrigatório porque nós associamos o não cumprimento desses objetivos a coisas muito sérias em termos de continuidade dos empréstimos que o Fundo Monetário Internacional e a União Europeia estão a fazer. Eu considero que são obrigatórios, enquanto objetivos, são uma questão de ponto de honra. Agora, surgem dúvidas sobre o modo como se chega lá, as coisas não são tão rígidas e tão matemáticas como se fossem algo material, que se corta, que se acrescenta…
Para mim, não é indiferente aquilo que li, num semanário, apresentando o ministro das Finanças como um “fã” da teoria de Milton Friedman. Ele é o representante de uma corrente de pensamento determinada num contexto do pensamento económico; eu sou altamente crítico do Friedman: Como é que posso aceitar pacificamente um orçamento que, por trás dos números, tem este pensamento?
AE – Mas isso pode ser apenas uma opinião do articulista…
ABC – Independentemente do Friedman, vemos a tendência neoliberal das medidas tomadas por esta política, como, por exemplo, no emagrecimento do Estado. Durante a campanha eleitoral, o PSD falava fundamentalmente em cortar “gorduras” do Estado, veio para o Governo e a gente pergunta onde é que estão as gorduras, porque aquilo que está a ser cortado é a carne das pessoas: são vencimentos, são subsídios de férias e de Natal, aumento de impostos. Não vamos chamar a isto gorduras.
AE – A redução de Fundações não pode ser vista como uma medida na linha desse corte?
ABC – O que se vê não é um corte de gorduras, é um rearranjo do próprio papel do Estado na sociedade. Isto é uma mudança que pode ser mudança da sociedade, que não foi submetida à opinião da população. Corremos o risco de mudar qualitativamente uma sociedade – designadamente neste aspeto de saber qual é o grau de regulação, qual é o grau de intervenção do Estado e a sua presença, sobretudo na economia –, passando para um Estado mínimo, de pouca regulação, que confia – a meu ver excessivamente – no mercado. Penso que não é legítimo mudar qualitativamente uma sociedade, de um modelo para o outro, sem submeter essa mudança ao parecer da população.
AE – Onde é que veria, então, a gordura a cortar?
ABC – Para mim, as gorduras estão antes de mais não no Estado, mas nas grandes riquezas, em quem tem rendimentos elevados, que é o setor que está intocado. Não basta dizer que se tiram 10% a uma pessoa que ganha mil euros como a outro que ganha milhões. Numa situação como esta, o que tem de ser equiparado é o grau de sofrimento.
O homem que ganha milhões tem de sofrer tanto como o que ganha 500 ou mil, é o grau de sofrimento que traduz uma situação equitativa. Temos gente que vai sofrer, por várias causas, porque vai perder uma parte do seu vencimento, vai ter impostos mais elevados, não vai conseguir pagar prestações de casas que tentou comprar, etc. Outros, por mais que paguem mais impostos, vão poder viver ‘à grande e à francesa’.
AE – Como vê o argumento da fuga imediata desses milhões para outros postos?
ABC – Se fossem introduzidos certos tipos de novas taxas fiscais, haveria um controlo das transações. Por outro lado, estamos a partir da hipótese de que as pessoas ricas em Portugal não têm ética, que se as coisas não forem favoráveis aqui, fogem. O capital deles não foi criado nos países de offshores, foi criado aqui. Não têm responsabilidade desse dinheiro perante a população, a sociedade onde foi criado? Este é um dos princípios que o Papa Bento XVI menciona para a decisão sobre deslocalizações, há que ter em conta a sociedade onde aquele rendimento foi criado. Portanto, não posso aceitar que as pessoas ricas portuguesas sejam isentas de ética.
Uma maior repartição da riqueza e do rendimento, neste momento, é, para mim, uma exigência ética. Não o torno completamente dependente do que o Governo exija ou não, sobretudo em relação aos cristãos – digo que não devem esperar pelas medidas, devem ser os primeiros a ter iniciativa, comparando os seus bens aos bens que estão à disposição da população portuguesa nesta fase.
AE – Que atitude se deve ter diante de quem se instala na subsidiodependência ou de atitudes de esbanjamento?
ABC – Este é um problema da sociedade, não de um grupo particular, e é importante darmo-nos conta disso. Reflete-se é de formas diferentes: por exemplo, os grandes montantes que escapam ao fisco é uma forma de subsidiodependência, porque é um montante que se está a tomar por conta própria, quando se deveria entregar ao Estado. Normalmente, as pessoas aqui em Portugal pagam o imposto que têm de pagar, se puderem deixar de pagar, preferem. Isso faz parte da cultura.
Muitas vezes se tem falado na mentalidade dos nossos empresários como sendo subsidiodependentes, sempre à espera do Estado, de fundos estruturais da União Europeia, etc. Aqueles que são mais castigados são os pobres, aqueles que não têm nada.
AE – São os menos subsidiodependentes?
ABC – Em primeiro lugar, temos de olhar para qualquer subsídio não como uma dádiva da sociedade, mas como alguma coisa a que a pessoa tem direito, que está legislado. Por outro lado, tem de haver um desnível suficientemente alto entre o valor do salário que a pessoa vai receber e o valor do subsídio, para que haja um mínimo de estímulo para deixar o subsídio e ir para o salário.
Se eu não considerar o subsídio como um direito, mas como uma benesse do Estado, posso exigir uma troca por um salário, independentemente de a pessoa ficar a ganhar ou a perder. Isso não é discutido, normalmente.
AE – Pessoalmente, qual é o contributo que gostaria de dar para este Orçamento?
ABC – Para já, o contributo tem sido a presença nos media, a tomar a posição de que não devemos analisar o Orçamento de Estado como um documento técnico, mas como um documento ideológico e político também, que vai implicar sofrimento humano. Um documento que, para ser equitativo, tem de abranger todas as formas de rendimento, seja do trabalho, seja do capital, coisa que não tem sido feita.
Mesmo dentro dos rendimentos do capital, há quem diga que os trabalhadores do Estado estão a ser mais sacrificados do que os da iniciativa privada, embora o problema da equidade fiscal esteja a ser debatido.
O essencial da minha mensagem é: aquilo que parece ser um determinismo de aritmética não é verdade. Nenhum documento que tenha o nome de Orçamento de Estado é meramente aritmético, é meramente técnico, é um documento político, ideológico, como disse, e esses aspetos têm de ser discutidos, para que a população saiba o que está em causa.
AE – Considera necessária uma mudança de rumo?
ABC – Claro. Uma mudança de rumo e uma mudança de atitude perante o fazer um Orçamento. O aspeto técnico é um dos aspetos importantes, mas não é o único.
Quanto à preocupação de cumprir os compromissos concretos do memorando da troika, eu acho que Portugal tem de cumprir. Mas, como sabe, começam a ser aceites pelo Governo certas margens de elasticidade, de reajustamento. Admito que seja uma maior extensão dos prazos de cumprimento, maior montante de créditos…
AE – Não se vai seguir na linha de um endividamento sucessivo?
ABC – Não, não. Uma outra crítica que se faz ao Orçamento, no entanto, é o de toda a política ser omissa quanto ao aspeto do crescimento, embora ultimamente os membros do Governo tenham vindo a falar nele, sem dizer exatamente o que vão fazer. A única coisa que se diz é que se tem de estabilizar as Finanças e fazer transformações estruturais no sentido do crescimento.
Aqui queria chamar a atenção para um outro ponto: não basta o crescimento. Tem de ser um crescimento mais equitativo, porque a sociedade portuguesa é das mais desiguais da Europa. Não é qualquer tipo de crescimento que vai criar mais emprego, há crescimento baseado em tecnologias que pode não criar e até diminuir empregos. Pode haver crescimento económico com aumento da desigualdade e do desemprego.
Relativamente ao endividamento, o objetivo global tem de ser reduzi-lo o mais possível, tanto no défice como no endividamento público e privado. A questão é reduzi-lo como e reduzi-lo quando, com que período, porque se for de hoje para amanhã, a “carnificina” será grande.
PR/OC